No Passo da Gradiva

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.

Resumo:
Apresenta um resumo do ensaio freudiano “Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen”, e um comentário à luz de conceitos psicanalíticos lacanianos. Aborda, principalmente, os diferentes tipos de delírios e a histeria masculina do personagem da novela.


Palavras-Chave:
Delírios – Sonhos – Ambigüidade significante – Recalque – Desrecalcamento – Histeria masculina

A importância que Freud dava “à arte como uma espécie de testemunha do inconsciente” (segundo Lacan, em suas conferência às universidades norte-americanas) sempre foi muito conhecida de todos nós. Ao saudar Arthur Schnitzler1, literato de grande porte e contemporâneo seu, Freud já dizia que o artista chegava facilmente, com sua instituição, onde ele chegava através de muito trabalho. Basta ver também a importância do lugar de eixo do mito edipiano, na obra de Freud, tomado emprestado da tragédia grega de Sófocles.

Seu trabalho “Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen”2 foi a primeira análise de literatura feita por Freud a ser publicada, com exceção de seus comentários sobre Édipo Rei e Hamlet em A Interpretação dos Sonhos (de 1900). A obra se chamava originalmente “Gradiva – uma fantasia pompeiana”, do escritor alemão Wilhelm Jensen (1837 – 1911), publicada em 19033. Segundo Ernest Jones, em sua biografia de Freud4, foi Jung quem chamou a atenção do mestre para o pequeno livro do romancista alemão, que, embora respeitado, não era objeto de maior consideração. Na Standard Edition há referência ao trabalho de Freud como um agrado especial ao dileto discípulo Jung. Isso teria ocorrido em 1906, alguns meses depois do primeiro encontro dos dois e teria sido o prenúncio dos cinco ou seis anos de sua relação cordial. Escrito em 1907, Freud logo enviou um exemplar a Jensen, que se sentiu lisonjeado com a análise de seu livro, parecendo ter aceitado as linhas principais da interpretação. Seguiu-se a isso uma breve correspondência entre Freud e Jensen (tendo este enviado três cartas a Freud), na qual ele, Jensen, revela não ter tido conhecimento prévio da teoria psicanalítica e alega ter criado sua obra entregando-se à imaginação pela simples alegria de criar, sem nenhum outro propósito.

Dentro da obra monumental de Freud, segundo Marco Antonio Coutinho Jorge, autor do prólogo do livro de Jensen à edição brasileira (Zahar), como se poderia situar Gradiva no conjunto de seus escritos: qual o passo que FREUD dá com esse texto? A resposta não é unívoca e várias são as tentativas de situar Gradiva em sua obra.

James Strachey, em suas notas prefaciais do texto freudiano, ressalta o fascínio sempre exercido sobre Freud pela arqueologia, em geral, e por Pompéia, em particular, por causa da analogia existente entre o destino histórico de Pompéia (o soterramento e a posterior escavação) e os eventos mentais que lhe eram familiares: o soterramento pelo recalcamento e a escavação pela análise.

Segundo Coutinho, em muitas passagens Freud faz um paralelismo entre o procedimento do arqueólogo (e lembro aqui que ele próprio era um colecionador apaixonado de antiguidades) e o método psicanalítico. Num dos últimos ensaios que escreveu, “Construções em Análise”5, Freud se vale dessa comparação: “o trabalho de reconstrução do analista assemelha-se muito à escavação, feita pelo arqueólogo de alguma morada que foi destruída e soterrada, ou de algum antigo edifício”. Há, no entanto, uma diferença fundamental que distingue os dois trabalhos: “aquilo com que o analista trabalha não é algo destruído, mas algo que ainda está vivo”.

O analista trabalha com as repetições de reações que datam da tenra infância e tudo o que é indicado pela transferência, em conexão com essas repetições. Já o arqueólogo só acha essas condições excepcionais em casos raros, como em Pompéia ou na tumba de Tutancâmon. O fato decisivo revelado pela experiência psicanalítica de que nada é destruído no psiquismo – tudo nele estando preservado, e o esquecimento não implicando de modo algum no total desaparecimento, mas sendo, antes disso, efeito da ação do recalcamento que a análise visa suplantar – é o que impõe a Freud os limites da comparação entre arqueologia e psicanálise. No “Mal-Estar na Civilização”,6 Freud já dizia que “só na mente é possível a preservação de todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final”.

