Entre o Desamparo Humano e
o Amparo Divino: Um Caso
Clínico numa Ótica Interdisciplinar (1)
Karin
Hellen Kepler Wondracek
Psicóloga. Psicanalista. Membro titular
do Núcleo de Estudos Sigmund Freud em Porto Alegre. Tradutora
das Cartas entre Freud & Pfister (Ultimato, 1998). Organizadora
de O futuro e a ilusão (Vozes, 2003). Autora de O amor e seus
destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo
entre teologia e psicanálise (Sinodal/IEPG, 2005). Vice-coordenadora
do Grupo Independente de Pesquisas em Psicanálise e Religião.
Coordenadora de Seminário convidada do Círculo Psicanalítico
do R. G. S.
Dedicado
ao Dr. Natal Fachini, em saudosa gratidão pela parceria
Resumo:
Este trabalho traz um caso clínico numa abordagem interdisciplinar:
o referencial psicanalítico é confrontado com as idéias
do filósofo e teólogo Paul Tillich, de modo a considerar
a história clínica dentro de um marco teórico que
leve em conta a dimensão do sagrado. A temática dominante
é o efeito da experiência religiosa sobre o sentimento
de desamparo, e de que forma a economia psíquica da paciente
é modificada através da devoção.
O que escrever do acompanhamento de uma paciente nas suas elaborações?
Como escolher, entre tantas sessões, o que retrata seu sofrimento?
O que registrar, quando se presencia o que não pode ser reduzido
a palavras? Com temor e ousadia, gostaria de recortar alguns fragmentos
para compartilhar a caminhada corajosa da paciente que chamarei de Cássia.
Cássia me procurou no ano passado, por recomendação
do pastor da sua igreja. Tem 35 anos, casada, uma filha, participa há
cinco anos de uma igreja evangélica neopentecostal. Participou
de um curso de “cura interior”, sente-se bem melhor, mas,
como persistem problemas, o pastor a encaminhou para mim.
O motivo da procura é que Cássia não consegue sair
de casa sem sentir muita angústia. O “coração
salta à boca”, as pernas tremem, fica com as mãos
suadas, perde a vontade de sair. Diz que sempre foi assim: desde pequena
escondia-se nos cantos da casa. É uma das filhas menores, entre
seis. A mãe falecera quando estava com 9 anos, e o pai quando
completou 14. Os temores de sair de casa se agravaram quando uma colega
de escola foi estuprada e morta, um pouco depois da morte do pai. Lembra-se
com terror da interrupção das aulas para que todos assistissem
ao funeral da colega, e da sua vontade de nunca mais precisar sair de
dentro de casa.
Aos dezesseis anos conheceu R, logo depois engravidou e casou. Moraram
durante cinco anos na casa dos pais dele. Lá Cássia se
sentiu acolhida e cuidada, pertencendo a uma família. Quando
as condições econômicas melhoraram, alugaram uma
casa, onde residem até hoje.
Desde a adolescência fez vários tratamentos psicoterápicos
e psiquiátricos, de diferentes orientações. Melhorava
por algum tempo, mas os sintomas voltavam. Suas condições
financeiras sempre foram modestas, e atualmente possibilitam combinar
uma sessão semanal, a um preço diferenciado.
As questões de Cássia me remetem a um tema que se tem
imposto a minhas reflexões: a relação entre o desamparo
vivido pelo ser humano e o amparo encontrado na devoção.
No caso de Cássia pergunto: como sua busca do sagrado influenciou
o psiquismo e modificou a economia entre os sistemas? O seu sofrimento
foi atroz, e a mudança de vida a partir da experiência
de fé tem sido muito significativa: o contato com a comunidade
religiosa a faz, literalmente, transcender da luta pela sobrevivência
no cotidiano para outras dimensões – as leituras, as prédicas
e os novos círculos de amizade fazem com que inicie o gosto pelos
livros e pela reflexão sobre o sentido da vida. Podemos falar
de um bem-estar da cultura? Mas será apenas cultura, ou também
o contato com o sagrado?
