Carlos Pinto Corrêa (2)
Psicanalista. Membro do
Círculo Psicanalítico da Bahia
Palavras-Chave:
afeto – tempo – Psicanálise – Filosofia
– Literatura
Resumo:
O afeto possui uma concepção bastante ampla,
envolvendo a História, a Filosofia, a Psicanálise (especialmente
com Freud e Lacan), e também a Literatura. O presente texto é
antes de tudo uma reconsideração do afeto através
do tempo.
Afeto:
adesão por outrem; estado moral (bom ou mau); disposição
de alma; agrado e desagrado; emoção (amizade, amor, ira,
paixão). Um estado limitado no tempo e qualidade essencial de
uma emoção; enfim, expressão qualitativa e quantitativa
de energia das pulsões, mas também mal-estar, doença,
achaque.
Nada mais fascinante que repensar questão tão abrangente
e ao mesmo tempo tão insistentemente presente na vida do ser
humano em uma conexão histórica, presente desde o ato
da criação ao final dos tempos, do nascimento à
morte, tangenciando o saber psicanalítico em seu cerne, como
pensava Freud, ou revisto como queria Lacan. Ainda posso falar de afeto?
Se por um lado é um acontecer de todos os tempos, por outro incide
na noção de tempo, daí a idéia de um tempo
do afeto, que nos leva a pensar em algo dinâmico e que pulsa.
Concepção
Filosófica do Afeto
Na
filosofia, entende-se como afeto, em seu senso comum, as emoções
positivas que se referem a pessoas e que não têm o caráter
dominantemente totalitário da paixão. Enquanto as emoções
podem se referir a pessoas e coisas, os afetos são emoções
que acompanham algumas relações interpessoais, das quais
fica excluída a dominação pela paixão. Daí
a temporalidade indicada pelo adjetivo afetuoso que traduz atitudes
como a bondade, a benevolência, a inclinação, a
devoção, a proteção, o apego, a gratidão,
a ternura, etc.
“Afeição é usado filosoficamente em sua maior
extensão e generalidade, porquanto designa todo estado, condição
ou qualidade que consiste em sofrer uma ação sendo influenciado
ou modificado por ela” Abbagnano (1971). Implica, portanto, em
uma ação sofrida. Diz-se que um metal é afetado
pelo ácido, e que alguém tem uma afecção
pulmonar, mas as palavras afeto e paixão são reservadas
aos humanos.
Aristóteles chamou de afetivas as qualidades sensíveis
porque cada uma delas produz uma afeição dos sentidos.
Ao declarar no princípio De anima o objetivo de sua investigação,
mostra que visava conhecer, além da natureza e da substância
da alma, tudo o que acontece à alma, tanto as afeições
que lhes são próprias, quanto aquelas que tem em comum
com os animais. Mas, a palavra afeição não só
designa o que acontece à alma, como ainda qualquer modificação
que ela sofra. Esse caráter passivo das afeições
da alma parecia ameaçar a autonomia racional. Daí os estóicos
marcarem uma dicotomia que chega aos nossos dias, as afeições
e por extensão as emoções seriam irracionais. Com
essa polarização o irracional (não humano, ou animal)
toma conotação moralmente negativa. Para a afeição
são criadas expressões como perturbattio animi, ou concitatio
nimia, usadas por Cícero e Sêneca. Vem de muito longe a
questão do menosprezo ao afeto como menor, frente ao racionalismo
desejável e triunfante. A noção de que a afeição
pode ser boa ou má segue até Santo Agostinho e os escolásticos,
que mantêm o ponto de vista aristotélico da neutralidade
da afeição. Entre o bem e mal, esclarece Santo Agostinho,
as afeições precisam ser moderadas pela razão,
ponto de vista também defendido por Tomás de Aquino.
As questões valorativas sobre a qualidade ou modificações
produzidas no ser humano pela afeição (como ação
externa) são mantidas na tradição filosófica.
É expressa geralmente com a palavra passio e que a partir da
metade do século XVIII assume seu significado moderno de paixão.