A história de Gradiva é a de um arqueólogo cujo “esquecimento das mulheres”, por assim dizer, vai obter sua cura exatamente em... Pompéia!

Com seu trabalho sobre a Gradiva, Freud vai dar vazão ao seu desejo de ampliar o espectro de ação de sua teoria do inconsciente, a qual ele quis, desde os seus primórdios (veja-se aqui sua “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, obra cujo título é um violento escândalo para a tradicional oposição clínica entre o normal e o patológico) situar mais além do contexto restrito da prática clínica com neuróticos. A psicanálise vai além das fronteiras do consultório, incidindo e tentando interferir nos mais diversos campos do saber. Freud, com o estudo sobre a Gradiva, tem a possibilidade de demonstrar sua teoria do inconsciente, ilustrando-a com a limpidez da qual é capaz uma narrativa poética. Tratava-se aqui para Freud de recolher os achados do escritor e poeta, tornados possíveis pela especial aptidão do artista de se deixar perpassar pelos elementos que, estruturados como uma linguagem (segundo Lacan), apontam para o inconsciente.

Em termos semipopulares, segundo Strachey, seu tradutor, Freud faz uma exposição sobre a teoria das neuroses e a ação terapêutica da psicanálise.

A Gradiva na Narrativa de Jensen
Um jovem arqueólogo, Norbert Hanold, descobrira, num museu de antiguidades em Roma, um relevo que o atraíra muito, tendo conseguido do mesmo uma cópia de gesso que colocou em seu gabinete de trabalho, numa cidade universitária da Alemanha, para admirá-la com vagar. A escultura representava uma jovem adulta, cujas vestes esvoaçantes revelavam os pés calçados com leves sandálias, surpreendida ao caminhar. Um dos pés repousava no solo, enquanto o outro, já flexionado para o próximo passo, apoiava-se somente na ponta dos dedos, estando a planta e o calcanhar perpendiculares ao chão. Possivelmente foi esse modo de andar incomum e particularmente gracioso que atraiu a atenção do escultor e que, tantos séculos depois, seduziu seu admirador arqueólogo.
O jovem arqueólogo chamou-a de Gradiva, “a jovem que avança”. Imaginou-a filha de uma família nobre, de um patrício a serviço de Ceres (deusa do lar, do casamento e da agricultura), e pensou que ela estava a caminho do templo da deusa. Sua natureza tranqüila e serena não combinava com a vida agitada das cidades grandes, então ele imaginou-a vivendo em Pompéia. Percebeu em sua fisionomia traços gregos e imaginou-a de origem helênica.

Hanold colocou seus conhecimentos arqueólogicos a serviço desta e de outras fantasias relativas ao modelo da escultura.

Daí partiu para pensar se aquele modo de pisar seria encontrável na realidade e passou a observar a vida (grifo meu).

Isso o levou, contrariando seus hábitos, a observar as mulheres e seu tipo de andar. Até então ele só considerava o sexo feminino em mármore ou bronze e nunca prestara a menor atenção em suas representantes contemporâneas.

Sua pesquisa levou-o a concluir que o modo de andar da Gradiva não era encontrável na realidade. Jensen relata então uma série de sonhos de Hanold.

1º sonho: encontrava-se na antiga Pompéia, vendo a destruição do Vesúvio. Nisso vê Gradiva a pequena distância e quer avisá-la do perigo, mas ela, que residia em Pompéia na mesma época que ele, sem que disto ele tivesse a menor suspeita, não se detém, volta-lhe o rosto sereno e continua seu caminho para o templo. Ali sentou-se e curvou-se lentamente até repousar a cabeça no piso, enquanto suas faces pareciam transformar-se em mármore. Ele foi na sua direção, mas ela estava adormecida tranqüilamente, até que a chuva de lavas cobriu sua figura.