A vivência comunitária também a sensibiliza para
ser solidária com outras pessoas: auxilia os familiares e pessoas
da congregação, com meios concretos e atenção.
O relacionamento com o marido, também freqüentador da comunidade,
melhora, embora ela sofra com as diferenças de temperamento:
ele é extrovertido, gosta de sair e cercar-se de muitas pessoas;
ela gosta de ficar sozinha, lendo, orando e escutando música,
ou estar com poucas pessoas em conversas mais profundas. Quanto à
sexualidade entre o casal, diz que é algo que existe, mas que
não ocupa o centro da sua vida.
Estará na sexualidade o eixo do seu sofrimento? Ou este será
de outra(s) ordem(ns)? A história revela perdas significativas
em épocas precoces. As perguntas me atravessam: qual a relação
entre o sexual e as marcas mais precoces? Que tipo de desamparo experimentará
na análise? E que tipo de amparo? De que forma sua devoção
religiosa cobre as marcas do sofrimento e provoca um rearranjo no seu
“aparelho da alma”?
O encaminhamento de Cássia a partir de um religioso, seu contexto
de crença e de psicopatologia, me faz incluir, além de
Freud, outra referência teórica: Paul Tillich, filósofo
e teólogo que dialogou profundamente com a psicanálise
e a filosofia existencial2. Resumo apenas um ponto3: Para Tillich a
psicanálise é o sistema teórico por excelência
para compreender a profundidade da alienação humana e
os conflitos inconscientes que permeiam o viver. Porém, além
da dimensão da existência, Tillich refere que faz parte
da natureza humana a dimensão da essência, em que o ser
humano reencontra-se com o sentido do viver e integra-se ao telos. A
crítica a Freud é feita a partir desta dimensão:
O
mal-estar da cultura em Freud mostra que ele é coerente com seu
julgamento negativo da pessoa na sua alienação existencial.
Mas, se avaliamos a pessoa apenas pelo ponto de vista da sua existência
e não consideramos sua natureza essencial, quando tratamos sua
alienação de modo excludente e perdemos de vista sua bondade
essencial, não podemos, na prática, chegar à outra
avaliação.4
Deste
modo, ao Freud não levar em conta a natureza essencial, limitando
a pessoa ao ponto de vista existencial, não pode traçar
outra conclusão e torna-se preso desta. Esta é, para Tillich,
a crítica mais aguda que a teologia pode fazer a Freud.
Entretanto, uma crítica maior está reservada para os ramos
derivados de Freud que se tornaram excessivamente otimistas, como Jung
e Fromm: ao excluírem a pulsão de morte da cena, retiram
da psicanálise sua profundidade de analisar a condição
existencial, e assim desfazem o achado de Freud, que teologicamente
é o mais acurado. Perdendo a profundidade de Freud, falta-lhes
o lugar e a força do irracional.
Ao tecer suas ressalvas a Freud, Tillich até mostra certo humor
ao descrever Freud como puritano que, por isso, não compreendeu
a libido na dimensão do amor e a presença de um eros criativo
que não necessite ser sublimado ou reprimido. E volta-se a Lutero
para ampliar a noção de libido:
Em
comparação com Lutero, Freud é um asceta em sua
pressuposição básica a respeito da natureza do
homem. O protestantismo clássico nega esses pressupostos na medida
em que se refere à natureza criada ou essencial, pois na natureza
essencial do homem o desejo de se unir com o objeto do amor é
efetivo por si mesmo. E esse desejo não é infinito mas
definido. É amor e não concupiscência.5
Faço
este trajeto teórico para preparar o terreno para minha compreensão
das vivências de Cássia, que incluem o existencial e o
essencial, o amor e a concupiscência.
Na evolução do tratamento, o trânsito entre o dentro
e fora de casa melhora aos poucos, paralelo ao trânsito dos conteúdos
trazidos em sessão – o concreto das vivências e sintomas
é entremeado com o diáfano dos sonhos. Cássia se
surpreende com os sentidos dos sonhos, pois seus tratamentos anteriores
não passavam por aí: “Te conto porque tu sempre
vês outras coisas por trás dos sonhos”.