O tema faz parte da reflexão de praticamente todos os filósofos,
desde a Antiguidade até nossos dias. Sem esgotá-lo, cada
autor traz novas luzes ou novos conflitos sobre o afeto. Spinoza, ao
tratar de uma questão anteriormente polemizada sobre a ação
da afeição, nomeia seus subprodutos indispensáveis:
o agente e o paciente. É essa terminologia que ele usa para definir
o que chama de affectus e que nós chamamos de emoções
e sentimentos. Ele considera as emoções, os sentimentos
e as paixões como impotência da alma que pode ser vencida
desde que transformada em idéias claras e distintas. Assim a
idéia se distingue apenas racionalmente da emoção.
De novo encontramos a desvalorização do afeto como indesejável
ou distúrbio, e já apresentado com seu eficiente antídoto,
sua redução ou anulação pela racionalidade.
Spinoza vai mais longe apontando que Deus é desprovido de idéias
confusas e que, portanto, está isento da afeição.
Este nos parece um argumento grandiloqüente sobre a racionalidade
como a forma mais pura, verdadeira e mesmo divina de exercício
da mente humana. Em nossos dias a questão provoca divergências
importantes pela concepção de um Deus desumanizado, que
por sua racionalidade estaria impedido de amar o que criou ou de acolher
os que dele se aproximam. O triunfo dessa racionalidade e a anulação
do afeto sugerem uma defesa contra o desconhecido, o incontrolável
dos afetos despertados.
Esta complicada relação de causa e efeito entre Deus e
suas criaturas provoca debates que poderíamos dizer apaixonados.
Platão na República, livro VI, diz que “Deus por
ser bom não é causa de tudo, como se diz comumente. Para
o que há de bem Ele é o único autor, mas para o
que há de mal é preciso encontrar a causa fora de Deus”.
Isto nos leva a dizer que o afeto não é de Deus por ser
mau e não se pode reclamar que ele tenha sido criado por Deus.
Nessa consideração do afeto entre Deus e os homens poderíamos
também tomar as palavras de São Paulo: “a sabedoria
dos homens é loucura aos olhos de Deus e a sabedoria de Deus
é a loucura aos olhos dos homens”. Platão diz também
que a sabedoria dos homens é a loucura aos olhos do sábio
e que a sabedoria do sábio é loucura aos olhos dos homens.
Isto nos remete à questão da falta de objetividade do
saber ou das incertezas do que costumamos chamar de verdade, possível
na pureza do mundo intelectual, mas sujeita à impossibilidade
do encontro de saberes (verdades). Resta-nos fazer uma reflexão
sobre qual o caminho da verdade na questão do afeto, tão
sujeita a juízo de valor.
É bom lembrar que essas questões inconciliáveis
do afeto estão permeadas pelo sofrimento humano. A submissão
na fé ou a aceitação complacente das concepções
religiosas podem ser questionadas pelo que se costuma chamar de livre
pensamento. Mas, este caminho tantas vezes considerado como uma espécie
de razão humana, não é senão um outro tipo
de afeto, chamado sentimento de liberdade. Esta palavra mágica
é, entretanto, relacionada à razão humana e se
constitui um orgulho nosso. Aqui vale lembrar uma importante reflexão
de Nietzsche (1881): “é este orgulho, porém, que
nos torna hoje quase impossível sentir como os imensos períodos
de moralidade do costume que precederam a história universal
como a verdadeira e decisiva história que determinou o caráter
da humanidade, em que o sofrimento era virtude, a crueldade era virtude,
a dissimulação era virtude, a vingança era virtude,
a negação da razão era virtude, enquanto o bem-estar
era perigo, a compaixão era perigo, ser objeto de compaixão
era ofensa, a loucura era coisa divina, a mudança era imoral
e prenhe de ruína!” O filósofo ainda de modo provocativo
pergunta se é possível acreditar que isso tudo mudou e
conseqüentemente a humanidade trocou de caráter. Sua resposta
nos coloca frente à questão do bem e do mal, a virtude
e a cobiça. Para Nietzsche este não é um jogo racional,
mas o triunfo da crueldade pela adesão à privação
e à moralidade. Como vemos, as dificuldades da contingência
humana resvalam sempre na questão do afeto, que seria em última
instância o filão da possível felicidade humana.
