Resumo:
Mostra as semelhanças entre o cinema e o sonho: “O
homem busca no escuro do cinema o isolamento do mundo para viver uma
experiência imaginária com todas as emoções
proibidas e perigosas; sai delas como se despertasse de um sonho”.
Desde o início da civilização, o homem, mobilizado
pelo desejo, busca a escolha de um recinto escuro e silencioso, onde
o mundo é colocado em parênteses, para viver uma experiência
imaginária, com todas as emoções, sem riscos e
isento de culpas e medos, sabendo que, após ter vivido essas
emoções proibidas e perigosas, pode sair delas como se
acordasse de um pesadelo. O cinema nos leva ao desconhecido mundo dos
sonhos, da fantasia. Quando começou, não se sabe. Estabelecer
um marco é impossível. Cinema é sonho, é
fantasia, não tem começo nem fim.
A promoção do sonho tem mesmo sido a razão de ser
do cinema desde que apareceram as primeiras projeções;
daí os aspectos que o liga à psicanálise estarem
sempre presentes na teoria e na prática do cinema. Comecemos
com uma retrospecção aos primórdios da humanidade,
quando o homem buscava as cavernas escuras para desenhar figuras de
animais com formas em relevos, superpostas, pintando os sulcos com cores
variadas. Mobilizando uma lanterna de tênue luminosidade, percebia
o contraste com as trevas, realçando algumas cores e ocultando
outras; o animal desenhado aparecia e desaparecia, resultando a impressão
de movimento. Esses pintores certamente já tinham os olhos e
a alma de cineastas e iam às cavernas para fazer e assistir sessões
de cinema.
Analistas, pensadores e estudiosos de cinema, a exemplo de Deleuze,
Garcia dos Santos, Iragaray, apontam a extraordinária semelhança
entre a Caverna de Platão e a situação reinante
na sala de projeção cinematográfica. Ali na caverna,
fundamentalmente uma sala de projeção, situada na zona
fronteiriça entre a aparência da essência, entre
o sensível e o inteligível, a imagem da idéia,
a representação do modelo é o lugar onde o mundo
sensível desaba e onde caímos literalmente, como animais
dominados pelas pulsões. Platão, em relação
à Caverna, desempenha a função de um “lanterninha”
dos tempos modernos; de um lado é o portador da Luz – conhecimento
e razão, representante da idéia do bem, da transcendência,
iluminando o caminho dos que estão nas trevas, conduzindo-os
a seus assentos ou guiando os prisioneiros libertos para fora da caverna;
por outro lado, no papel de “lanterninha” também
cabe a ele vigiar a sala escura surpreendendo com sua luz a alucinação
que toma conta dos prisioneiros; é aquele que nas salas de projeção
ameaça o encan-tamento do recinto escuro com sua presença
desveladora. Devem ser segregados em guetos (o que subverte a verdade),
em cavernas, em cinemas, como se fossem zonas de perdição,
zonas de meretrício. O mito da caverna dá início
ao repúdio a todas as construções gratuitas da
imaginação, ao menosprezo do prazer dos sentidos, a negação
de tudo isso que, passados dois milênios, seria a essência
de uma arte, paradoxalmente inventada pelo próprio Platão.
O homem atual, esmagado pelo concretismo da máquina, do sistema
e da técnica, busca o poder que a sala escura tem de revolver
e invocar seus fantasmas interiores. Antes mesmo de o cinema se transformar
numa próspera indústria da cultura, ele já era
visto como um local suspeito, onde algum tipo de iniqüidade ameaçava
vir à tona. As elites intelectuais o rejeitavam, “cópias
degeneradas”, diziam os filósofos, verdadeiro “império
dos sentidos” onde a população inicialmente marginalizada
acorria em massa, buscando evasão e refúgio.
Coincidentemente em 1900, Freud publica “A Interpretação
dos Sonhos” e Méliès lança “Cendrillon”
a primeira projeção em forma de narrativa fantástica;
ambos buscam realizar essa impossível fusão da ciência
com o irracional. Freud traz à luz as fantasias do desejo e o
trabalho das pulsões e Méliès, ao mesmo tempo,
as joga na sala escura. A psicanálise reduzida a um trabalho
artesanal de seletas elites e o cinema designado a preencher a função
de divã dos pobres, ambos produzem um escândalo. A psicanálise
era a ciência da palavra e o cinema arte do silêncio, até
então.
