Teoria e Prática: Impasses Contemporâneos

Nadja Ribeiro Laender
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG

Palavras-Chave:
Angústia – Ausência de simbolização – Clínica psicanalítica – Estrutura clínica – Transferência – Histeria – Neurose – Normopatia – Analisando-robôs ou Antianalisandos – Psicossomática – Psicose

Resumo:
Clinicar e teorizar sobre os atendimentos sempre foram formas de trabalhar os impasses que a clínica coloca a nós psicanalistas, implicando não só um aprofundamento dos conceitos como também uma forma de questionar a nossa práxis. Já há algum tempo, os analistas têm sido interpelados por clientes cuja psicopatologia dissimula, por baixo de uma aparente normalidade passível de tratamento psicanalítico, uma dificuldade em se adequar ao dispositivo da análise, evidenciada por um não-enquadramento às estruturas clínicas tidas como padrão.


A psicanálise, ao priorizar o inconsciente, possibilita uma leitura diferenciada do sintoma, num evidente contraponto ao saber médico. O cliente queixa, o médico decifra o sintoma através das evidências clínicas, enquadra num diagnóstico a doença e utiliza a propedêutica adequada. O sintoma psicanalítico necessita ser falado pelo próprio paciente – que o traz com uma certa interpretação do seu mal-estar –, deve ser endereçado ao analista e, principalmente, constituir-se na experiência analítica. As entrevistas preliminares se colocam, para o analista, como um meio de fazer um diagnóstico estrutural preliminar que será confirmado, tempos depois, na transferência. Para o analisando, implicam uma passagem subjetiva, da pessoa que faz a queixa inicial ao sujeito que entra em análise.

Todo este procedimento teórico tem sido posto em xeque por uma categoria de clientes que procura os psicanalistas. Tais clientes, freqüentemente, expressam desencanto perante a realidade que vivem, evidenciado por um esvaziamento de questionamento a respeito de si e do mundo, e trazem sintomas cada vez mais corporais, desprovidos de significação e sob a forma de distúrbios somáticos em graus variados, agravados por uma pobreza de simbolização devido ao enorme exacerbamento do imaginário. As palavras têm um significado fixo. Se interpelados no sentido da homofonia ou se remetidos à questão metafórica ou metonímica, dão a impressão de que batem num muro invisível ou então escorregam em respostas chavões do tipo “não sei” ou “lá vem você de novo com esse papo”. Suas ligações afetivas e sociais são instáveis e pouco freqüentes, revelando uma tendência de “cola” quando se relacionam com alguém. Seu tempo existencial e verbal é o presente.

O passado está esquecido e o futuro parece não lhes pertencer. A vida é um eterno aqui-e-agora. Entre outros fatores que os caracterizam, são clientes que utilizam medicação psiquiátrica, não faltam jamais às sessões e pagam regularmente. Entretanto, algo falha. Eles não entram no dispositivo analítico, não associam livremente, sonham muito pouco e sua transferência varia do “posso te abandonar a qualquer momento” ao “eu não posso viver sem você”, numa repetição dos laços afetivos e sociais. Seu diagnóstico estrutural fica em suspenso pois traços das várias estruturas aparecem, dificultando mais ainda o trabalho do analista.

Se como pré-requisito a um candidato a análise, é preciso que ele ao menos procure um sentido em meio ao nonsense do sintoma, ou que tenha dúvidas das certezas inabaláveis e queira saber de si, o que elaborar, ou como pode trabalhar um analista quando o cliente se apresenta como acima descrito? Em se tratando de um diagnóstico estrutural, incluir-se-iam esses clientes em qual estrutura?

Para ilustrar as dificuldades encontradas na clínica psicanalítica de nossos dias, vamos utilizar o caso clínico de Maria das Dores. A partir daí, delimitamos em algumas linhas um pouco de sua complexa história e seus efeitos transferenciais. Maria é aquela figura médica poliqueixosa, seu corpo produz muitas dores. Seu discurso é monossilábico, grudado no sentido das palavras. Possui poucas lembranças do passado e sua fala se referencia quase sempre aos acontecimentos do seu cotidiano, mas isento de qualquer crítica que a faça se implicar em algo. Falar para ela é um problema, pois “falar dói” e a faz ter sintomas que variam de dor na garganta a rouquidão, dor de cabeça, potencializada por uma dor no peito que a leva a pensar, algumas vezes, em se esfaquear para ver se melhora.