No
Tempo de Freud
Contemporânea
ao próprio nascimento da psicanálise, a questão
do estudo do afeto surge em uma rede intrincada com outros conceitos,
especialmente a pulsão e a angústia. Entendido como um
estado emocional, inclui toda a gama de sentimentos humanos, do mais
agradável ao mais insuportável, manifestado de forma violenta,
física ou psíquica, de modo imediato ou adiado. Assim
além do entrelaçamento conceitual, estamos diante de um
acontecer permanente e intenso na vida do homem, companheiro desde o
nascimento até a morte.
Freud tenta sua primeira classificação das neuroses, levando
em conta a forma pela qual um sujeito se comporta com relação
aos seus afetos. Em 1894 escreveu a Fliess: “Há ainda centenas
de lacunas grandes e pequenas nas questões das neuroses, mas
estou me aproximando de um contorno e de algumas perspectivas gerais.
Conheço três mecanismos: o da transformação
dos afetos (histeria conversiva), o deslocamento do afeto (idéias
obsessivas) e a troca de afetos (neurose de angústia e melancolia)”.
No ano seguinte (1895) a noção de afeto assume grande
importância nos “Estudos sobre a Histeria”, quando
na psicoterapia da histeria é descoberto o valor da ab-reação.
O desenvolvimento ulterior do conceito de afeto vai ilustrar a diretriz
assumida por Freud em Os Chistes e sua relação com o Inconsciente
de “tratar do conceito de energia à maneira dos filósofos”
(1905). Em 1915, no estudo sobre a repressão trata do afeto relacionando
a representação com o quantum, e em 1927 em “Inibição,
Sintoma e Angústia”, volta à perspectiva econômica
do “quantum de afeto” relacionado à situação
arcaica da urgência vital. Nesse trabalho, a angústia é
um afeto que ocupa uma posição excepcional entre os estados
afetivos pois, será que conseguiremos compreender o que diferencia
tal impressão (Empfindung) de outros afetos de desprazer-tensão,
dor, luto? Mas a questão pode ser mais bem definida. “A
angústia é a reação ao perigo. E não
podemos nos impedir de pensar que é graças à sua
ligação com a essência do perigo que o afeto de
angústia deve seu poder de conquistar uma posição
excepcional na economia psíquica.” Mas é também
nesse texto que Freud se livra da questão da inferência
de processos inconscientes a partir da consciência. Destituída
a origem consciente, valoriza a inferência regressiva (Zuruckerschliessen),
enfatizada sobretudo na natureza dos processos inconscientes. Em oposição
à qualidade dos elementos conscientes, temos os processos essencialmente
dependentes de uma determinação quantitativa.
Ficou em Freud a noção de afeto fora da referência
de consciente. Mas o próprio Freud pergunta: “É
legítimo falar de afeto inconsciente?” Ele se recusa a
estabelecer um paralelo com o afeto dito inconsciente (sentimento de
culpabilidade do inconsciente, por exemplo) e as representações
inconscientes. Laplanche e Pontalis (1968) lembram que uma diferença
notável existe entre a representação inconsciente
e o sentimento inconsciente, e citam Freud: “A representação
inconsciente, uma vez recalcada, permanece no sistema Ics como formação
real, tanto que o afeto inconsciente não corresponde senão
a um rudimento que é somente um advir, a se desenvolver.”
No
Tempo de Lacan
Podemos
iniciar por uma querela muitas vezes retomada: os lacanianos falam de
afeto ou o tema está fora de moda?
É conhecido o acontecimento em Montreux, na Suíça,
em uma jornada sobre o ensino de Lacan. Um dos participantes que se
dizia não lacaniano escrevera uma tese sob a orientação
de Paul Ricoeur sobre o afeto. Essa pessoa, com certeza ainda no entusiasmo
com seu recente texto, faz uma acusação pública
de que os lacanianos jamais falaram de afeto. Lacan foi enfático
em sua resposta: “Eu sempre falei de afeto.” Isto aconteceu
em 1970, mas nos parece que essa acusação ecoa até
nossos dias na fala ou queixa, especialmente partindo de psicanalistas
não lacanianos. Do mesmo modo, a resposta de Lacan é reverenciada,
ainda que para muitos seja apenas uma frase.