Ao acordar, Hanold ficou com a firme convicção de que Gradiva ali vivera e fora soterrada com o resto da população em 79 D.C. Pela primeira vez, lamentou-a como alguém que tivesse sido perdido. Um canário numa gaiola chamou sua atenção, na casa da frente, e ele pensou ter visto uma silhueta semelhante à de Gradiva e seu andar característico. Correu à calçada para estar com ela, mas como usava trajes de dormir, foi criticado pelos passantes e desistiu de procurá-la. No entanto resolveu ir para a Itália e logo encontrou um pretexto científico que justificasse a viagem, mas sabia que o verdadeiro motivo era algum que ele não sabia nomear. Freud aí diz que a imaginação vivíssima de um lado, e o intelecto superdesenvolvido, do outro, em oposição, predispunham Hanold a ser um artista ou um neurótico. Vai para Roma e depois para Nápoles, sempre envolvido numa nuvem de casais em lua-de-mel (Edwins e Angelinas ou Grete e August, no original alemão). Acha-os incompreensíveis em seus trinados amorosos e também insuportáveis. Espera que rumem para Capri e parte para Pompéia na esperança de se ver livre deles.

Mas em Pompéia acha as moscas também insuportáveis, lembrando, em seus acasalamentos, os pares em lua-de-mel. Viu então que, na verdade, seu incômodo era interno e que algo lhe faltava.
Ao meio-dia, passeando por Pompéia vê Gradiva sair de sua casa e atravessar a rua rapidamente. Seria Gradiva uma pessoa viva, uma alucinação, ou um verdadeiro fantasma? Mas a hipótese de alucinação se desfez, pois um pequeno lagarto foge assustado à aproximação do pé de Gradiva.
Gradiva então desaparece na casa de Meleagro. O meio-dia é a hora dos espíritos e Hanold se desgasta pensando qual a relação de Gradiva com o proprietário da casa. Encontra-a então sentada novamente nos degraus com algo branco no colo que parecia uma folha de papiro. Quer falar com ela e usa o grego, ao qual ela não responde, depois o latim, até que ela diz: “Se desejas falar-me deves empregar o alemão.”

Agora sabemos que Gradiva é uma jovem alemã de carne e osso, mas o delírio do herói não se dissipou como o nosso. Ao ouvi-la Hanold diz: “Já sabia como soaria a sua voz”. Hanold pede que ela se deite como estava no dia anterior e ela se levanta e o deixa, olhando-o de forma estranha. Uma borboleta voa em torno da jovem e Hanold pensa que esta é mensageira do Hades e que a leva de volta para os sonhos. “Voltarás aqui amanhã ao meio-dia?” Não teria Gradiva percebido as intenções eróticas de Hanold e se ofendido?

Hanold vai aos dois hotéis da cidade, procura Gradiva entre os hóspedes e não a acha. Pensa que o vinho contribui para deixá-lo zonzo. No dia seguinte, volta à casa de Meleagro e ao passar por um pé de asfódelo em flor, colhe um ramo para si, lembrando-se de que é a flor dos infernos. Esquecido já da arqueologia preocupa-se em saber de que Gradiva é feita. Ao vê-la, exclamou: “Ah, se ao menos fosses viva e real!” Mas Gradiva se aproxima, pergunta se a flor era para ela e trava com ele um longo colóquio.

Pergunta-lhe quando ele ficara ao lado dela enquanto ela se deitava para dormir e ele lhe relata o sonho. Ele lhe pede para andar, e a única diferença entre ela e o relevo é que ela calça sapatos modernos de couro e não as sandálias da escultura. Quando ele lhe contou sobre a procura nas ruas do andar de Gradiva, ela lhe diz: “Que pena! Talvez essa longa viagem a Pompéia não tivesse sido necessária.” Aí ela lhe revela seu nome verdadeiro: Zoé. “Esse nome assenta-te maravilhosamente, mas soa como uma amarga ironia, já que Zoé significa vida”. Ela retruca: “Temos de nos curvar ao irremediável e há muito que me acostumei a estar morta.” Ao se despedir promete que voltará no dia seguinte ao meio-dia e diz, pedindo o ramo de asfódelo: “As mais afortunadas recebem rosas na primavera, mas essas flores do esquecimento são mais apropriadas para mim.”

Se a jovem, em cuja figura Gradiva tornou à vida, aceitou tão plenamente o delírio de Hanold, provavelmente fazia isso para libertá-lo do mesmo.