Penso que nos seus sonhos há várias dimensões –
a do inconsciente freudiano, da sexualidade anárquica ou edípica,
mas também da dimensão da essência, do mistério
e do êxtase. É neste diálogo entre Freud e Tillich
que pretendo trabalhar alguns fragmentos de sessões:
“Sonhei um monte... tinha viajado aos Estados Unidos, na Disneylân-dia,
e ficamos num hotel simples – quarto com 3 camas, sendo uma cama
pela metade – de criança – entrou um monte de gente
– era época de carnaval , e disseram que aí davam
cada quarto para 50 pessoas... então teria de dormir um em cima
do outro...estava um calorão. Ficaram lá – no fim
do sonho, eu estava de bermuda e bustiê – tinha um rapaz
me olhando... lembrei da novela das 8, uma artista pedindo para o rapaz
passar a mão no seio dela... lembrei disso e pensei que o rapaz
pudesse querer fazer isso, fui para um canto, para colocar uma roupa
mais coberta”.
“Tive ainda outro sonho: Estava num show da Rita Lee, no teatro.
A última música ela cantou com os braços abertos
– em homenagem a uma pessoa – tocou a todos com a música,
até a ela. Saiu, foi ao camarim, se atirou no camarim –
queriam trocar a roupa dela, ela não queria que tocassem nela
– não queria falar – estava relaxando de toda a tensão
do show.
Aí acordei e dormi de novo – sonhei que havia uma perseguição
aos cristãos, que alguns homens estavam se atirando no mar, para
não serem pegos.... havia uma guerra – o pessoal do exército;
Tinha tanques de guerra, homens, e eu passei por eles, nas não
fiquei com medo. Depois, na casa da R [amiga] e havia mais outra “irmã”.
Estávamos no porão – R e outra “irmã”
junto nos refugiamos num cantinho, como se fosse ali – [apontou
para o canto dos livros no meu consultório] e começamos
a orar. Aí me veio: “estamos ocultas com Cristo, em Deus”.
E eles passaram por nós, vasculharam, e não nos acharam.
Isso diz na Bíblia, e foi assim no meu sonho. Era como se fosse
a Terceira Guerra Mundial, perseguindo cristãos”.
Cássia tece suas associações: “O primeiro
sonho – Estados Unidos – terra que eu gostaria de conhecer...
antes de me converter pensava muito nisso, e ainda penso”.
Digo que pode representar um território estrangeiro dentro dela,
que ela queira conhecer. Estados Unidos não serão o desejo
de unir a sexualidade da cama de criança e da moça de
bustiê?
Cássia comenta que “é deste jeito que eu pensava,
antes de me converter – agora, olhando a novela, me dá
nojo – as mulheres se oferecendo, nem é por estarem apaixonadas,
mas de qualquer jeito. Eu também me vestia assim, e achava bonito
– essa sensualidade, o se mostrar para todos. Agora, não
gosto, e quando vejo, estou escolhendo roupas mais modestas, até
já prefiro maiô que biquini...”.
Mais do que recalcamento, parece de outra ordem, do cuidado com o corporal.
A sexualidade vai para um plano resguardado, quase sagrado, saindo do
plano anárquico. Sofre um vela-mento, uma instalação
de pudor. O pudor instalado possibilita que transite e se mostre, sem
logo sentir-se desnudada e com risco de ser estuprada, como a colega
de aula na adolescência? A sexualidade que se instala como “jardim
fechado” (Cântico dos Cânticos), cuja chave está
na sua mão para entregar a quem queira?
Quanto ao sonho com Rita Lee, Cássia comenta o desejo da cantora
de não ser tocada nem interrompida, após o show: “Assim
me sinto quando cultuo a Deus – me acostumei a ir dormir tarde,
porque o R (marido) chega tarde. Mas, mesmo quando ele chega mais cedo,
eu continuo indo dormir tarde – fico lendo a Bíblia, e
cultuando – me sinto assim como no sonho – um estar bem
entregue, bem gostoso. Não quero outra coisa... De manhã,
quando vejo, também já passou a hora, só quero
ficar assim, na presença de Deus”.