No dizer de Laurent (1986), a frase-resposta tem algo de verdadeiro,
pois Lacan disse que o inconsciente é estruturado como uma linguagem
e acrescentou depois que nem tudo é inconsciente em psicanálise.
Lacan comentou o texto de Freud (1915) sobre o afeto, afirmando que
segundo o ponto de partida do mestre, deve-se separar representância
de quantidade já que os dois termos possuem destinos diferentes.
O representante é recalcado e a quantidade é deslocada.
A partir deste ponto Lacan propõe reconsiderar outros textos
de Freud sobre o afeto. A separação entre representação
e quantidade (quantum) e a separação entre o intelectual
e o afetivo criam dificuldades no seu entendimento. Lacan nos diz então
que “algo no afeto é verdadeiro como um signo, quer dizer,
ele é imediatamente compreensível” Laurent (1986).
O afeto seria uma relação, um acesso direto ao verdadeiro
independente da cultura, da época ou da língua. Existe
sua expressão como as lágrimas na tristeza, o riso na
alegria, embora esse riso possa também, em determinadas circunstâncias,
expressar ferocidade, como é o caso dos chineses.
O ponto de partida para a compreensão do afeto pela psicanálise
tem sido sempre a manifestação histérica. Em 1915
Freud disse que o afeto é um ataque histérico codificado,
estabelecido e fixado na espécie. Daí possivelmente Lacan
ter considerado o afeto como uma estrutura de ficção,
como no sintoma histérico. Dito de outro modo, o sujeito histérico
sabe que o afeto mais verdadeiro é faz-de-conta, é semblante.
Esta questão coloca o próprio sujeito frente à
suspeição sobre a verdade e não-verdade do próprio
afeto. No seu conflito, é comum o histérico declarar as
dúvidas sobre a autenticidade ou veracidade de seus afetos e
até de suas paixões.
Em Televisão, Lacan (1973) ensina também que o afeto não
é verdadeiro, ele é aquilo que deve ser verificado. Na
experiência analítica precisamos fazer com que o afeto
seja tomado como verdadeiro, isto é, explorar aquilo que no afeto
tem a ver com o inconsciente. Mas, precisamos saber até que ponto
um afeto procede do inconsciente. Para Lacan o afeto não é
sentimento, como a angústia. Não sendo um sentimento é
uma paixão, ou como está dito mais claramente: “o
afeto é uma paixão da alma”, reforçando a
diferença entre afeto e paixão.
A expressão paixão da alma foi cunhada por Descartes,
que relacionou cinco afetos essenciais: amor, ódio, desejo, alegria
e tristeza. Tristeza e alegria são as duas paixões primárias,
pois a alma só é imediatamente advertida das coisas que
acontecem com o corpo por intermédio do sentimento da dor. A
dor produz a tristeza na alma. Aqui podemos reconhecer a primeira experiência
isolada por Freud (1895) e apresentada no Projeto para uma Psicologia
Científica. Como Descartes, Lacan apreende inicialmente dois
afetos que são a tristeza e a alegria, para depois acrescentar
a felicidade e o tédio.
A tristeza existe quando o saber que um sujeito tem passa longe de seu
gozo. Laurent (1986) mostra que “é dessa tristeza que o
sujeito obsessivo se queixa na depreciação da vida amorosa
marcada pelo isolamento, que é uma tentativa nobre de isolar
o saber do gozo, conferindo-lhe um saber triste.”
A histérica mostra impotência do saber em sua vinculação
com o gozo. É quando o homem se afasta da sedução
que a histérica se deprime. Ela se torna testemunha da tristeza
do seu saber. Na histeria e na neurose obsessiva há uma relação
entre saber e gozo e na psicose essa relação é
externa e excluída. Para a psicanálise não se chega
ao saber onipotente, mas somente até onde o sujeito pode saber.