Pierre Jenn observou que a obra de Méliès, tranqüila
na sua superfície, aparentemente desprovida de paixões,
mesmo quando o objetivo é extrair do grotesco o efeito cômico,
apresenta uma fixação pelas mutilações físicas,
monstruosas metamorfoses corporais, corpos que se retorcem, mudam de
sexo, duplicam-se e retornam à forma original. O tema da decapitação
pura e simples é repetido insistentemente. É difícil
deixar de ver nessas cenas de fixação burlesca, a emergência
de uma angústia profunda e arcaica, constante na estrutura das
fantasias de castração que Freud posteriormente usaria
como alvo das suas investigações.
Pierre Jenn também nos chama a atenção para o interessante
e divertido filme “Eclipse de Soleil en Pleine Lune, “onde
o próprio Méliès faz o papel de observador, pelo
telescópio, de um eclipse solar. O sol, ao passar pela lua, resolve
atrevido lhe dar prazer e ela expressa em sua face as delícias
do gozo sexual. O astrônomo excitado se inclina para melhor observar
a cena e... cai janela abaixo!. Tudo numa aparente inocência:
o sol e a lua, o coito, a escopofilia do astrônomo sugere a fantasia
da cena primitiva. Esse cineasta movido pela censura da época
procurava mascarar mais que mostrar algo, que se insinuava e que não
podia ser mostrado (No cinema clássico cenas de sexo explícito,
violência e morte não podiam ser vistos, ao contrário
do cinema pós-moderno de hoje). O fascínio exercido pelo
cinema de Méliès levando multidões para as salas
escuras, está sobretudo nesse componente onírico de fundo
psicanalítico. Esse recurso de censura associado ao mecanismo
do desejo – suprimir o que ameaça mostrar – retarda
o acesso sugerido, prolongando o suspense do jogo erótico; cineastas
de requintada imaginação até hoje o utilizam na
construção de filmes eróticos, de muito sucesso
de bilheteria e que nada têm de pornográficos. O filme
pornográfico perde por causa da sua brutalidade fisiológica;
nele não há o desvelamento progressivo e incompleto tão
necessário à dissimulação do desejo.
Em 1926, Freud entra em acirrada polêmica com Abraham e Sachs
por terem aceitado colaborar com o filme “Segredos de uma Alma”,
que ele próprio havia recusado por vulgarizar a psicanálise,
que lida com o abstrato só possível de ser alcançado
pela linguagem verbal, achando que as imagens só nos podem dar
falsas imitações das coisas brutas. Freud considera marginal
a função do olhar, ficando a psicanálise restrita
à escuta e à interpretação verbal. Freud
admitiu, num texto de 1913, não suportar ser fitado por outrem.
Os autores Renato Mezan, Schneider e Stein observam esse traço
de fobia, identificado na análise dos próprios sonhos,
onde o olhar angustiante tem uma valor central, mascarando fantasias
inconscientes, de natureza agressiva e sexual. Seria uma defesa de Freud
colocar o analista atrás do divã?
Freud por mais que se oponha à imagem, é de imagens que
trata todo o tempo, se não vejamos: ao explicar o sonho, num
cenário composto de imagens semelhantes às de atores num
palco, onde se buscam as representações do desejo reprimido
e mascarado, que ao serem descobertas tomam aspecto de cenas visuais,
não estaria ele falando de cinema, do cinema interior do sonhador?
Curiosa é a semelhança entre o mecanismo do sonho e as
características de uma sala de projeção, denominada
“situação cinema” por Mauerhofer. Em 1947,
o Instituto de Filmologia de Paris dedicou um estudo sobre o estado
de subjetividade do espectador na sala de projeção: o
mundo exterior está ausente, o espectador se encontra num estado
semelhante ao torpor, entregue à regressão e ao abandono,
com a atenção totalmente concentrada a olhar a tela, num
completo envolvimento emocional (bem diferente de ler um livro, escutar
uma música ou assistir a televisão).
Qualquer ruído ou visão fora da tela remete o espectador
à existência de uma realidade externa que o desperta para
a presença do cotidiano, comprometendo o estado psicológico
necessário para a perfeita adesão ao mundo do filme. O
espectador na verdade não “assiste” ao filme, ele
o vivencia de uma maneira, tão próxima do sonho e numa
total intensidade, que não raro ele próprio se surpreende
gritando, xingando, torcendo ou transpirando de emoção.
O espectador desprende-se da poltrona, entra na tela e desfruta a vida
emprestada pelo personagem, converte-se em protagonista do jogo simulado
de eventos. O estado de relaxamento em que se encontrava foi favorecedor
da atrapalhação mental, tornando difícil efetuar
a “prova de realidade” que, segundo Freud, caracteriza o
trabalho do sonho. A essa vivência convencionou-se chamar “impressão
de realidade”.