“Fé é estar possuído pelo que toca incondicionalmente”,
escreve Tillich6. O êxtase maior é este, e quem poderá
reduzi-lo? No entanto, acontece na espera pelo retorno do marido, e
quando este volta, este êxtase já a possuiu, de sorte que
não anseia pelos prazeres sexuais diretos. O gozo já aconteceu
no plano místico, de sorte que não deseja o orgasmo com
ele. Será correto interpretar como fuga e repressão? Ou
há aqui duas ordens, duas dimensões a serem integradas
– um eros que se manifesta na essência e pode ser auxiliado
a se manifestar também na existência?
No “Suplemento Metapsicológico à Teoria dos Sonhos”,
Freud, em nota de rodapé7, comenta sobre a existência de
sonhos anagógicos8, e cita Rank para afirmar que os sonhos podem
admitir mais de uma interpretação. Justamente na época
desse escrito, Freud também acrescentou um parágrafo sobre
a interpretação anagógica em A Interpretação
de sonhos9. Será algum reflexo da discussão com Oskar
Pfister a respeito dos processos de análise e síntese,
após o lançamento dos livros Was bietet die Psychanalyse
dem Erzieher10 e Warheit und Schönheit in Psychanalyse11, no qual
Pfister relata um caso de análise onde os sonhos foram interpretados
em sentido analítico e anagógico?12 Poder-se-ia tecer
uma relação entre as dimensões existencial e essencial
de Tillich com as interpretações analítica e anagógica
dos sonhos?
Seguindo este raciocínio, poder-se-ia ir um passo adiante, e
perguntar se estas as dimensões se interpenetram, de sorte que
uma diminuição de sofrimento ou cura na dimensão
existencial – mundo das pulsões – é alcançada
através da dimensão essencial? É esta relação
que me ocorre ao pensar no terceiro sonho de Cássia, do “estar
oculta em Cristo”. Ao comentá-lo, me fala que se sente
curada dos seus medos de criança. De pequena ficava escondida
como no sonho, na impressão de que a qualquer momento pudesse
vir uma guerra. No sonho, é a representação de
Cristo que a protege de um masculino ameaçador. Cristo, referência
de um masculino amoroso, cuja cobertura simultaneamente a leva ao êxtase
e livra do masculino estuprador.
E a transferência? “Nos sonhos, sempre tem uma pessoa comigo
– e esta pessoa não falava, mas sempre estava junto –
para eu não me sentir sozinha”.
A função analítica é oferecer uma presença,
que aceite ocultar-se com ela nos cantos escuros, que aceite passar
pelas experiências terroríficas, mas também pelas
experiências protetoras – calando perante o extático,
e interpretando perante o traumático e o re-calcado.
As saídas de casa estão mais fáceis, aprendeu a
dirigir e arrisca-se a sair de carro. Dois meses depois, traz um sonho
de que na sua sala havia um quadrado não coberto pelo piso, onde
cresceram morangos. “Muito bonitos, mas amargos”: diz não
gostar muito de morangos, por mais belos que sejam.
Fala de outro sonho: “Eu falava para a Maria [amiga] que eu tinha
um clitóris muito grande, e com vergonha de mostrar para ela.
Mas resolvo mostrar, e ao abrir a calça, havia uma gaze que puxei.
Veio junto com a gaze um cordão, pensei ‘como vou deixar
a R ver isso?’; aí puxei e cortei. Me deu nojo, parecia
um cordão umbilical, não achava normal”.
Nas associações, fala que sua irmã, quando teve
a filha, enrolou o umbigo com gaze, “mas como não sabia
manejar, ao abrir a gaze puxou o umbigo. Ficou preocupadíssima,
ligou para o médico, ele disse que só se preocupasse se
sangrasse”.
Falamos de um corte sofrido, um corte que interliga o nascer ao sexual
na forma de uma teoria sexual infantil, e de uma mãe não
atenta para os primeiros cuidados. Cássia comenta: “Ao
nascer, ficamos desprotegidos; isso é um corte. Isso fica marcado.