Após o desaparecimento de Gradiva, ouve-se o pio de um pássaro, sobrevoando as ruínas da cidade. Ao ver o objeto branco que julgou ser um papiro, Hanold vê que era um caderno de esboços com desenhos de Pompéia. O esquecimento do caderno era um penhor do retorno da jovem, pois ninguém esquece algo sem um motivo oculto.

Hanold percebeu uma fenda estreita na parede do pórtico por onde Gradiva poderia ter sumido e não ter sido engolida pelas entranhas da terra, como pensara antes.

Hanold queria saber sobre a natureza corpórea de Gradiva. O que sentiria se tocasse sua mão?

Numa colina deparou com um cavalheiro idoso que, pelos seus apetrechos, só poderia ser um botânico ou zoólogo empenhado numa busca. Em seguida ele fala a Hanold sobre a caça a um lagarto: “O método inventado pelo colega Eimer é realmente muito bom. Já o utilizei várias vezes com sucesso”. O zoólogo calou-se e colocou um laço feito de um longo talo de erva em frente a uma fenda nas pedras, por onde espreitava a cabeça azul de um lagarto. Hanold pensou como eram estranhas as motivações para se ir a Pompéia, mas não considerou aí as suas próprias razões. A fisionomia do zoólogo lhe era familiar, e Hanold julgou já tê-lo visto em algum dos hotéis. Perambulando pela cidade chega a um outro hotel: “Albergo del Sole”, onde o proprietário lhe vende um broche de pátina verde, dizendo ter sido o mesmo encontrado junto a um casal de namorados que morreram abraçados na erupção do Vesúvio. A visão de flores brancas de asfódelo num copo com água numa das janelas do hotel, fê-lo pensar na confirmação da legitimidade do broche. Mas teve ciúmes ao pensar que Gradiva poderia ter sido a dona daquele broche e seria a namorada morta. Refletindo sobre a impossibilidade da hipótese, recupera o equilíbrio suficiente para cear em seu próprio hotel. Lá encontra um casal, que julga ser de irmãos, e eles lhe causam boa impressão. A moça traz uma rosa vermelha de Sorrento que lhe despertou uma recordação imprecisa.

À noite Hanold tem outro sonho: Gradiva, sentada ao sol, confeccionava um laço de um longo talo de erva para capturar um lagarto, e disse: “Por favor, fique quieto. Nossa colega tem razão, esse método é ótimo e ela já o utilizou com excelentes resultados”. O sonho é criticado por ele como insensato e Hanold é salvo por um pássaro invisível que pia e carrega o lagarto em seu bico.

Quando acorda, mais equilibrado, vê uma roseira com flores iguais às que vira no peito da hóspede na noite passada e colhe algumas delas. Sai levando consigo as rosas, o caderno de esboços e o broche de metal. Seu delírio começa a apresentar fissuras; ele conjetura de poder encontrar Gradiva em Pompéia não só ao meio-dia, mas também em outros momentos. Hanold vai até a Casa do Fauno e lá vê novamente o casal simpático do hotel, mas desta vez beijam-se demoradamente. Era, afinal, um casal amoroso e não dois irmãos, e Hanold retira-se sem importuná-los, sendo que dessa vez experimentou uma satisfação ao vê-los aos beijos.

Ao chegar à casa de Meleagro, Hanold teme achar Gradiva acompanhada e pergunta-lhe: “Estás sozinha?” Zoé-Gradiva faz com que ele perceba que trouxe as flores para ela e ele lhe conta sobre seu último delírio: seria ela a dona do broche verde achado com os namorados. Com um toque irônico ela diz que acha que o sole (usa a palavra em italiano) lhe afetou os sentidos e quer repartir com ele sua merenda. Dá-lhe a metade de um pãozinho e diz: “Sinto como se já tivéssemos partilhado certa vez uma refeição semelhante, há dois mil anos atrás, não te recordas?” Hanold melhora de seu estado e vem-lhe à cabeça solucionar o conflito se seria ela um fantasma do meio-dia ou não. Uma mosca pousa na mão de Zoé-Gradiva e Hanold lhe dá um tapa. A experiência fez com que ele visse que ela estava bem viva e também com que ela se levantasse e dissesse: “Perdeste mesmo o juízo, Norbert Hanold!”. Acorda-se um sonâmbulo ao chamá-lo pelo nome. Nesse momento entra o simpático casal de amantes e a jovem diz: “Zoé! Estás aqui também? E em lua-de-mel como nós? Nunca me escreveste uma única palavra a respeito disso!” Hanold, ouvindo isso, foge.