A busca prazerosa de ir ao cinema pode ter suas raízes no ambiente
de isolamento, silêncio e penumbra aconchegante e sedutora, onde
insistimos em permanecer em desejável passividade, simulando
perfeitamente o ventre materno para onde desejamos retornar. Pode-se
também justificar o desejo de ir ao cinema pela “impressão
da realidade” associada à forma de se relacionar com essa
realidade alucinatória, que pode ser definida como “voyeurista-narcisista”,
porque nela o sujeito “espia” a intimidade do outro pelo
viés da tela, enquanto seu corpo inerte, imaginariamente, é
projetado no enredo, vivenciando o filme como algo que de fato lhe acontece
como se fosse o seu sujeito (efeito sujeito). Ele participa e se identifica
com a situação; um excelente exemplo é o filme
“A Rosa Púrpura do Cairo” de Wood Allen.
No sonho e na fantasia, o sonhador é o ator principal, mesmo
quando ele está representado por outra pessoa, por meio de mecanismos
de identificação e essa dissimulação o leva
a escapar à proibição, ocupando sucessivamente
o lugar de sujeito e do objeto num enunciado. No cinema, a câmera
ocupa sempre o lugar do sonhador, e essa particular relação
do sujeito com os objetos da percepção cria a impressão
de que os acontecimentos se processam no momento presente.
Uma das motivações mais profundas que estão por
trás da invenção técnica do cinema é
induzir no espectador percepções socialmente disciplinadas,
que se fazem passar por representações de um mundo interior.
É comum os analisandos se referirem aos seus sonhos como filmes.
Renato Mezan chega mesmo a definir o sonho como “filme que se
desenrola no interior das pálpebras”. Christian Metz contesta
a comparação entre o cinema e o sonho, baseando-se em
três argumentos:
1. o espectador sabe que está no cinema e o sonhador não
sabe que está sonhando. Isso nem sempre acontece pois se houver
uma participação efetiva do espectador – situação
fílmica, essa situação não o deixa ter essa
percepção e nos estados intermediários entre vigília
e sono o indivíduo sabe que está sonhando. O fato de ele
saber em nada diminui o desejo de estar no cinema, pelo contrário;
2. no filme, o material percebido é real embora o espectador
não o receba como meros estímulos luminosos; ele toma
por representação mental o que não passa de percepção,
e no sonho ele toma como percepção o que não passa
de representação mental;
3. o filme é mais lógico que o sonho, pois ele se identifica
com a elaboração secundária e não com o
conteúdo latente, que é a matéria-prima do sonho.
Um filme que representasse com exatidão os pensamentos oníricos
só teria interesse para as comunidades médicas e científicas.
As películas que melhor representam o sonho são aquelas
nas quais o conteúdo onírico é tratado de forma
semelhante ao evento real, havendo um embaralhamento entre o vivido
e o imaginado.
André Bazin observou que a censura e a simbologia são
funções constitutivas tanto do sonho quanto do cinema.
Na cinematografia, o mecanismo da censura é representado pela
legislação dos códigos de ética, pelos recursos
de linguagem ou pelas regras econômicas do mercado, num sentido
muito próximo da censura psíquica.
Graças à censura, em início e meados do século
XX, diretores de cinema, na luta contra a estupidez do código
puritano, usaram de requintes de imaginação substituindo
com símbolos oníricos o complexo de Édipo, a castração,
as cenas sexuais e tornaram suas obras aplaudidas até os dias
de hoje.
É evidente que não existe uma absoluta coincidência
entre a psicanálise e a cinematografia, cada uma tem um dispositivo
teórico e prático de modalidade diversa, mas nem por isso
se deixa de tirar proveito daqueles fenômenos com os quais seus
objetos particulares se confundem.
Cinema é sonho, é fantasia e como tal não poderia
deixar de ser um tema fascinante para a psicanálise. Não
é sem razão que há muito desejávamos ter
no Círculo Psicanalítico da Bahia um “Núcleo
de Cinema” e que agora é uma realidade.
Keywords
Cinema – Dream – Desire – Fantasy
Abstract It shows the similarities of movie pictures and dreams. “Man seeks
in the dark of the isolation of the word, to live an imaginary experience
with all forbidden and dangerous emotions; he comes out of it as if
he is awaken from a dream”.
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Recebido
em Junho/2005, aceito em Agosto/2005-08-02
Endereço para correspondência:
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Itaigara - Edifício Casa Verde
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