Com Deus, ganhamos uma nova proteção. Desde lá,
não me sinto mais tão mal”.
O corte no umbigo é símbolo do desamparo, marca do humano.
A partir daí, as necessidades são supridas pelo Nebenmensch,
portador do “auxílio alheio”13, que na sua história
deixa marca de inabilidade alheia – no duplo sentido da palavra
–, que traz o risco de deixá-la com ventre aberto; o desamparo
se torna traumático e exige como atadura o uso de móveis
e paredes da casa. Por esse “buraco” sangra sua angústia,
afeto desqualificado em estado bruto de desamparo. A devoção
funcionou, em primeiro plano, como um tamponamento, o “estar oculta
em Cristo” é gaze protetora dessa ferida de “des-cuido”.
Após o corte do cordão umbilical, o bebê enche seus
pulmões de ar, invisível presença que garante a
continuidade da vida. Na simbologia cristã, o ar remete à
dimensão da essência – o sopro do espírito
que é dado como sinal da presença divina, para que a orfandade
não se instale nos discípulos14.
Parece que Cássia conhece o pensamento de Paul Tillich, falando
do desamparo e amparo – existência e essência. Mas,
como Tillich, Cássia também confere um lugar a Freud:
quando trabalhamos o motivo de a gaze estar nos genitais, de a ferida
ser ali, ela fala que “ser mulher é feio, ser homem é
melhor – mulher sofre mais; para homem é mais fácil.
Só quando me converti comecei a gostar de ser mulher, pois vi
que Deus me ama assim”. A ferida feminina agudizada pela sua história
– a mãe doente e descuidada que não conseguiu cuidar
das cicatrizes; o pai prepotente e livre servido por todos. A religiosidade
que funciona como um olhar identificatório que restaura o narcisismo.
Na devoção encontra o gozo na identidade feminina, uma
presença que reconstitui seu corpo de mulher.
As feridas podem ser “re-veladas”, ainda com muito temor.
Poderá mostrar à amiga analista a sua feminilidade deturpada
e desvalorizada? Esta poderá ser “des-velada” e cuidada
em sua dor e sangramento?
A sexualidade, depois do amparo vivido, pode começar a mostrar
suas feridas, sob a forma de falta de desejo e inveja da capacidade
masculina de dominar e de se excitar. O clitóris grande interpretado
como “feio”, a sexualidade “feia”, que enfim
pode ser trabalhada. Morangos que crescem, mas são amargos, sexualidade
crescida na falta de piso do social (sala), por isso amarga. A doçura,
por ora, está na devoção, na ligação
com o transcendente que a recria como mulher, e permite a expressão
do gozo. Segundo Tillich, eros não precisará deixar o
espírito para migrar ao corpo. A lógica protestante da
simultaneidade não opõe sexualidade e espiritualidade;
nem carne e espírito.
Cássia conta que falou com o marido dos seus desejos de ser novamente
conquistada para usufruir a sexualidade. Reclama que ele é muito
apressado, sem rodeios e agrados. “Quando começa mal, eu
fico com raiva, e não consigo aproveitar”. Confessa as
várias tentativas, as inabilidades que fazem doer, a raiva dos
vários tempos. Conta feliz que o marido a escutou com atenção.
Que eu também a escute, e desenrole com vagar a gaze dos sonhos,
para que possa me desvelar, aos poucos, suas feridas e desejos, anseios
e devoções.
Para finalizar, sugiro uma agenda para discussão interdisciplinar:
– A experiência de desamparo traumatizante, ou melhor, a
falta de amparo materno primário pode ser recoberta pelas experiências
religiosas? Neste caso, qual a distinção a fazer com os
amparos paralisantes que devem ser interpretados?
– Poder-se-ia pensar, utilizando o conceito de simultaneidade,
a presença de uma tensão entre desamparo e amparo? Poderia
ser exemplificado pelas palavras de Cássia: “aprendi que
certas coisas eu mesma tenho que fazer e enfrentar e outras, Deus faz
por mim”.