Zoé-Gradiva explica então a situação para a jovem, diz estarem ela e seu pai no Albergo del Sole. Seu pai a trouxe a Pompéia e ela teve de se virar sozinha, desencavando algo de interessante ali. Vai atrás de Hanold que, confuso e envergonhado, tenta solucionar a parte obscura de seu problema. Vê que fora insensato acreditando no seu delírio e isso é um passo fundamental para voltar à razão. Mas não sabia por que Zoé-Gradiva sabia seu nome. Todavia tem um desejo violento de revê-la mais uma vez. Ele a vê novamente, ela o repreende sobre o tapa na mão, e por fim ele pergunta como ela sabia seu nome. E Gradiva vai desvendando todo o enigma. “Você não precisaria vir a Pompéia para descobrir. Poderia ter confirmado isso a uns mil quilômetros dali, do outro lado da rua, na casa de esquina, na janela onde há uma gaiola com o canário”. Hanold se lembrou então que o canto do canário foi o que provocou seu desejo de ir à Itália. “Naquela casa mora meu pai, Richard Bertgang, o catedrático de zoologia”.

“Sois a Fräulein Bertgang?” – pergunta Hanold.

A seguir sabe-se que os dois eram amigos de infância e a pancada na mão de Zoé relembra as brincadeiras violentas constantes na infância dos dois, assim como a refeição partilhada. Zoé Bertgang fala também que, não tendo mãe, nem irmãos, com um pai totalmente dedicado ao próprio trabalho, chegou a depender muito da companhia de Hanold, tido como seu melhor amigo. Mas com o tempo, ele foi se afastando dela a ponto de nem percebê-la. E o comparou a um arqueoptérix. Zoé abre seu coração e revela que a amizade se transformara em amor. Com sua indiferença, ele apenas se aproximava do modo de ser do pai de Zoé, e por isso o amor dela por ele não se modificou.

Por fim, Hanold deixa transparecer as modificações nele ocorridas. Propõe a Zoé uma lua-de-mel na Itália e em Pompéia, como se todos aqueles pares de recém-casados não o tivessem irritado tanto. No final, Hanold pede a Zoé Bertgang, cujo nome tem o mesmo significado de Gradiva e quer dizer “alguém que brilha ao avançar”, que ande na sua frente. Zoé-Gradiva rediviva ergue a saia e anda com seu passo especial, enquanto ele a observa sonhador.

Uma Interpretação da Gradiva Hoje
Antonio Quinet, em duas aulas inspiradas, a primeira sobre a Gradiva, em 7 de dezembro de 2002, e a outra sobre a Histeria Masculina, em que também fala sobre a Gradiva, em 23 de outubro de 2004, traz aportes atuais e extremamente pertinentes ao artigo freudiano7.

Vamos, através das aulas de Quinet, apreciar pormenorizadamente os delírios do nosso personagem. São delírios histéricos, também chamados de delírios imaginativos, ou ainda de devaneios. Diferentemente do delírio psicótico, que vem para aplacar a angústia, o delírio neurótico é uma manifestação de angústia. O texto da Gradiva é um texto também sobre técnica psicanalítica porque o trabalho de Zoé com Hanold é um tratado sobre a interpretação psicanalítica. Cada interpretação dela, com toda a sua equivocidade significante, com toda a ambigüidade e precisão, pode desfazer o delírio de seu amado. Ela “banca” o analista para conquistar o amor dele. Com o analista acontece o contrário: ele “banca” o amado para se fazer analista.