O que lhe parecia impotência (de vinculá-lo ao gozo) é
desvelado como sendo da ordem do impossível. Esta descoberta
na análise é uma descoberta alegre. O saber é alegre
por manter a abordagem ao gozo. É um saber de tudo o que cada
um sabe e está apenso ao não-saber acerca do ponto do
gozo. Vale lembrar ainda que o saber só é alegre ao se
tocar no gozo.
Voltando à questão do afeto na obra de Lacan, podemos
agora afirmar que em sua longa e profunda inserção na
questão do gozo, o afeto está sempre presente. Ele faz
inclusive uma separação entre uma série de afetos
de um lado e de outro aqueles que se encontram no gozo. Lacan faz ainda
importante observação sobre a temporalidade dos afetos,
quando lembra que eles duram apenas um momento, enquanto o gozo estrutura
o sujeito. Isto para Lacan constitui o caráter limite e paradoxal
da angústia: ao mesmo tempo em que procede do afeto, ele toca
o gozo.
O
Tempo no Afeto
Tratando
do Gozo no Tempo, notamos que “o homem moderno vive uma espécie
de antinomia com o tempo, uma espécie de disputa em que as horas
são inimigas e ao mesmo tempo preciosas” (Corrêa,
2001). Com isso o tempo perde sua suposta condição de
objetividade, tornando-se um ponto de incidência de suas reações
afetivas.
O tempo que passa, o difícil dia que se finda, a marca atenuada
ou culposa do passado, a inexorável incisão do presente,
ou o campo de incertezas do futuro, são marcas de uma adjetivação
clara em que falar do tempo sugere sempre uma conotação
de bom, mau, produtivo, triste, alegre. O afeto incide sobre o tempo
vivido transformando-o e tornando-o um atributo (com qualidades que
não pertencem à sua essência). Ao tempo assim vivido,
deve-se acrescentar a questão de que estados diferentes de afeto
são responsáveis pela percepção alterada
do tempo. O saudoso professor Lopez Ibor (1969) em feliz sentença
definiu a angústia como uma concentração de tempo.
Palavras, ocorrências, dificuldades a resolver, o trabalho e afetos
diferentes, muitas vezes coisas toleráveis a seu tempo, se reúnem
em um espaço de tempo impossível à consciência.
De outra forma, a relação entre afeto e percepção
subjetiva do tempo é uma vivência comum a todos nós.
A lentidão do tempo de sofrimento e de espera e o tédio
imobilizador do relógio fazem contraponto aos momentos felizes,
ao encontro com o prazer quando tudo passa tão depressa.
A literatura tem se mostrado extremamente rica na apresentação
das variações do sentir a espera marcada pelo desejo,
o ato de consumo e a nostalgia da conclusão do ato ou até
uma espécie de luto pela perda do desejo saciado. Na verdade,
é como Lacan ensinou em 1962. O afeto está sempre ligado
àquilo que nos constitui como sujeitos desejantes em nossa relação
com o outro semelhante, com o grande Outro, como lugar do significante
e da representação do objeto a. A manifestação
literária do afeto tocando todos estes pontos é como se
tocasse o Real, que o poeta toma como se fosse a própria vida.
Esta é a matéria-prima fundamental da poesia. Escolhemos
um fragmento ilustrativo. Tomemos Fernando Pessoa:
E
a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.
A certos momentos do dia recordo tudo isso e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste
auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira
da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência
iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança
e as Canárias.
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.”
A
concentração de temas em um tempo que transforma o presente
em angústia, torna-o insuportável e evanescente. O poeta
frente à tentativa de encontrar um tempo compassado ao que sente.
O desassossego de um prazer que é na verdade o gozo.
Key words
Affect – Time – Psychoanalysis – Philosophy –
Literature
Abstract The affect conception is very broad. It encloses History, Philosophy,
Psychoanalysis (Freud and Lacan), and also Literature. This text is
above all a reconsideration of affect through time.
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Endereço para correspondência:
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