– De que forma a visão de mundo do analista influencia
o trabalho analítico de interpretação, e a aceitação
ou não de experiências do analisando que possam estar mais
na dimensão da essência que da existência? Disto
dependeria a possibilidade de conceder “carta de cidadania”
à interpretação anagó-gica dos sonhos, ao
lado da psicanalítica?
– A leitura psicanalítica da religião, cuja origem
está na analogia com a neurose obsessiva, poderia ser revisada
para também poder dialogar com formas não obsessivas de
expressão religiosa. Aquelas que Freud sinalizou para Pfister
com “a beleza da religião não pertence à
psicanálise”15. Para isso, os psicanalistas teriam de vencer
seus pré-conceitos e, tal como Freud, aproximarem-se de outros
referenciais numa ótica inter/transdisciplinar.
Keywords:
Abandonment – Clinic – Sacred – Essence
Summary:
The work features a clinical case in an interdisciplinary approach:
the psychoanalytical set is confronted with the thoughts of philosopher
and theologian Paul Tillich, taking into consideration the clinical
history within a theoretical framework that includes the sacred dimension.
The predominant theme is the effect of religious experience on feelings
of abandonment, and in which way the psychic make-up of the patient
is modified through devotion.
1 Uma primeira versão deste texto foi preparada
para a Jornada do Laboratório de Psicopatologia Fundamental Pierre
Fedidá, UFRGS, Porto Alegre, outubro de 2003.
2 Paul Tillich (1886-1965) - filósofo e teólogo alemão-professor
de teologia e filosofia em Marburgo, Dresden, Leipzig e Frankfurt. Pertenceu
ao grupo formado por T. Adorno e M. Horkheimer, que deu origem à
conhecida “Escola de Frankfurt”. Fundador do movimento “Socialismo
Religioso” e adversário declarado do nazismo, foi obrigado
a deixar a Alemanha e a asilar-se nos Estados Unidos, onde lecionou
no Union Theological Seminary e Universidade de Colúmbia (N.
Iorque) e Universidade de Harvard. Suas principais obras traduzidas
ao português: A coragem de ser (Paz e Terra) Amor, poder e justiça
(Novo Século); A dinâmica da fé e Teologia Sistemática
(Sinodal), História do Pensamento Cristão, (ASTE). Para
saber mais sobre as pesquisas atuais a respeito de Tillich no Brasil,
ver Grupo de Pesquisa Teologia e Inter/transdisciplinaridade, do IEPG/
São Leopoldo, no site www.est.com.br/iepg e Sociedade Paul Tillich,
na UMESP - www.metodista.br/correlatio
3 As idéias aqui expressas estão ampliadas no meu texto
Teologia de Tillich e psicanálise, na Revista Correlatio http://www.metodista.br/correlatio/num_06/teologia.php
4 TILLICH, Psychoanalysis, Existencialism and Theology. Consultei o
texto alemão Die theologische Bedeutung von Psychanalyse und
Existencialismus, 1955. Gesammelte Werke, V. VIII, p.310.
5 TILLICH, 1987, p.286.
6 Paul TILLICH, A dinâmica da fé. São Leopoldo:
Sinodal, 1986, p. 5.
7 FREUD, v. XIV, p. 260.
8 literalmente: “passagem do sentido literal ao místico”,
Dicionário HOUAISS, p. 201.
9 FREUD, v. V, p. 558-9.
10 Traduzido do espanhol como Psicoanálisis y educación,
Madri, 1932; Buenos Aires, 1943.
11 Literalmente “Verdade e beleza na psicanálise”.
Zurique, 1918.
12 Ver Cartas entre Freud & Pfister, principalmente as cartas 41
e 42, p. 84-87. A respeito dos sonhos interpretados por Pfister, ver
O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister
para o diáolgo entre teologia e psicanálise (São
Leopoldo: Sinodal, 2005), da autora.
13 FREUD, Projeto para uma psicologia científica, 1950. v.I.
14 Evangelho de João, capítulo 14. 15-18.
15 Carta de Freud a Pfister de 9.10.1918, p. 86.
Recebido
em Junho/2005, aceito em Agosto/2005
Endereço para correspondência:
E-mail: wondracek@brturbo.com.br.