A constituição do delírio é feita a partir de três momentos de tyché. O primeiro é o encontro com o objeto que é o tal relevo onde aparece a Gradiva. Hanold não entende por que ele se sentiu tão atraído por aquele objeto. Não é pessoa-objeto, nem objeto a. É objeto mesmo, que no dizer de André Breton constitui o “acaso objetivo”. Nós já sabemos que o andar é o de Zoé, mas ele não sabe, ou sabe sem saber. A jovem Gradiva é a que avança e Hanold inventa uma história para ela. Ele encontra o relevo, faz uma mulher, inventa imaginariamente a mulher. É algo típico da histeria masculina, que atua como um Pigmaleão, que de uma moça “bronca” fez uma lady, como em “My Fair Lady”, de Bernard Shaw. Zoé é a amiga de infância por quem ele foi apaixonado e recalcou. Ele vai então procurar outras mulheres que apresentem esse andar. Até então estava anestesiado, na bela indiferença em relação ao sexo, comum na histeria. Vai se interessar pelo jeito de andar das mulheres e tem um sonho que seria a segunda tyché: seu sonho com Gradiva deitada, coberta de cinzas em Pompéia. Ele a avisa, mas ela não liga, e a partir daí ele desenvolve o delírio imaginativo. Ele inventa a mulher, essa mulher que, no sonho, adquire um status através de objeto perdido. O terceiro momento de tyché é o canto do passarinho. Ele é um canário que canta na janela de Zoé, mas Hanold não sabe, ou sabe sem saber. Ele vê Gradiva, mas por estar de pijama não pode segui-la. Ele se sente como o canário na gaiola, no lugar de objeto do outro, e sob a influência do sonho decide partir para a Itália.

Vemos então a mulher como o objeto perdido, no lugar do objeto perdido, ou objeto causa de desejo, e a mulher como a dona da gaiola. A mulher como o outro do qual ele se sente uma presa e Hanold está aí no lugar de objeto a.

A estrutura do delírio estaria então nas três posições:

O primeiro encontro com a mulher, a invenção da mulher (objeto a) e o terceiro encontro é ele como o objeto a e a mulher é o Grande Outro.

Ao chegar na Itália se irrita com os casais em lua-de-mel, acha o casamento a maior loucura da humanidade e sai de Nápoles para Pompéia, na rota do desejo, mas vai às cegas. Aí aparece a marca da histeria, que é a denegação.

Ao ver as moscas irrita-se também, porque o sexo aparece em tudo. Sente então a insatisfação, mas não sabe o que é, apenas sente a falta. Possivelmente seria uma angústia de castração. Uma das formas da angústia é o real da insatisfação. Lacan fala da insatisfação histérica como o gozo da privação. A privação do gozo se transforma em gozo da privação. Ao ser confrontado com os casais, o que é evocado nele é a sua privação do sexo, que se manifesta como insatisfação. Vai a Pompéia seguir as pegadas de Gradiva. Freud chama a atenção para essa ambigüidade porque o autor trabalha o tempo todo com ambigüidade significante, e as interpretações de Zoé vão ser todas nessa base também.

O fantasma do meio-dia é a volta dos mortos. Aí Freud chama o delírio de Hanold de delírio imaginativo. Mesmo com Gradiva falando alemão, o delírio de Hanold não se desfaz. Não interessa a prova de realidade. São as interpretações que vão trazer à tona, de forma bem freudiana, o recalcado. A borboleta é vista como uma mensagem dos infernos, e ele vai atrás dos hotéis para ver se encontra alguém parecido com Gradiva, mas se esquece do “Albergo Del Sole” onde ela realmente está.

No dia seguinte volta ao mesmo lugar, onde afinal a encontra; os dois conversam e ele lhe conta tudo. Conta do sonho, do canário, do baixo relevo, pede que ela caminhe e vê que ela o faz igual ao relevo. Não usa sandália e sim botas, mas isso não importa. Ela começa então a entrar completamente na fantasia dele, no lugar de semblant desse “objeto Gradiva” que ele inventou.

Zoé suporta a transferência e sempre diz frases com duplo sentido. “Há muito tempo me acostumei a estar morta” (porque ela lhe era indiferente). Ao receber as flores do inferno: “As flores do esquecimento são apropriadas para mim”, também uma interpretação.

Freud dá as regras de como tratar o delírio histérico:

1. Aceitar o delírio e não contradizê-lo.

2. Situar-se no mesmo plano da estrutura delirante, ser dócil à estrutura subjetiva.

3. Investigar o delírio o mais completamente possível porque o tratamento é a sua investigação, a investigação é o seu tratamento.

O analista tem de ir investigando, investigando até descolar do delírio. Freud chama a atenção de algo importantíssimo: não desprezar o poder curativo do amor contra o delírio. Não é a realidade x delírio; é a transferência x delírio.

Hanold descobre a fenda por onde Gradiva passa e quer saber sua natureza corpórea. Aí ele tem o encontro fundamental com o zoólogo, que depois se saberá que é o pai de Zoé. Ao encontrar o “Albergo Del Sole”, ele compra um broche falso, acha que é de Gradiva. “Descobre” que ela tinha um namorado que morreu abraçado com ela e tem muito ciúme. Como diz Freud, é um delírio de ciúme, “o antigo sobre um novo acréscimo”. Vê o casal em lua-de-mel no hotel e pensa que são irmãos. A moça está com uma rosa vermelha no peito, e Hanold tem seu segundo sonho, aquele em que Gradiva arma o laço para capturar um lagarto e diz que nossa colega tem razão, esse método é ótimo e ela já o utilizou com excelentes resultados.

O sonho o angustia, um pássaro vem salvá-lo, carregando o lagarto em seu bico. Colhe rosas vermelhas (sem saber por que) e tem ciúmes de Gradiva. Sua satisfação e respeito pelo casal que se beija corresponde a uma excitação sexual, e aí há uma modificação da anotação do gozo. Passa-se da insatisfação para a satisfação. É o caminho da cura. Ao levar o broche a Gradiva, ela usa a palavra sole em italiano, fazendo-o remeter-se ao “Albergo Del Sole” e quem aparece ao meio-dia, em pleno sol, é ela mesma. Aí ele tem uma tonteira; ante a possibilidade de encontrá-la ele tem um fading, um desvanecimento. Há a cena da repartição do pão e do tapa na mão para espantar a mosca. A amiga aparece com o noivo e ao perguntar a Zoé se ela também se casou, Hanold foge. Não desmaia, mas foge, o que é equivalente à fuga diante do desejo do histérico. Aí ele começa a deixar o delírio de acreditar ser ela uma jovem pompeana.

A fuga histérica é isso: o histérico seduz e se furta como objeto, escapole. Mas aí um violento desejo de tornar a vê-la luta contra os últimos ímpetos da fuga. Graças às interpretações de Zoé, o desejo de tornar a vê-la é mais forte do que o ímpeto de fuga.

Zoé fala a Hanold: “Você não tinha olhar para me ver nem boca para falar comigo e nem memória para lembrar nossa amizade infantil. Eu era invisível para você”. Hanold, depois da infância, tinha entrado na latência freudiana. Eles se encontraram várias vezes, mas a amizade da infância completamente erotizada foi recalcada e Hanold não reconheceu isso, até que houve um retorno do recalcado. E foi esse retorno que o fez ir à Itália. O canto do canário precipitou sua fuga, e o acaso, ou quem sabe um sexto sentido (grifo meu) o fez ir logo para a Itália onde ela também estava.

O sobrenome dela, Bertgang, significa “alguém que brilha ao avançar”. Aí está a estrutura metafórica, o avançar, e nela há sempre um termo que é pulado e é o que nos interessa. O avançar está recalcado, e é o avançar que se encontra como a característica do desejo dele, uma condição fetichista (segundo Quinet) do desejo dele, o tipo de andar.

Se na psicose há uma metáfora delirante (que vem no lugar da metáfora paterna que não advém), na histeria temos uma metáfora desejante e o significante do desejo recalcado é o avançar, na forma de caminhar, de pegar, de pegadas, como forma de pegar também o signficante recalcado.

Quanto ao segundo sonho dele, em que Zoé está caçando o lagarto, há a substituição da figura do pai dela por ela e a presença da amiga (a que estava em lua-de-mel). Zoé estava lá, na associação de Hanold, para caçar um homem, um marido, como sua amiga fizera. E ele se encontra no lugar do lagarto, o de ser laçado. A rosa vermelha é o símbolo da ligação amorosa, da sexualidade, e há também a fenda por onde Zoé desaparecia, que é a mesma por onde o lagarto que o pai dela estava caçando escapou. Temos aí a representação do ato sexual: o lagarto entrando na fenda, o lagarto como símbolo fálico. Mas Zoé também está no lugar do lagarto, porque ela também desaparece pela fenda, e ela também está como a caçadora.

Hanold é o lagarto a ser caçado e também o passarinho na gaiola. Então ele foge. Freud diz que esse lugar do sofrimento é um lugar masoquista. O desejo de ser aprisionado pela jovem que amava, de obedecer a seus desejos e submeter-se a ela, era na verdade um desejo de caráter passivo e masoquista. É a posição do sujeito na fantasia histérica, na histeria masculina. No processo analítico há uma possibilidade do sujeito vir a ocupar a posição do sujeito desejante, a partir das interpretações de Zoé, em que ela vem ocupar o lugar do objeto do desejo. Hanold vai retomar, então, o lugar do sujeito desejante, que já tinha exercido nas brincadeiras sexuais da infância com ela.
O delírio histérico é uma tentativa de fuga, é uma expressão da fantasia. O delírio psicótico vem no lugar onde a fantasia não veio. E Hanold constrói sua fantasia roteirizando-a, pondo-a em cena.

Para terminar, quero citar o belo texto de Ruth Silviano Brandão sobre Gradiva8: “Fantasia pompeiana é algo que remete ao imaginário social de uma época capaz de construir a escultura da jovem andeja, produto e produção cultural; é, também, fantasia de Hanold, arqueólogo alemão que desencava o passado e para quem Pompéia se oferece como objeto de um mundo morto; ou também, fantasia amorosa de Freud, fascinado por uma certa dama fulgurante, que avança, chamada Psicanálise. Para ele Zoé-Gradiva é a própria Psicanálise, como possibilidade de cura por meio do desrecalcamento e da condição de viver a realidade. Zoé-Gradiva se é filha, é mãe, por sua solicitude, é também vida e remete a um progredir com brilho, desejo de seu pai metafórico, Pai da Psicanálise”.

Zoé-Gradiva é insistência de nomear a mulher, por significantes múltiplos, na falta de um só que registre o feminino. “Gradiva é romance e é nome feminino, curiosamente designado pelo gesto masculino de nomeálo. Gradiva é feminino de Mars Gradivus e aí se inscreve, no masculino, seu duplo, nomeada por Hanold-Jensen que a constrói e por Freud, que a restaura.”

Abstract
This article presents an abstract of Freud’s essay “Delusions and Dreams in Jensen’s Gradiva”, and comments it under the light of lacanian psychoanalytic concepts. It approachs, mainly, the different types of delusions and the male hysteria of the principal character of the novel.

Keywords
Delusions – Dreams – Significant Ambiguity – Repression – Desrepression – Male hysteria

1 JONES, Ernest. Vida y obra de Sigmund Freud, v.III, La etapa final, Apéndice A, Carta a Arthur Schnitzler, 14 de maio de 1922. Buenos Aires: Editorial Nova.
2 FREUD, Sigmund. Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen, v.IX. Obras Completas de Freud, Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
3 JENSEN, Wilhelm. Gradiva – uma fantasia pompeiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
4 JONES, Ernest. Vida y obra de Sigmund Freud, v.II, Los años de madurez, cap.IV, Aplicaciones no medico’s del Psicoanálisis. Buenos Aires: Editorial Nova.
5 FREUD, Sigmund. Construções em análise, v.XXIII, 1937, Obras Completas de Freud, Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
6 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, v.XXI, 1930, Obras Completas de Freud, Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
7 QUINET, Antonio. Registro de aulas ministradas em Belo Horizonte, em 2002 e 2004. Agradeço ao colega Arlindo Pimenta que me forneceu o registro das duas aulas, às quais não estive presente, mas pude aproveitar para este trabalho
8 BRANCO, Lúcia C., BRANDÃO, Ruth S. Literaterras. As bordas do corpo literário. São Paulo: UFMG/Annabluma, 1995, p.29.

Recebido em Junho/2005, aceito em Agosto/2005
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