Trabalhar com ela é um constante desafio. A sensação que se tem é de que ela suga as energias do analista, testa a sua paciência e além de tudo põe à prova o seu saber, porque chegar a um diagnóstico estrutural é complicado. Ora pode-se considerá-la psicótica, por sua fala colada no significante, pobreza de simbolização e uma transferência erotizada, ora uma histérica decidida que demanda uma suplência de mãe por tê-la perdido ainda muito pequena, alguém que dê fim à sucessão de abandonos ocorridos ao longo de sua vida. Como sua questão corporal é hipertrofiada, trabalhar a palavra e seus significados não surte efeito. Ela não se escuta e também não escuta as intervenções do analista.

Seu afeto contumaz é a raiva e a irritação com tudo e com todos. A figura paterna aparece deteriorada, apresentando-se como temível e sobretudo destrutiva. A irmã paterna que assumiu o lugar da mãe falecida, é uma figura que a faz relembrar surras com varinha de cipó em que chorar ou fazer escândalo era proibido. Em algumas ocasiões, Maria retirou a pele do dedo mínimo do pé com alicate, justamente após sessões em que ela se sentiu muito angustiada.

Enfim, Das Dores pôs o analista à procura de teorizações que possam fazer entender a profusão de sintomas apresentados e delimitar, dessa forma, a sua estrutura, propiciando assim um melhor manejo clínico.

Em “Estudos sobre a Histeria”, Freud relata o caso clínico de Cäcilie M. Seu diagnóstico inicial era de psicose histérica, apresentando um quadro de dores persistentes e um sentimento de ter sua vida fragmentada. Ele descreve desta maneira uma das suas crises histéricas:

Surgiu primeiro, enquanto a paciente gozava da melhor saúde, uma disposição de ânimo patológica, com um colorido particular que ela regularmente interpretava mal e atribuía a algum fato das últimas horas. A seguir, acompanhados de crescente nebulosidade da consciência, sobrevieram sintomas histéricos: alucinações, dores, espasmos e longos discursos declamatórios. Finalmente, esses sintomas foram seguidos pelo surgimento, numa forma alucinatória, de uma experiência passada que tornava possível explicar a sua disposição de espírito inicial e o que determinara os sintomas do seu acesso presente... (Freud, 1895: 227).

Nos exemplos em que Freud conseguia que a paciente, ao reproduzir sua dor facial, chegasse à sua causalidade psíquica através da evocação da cena traumática, um insulto do marido que ela sentiu como uma bofetada no rosto, ele justificava o sintoma como simbolização por meio de expressão verbal, sendo portanto a dor psíquica modificada em dor somática.

Freud relega o mecanismo de simbolização a uma importância secundária quando Cäcilie tem uma dor lancinante no pé que a impossibilita de andar, sendo relacionada ao contato com o médico que a ajudou a caminhar, porque ela pensou naquele instante que seu comportamento talvez não fosse apropriado. Portanto, a manifestação somática foi transformada em dor psíquica.

Fica evidente a demarcação entre as duas formas de somatização: uma de origem psíquica, que incide sobre o corpo, mas usa o mecanismo da simbolização, levando à histeria de conversão; outra de origem somática, que afetaria o psíquico através da descarga direta da angústia, ou seja, sem a mediação do simbólico, dando origem a sintomas predominantemente somáticos, sendo característica da neurose atual.

A diferença entre histeria de conversão e neurose atual se dá através da maneira como a excitação psíquica é processada, pois ambas têm origem sexual, e também através do fator temporal. No caso da histeria, haveria uma ligação com os conflitos sexuais da infância que remetem a um corpo pulsional, imaginário, utilizando o recalcamento como mecanismo de defesa. Na neurose atual, os sintomas, por não serem mediados pelo simbólico, não se constituem como retorno do recalcado, se apresentam no corpo, no momento presente. Ora, por tudo o que foi dito acima, como Cäcilie poderia estar ao mesmo tempo diagnosticada como psicose histérica, histeria de conversão e neurose de angústia, se essas são estruturas distintas que utilizam mecanismos de defesa diferentes?

“Estudos sobre a Histeria” está repleto de descrições de delírios e alucinações os quais Freud denominava “confusões alucinatórias”, podendo... “ser considerado como uma psicose aguda (servindo como equivalente de um acesso) (Freud, 1895:142). Poder-se-ia deduzir uma dificuldade de Freud em delimitar o que era uma histeria, o que era uma psicose, por se estar num momento inicial de sua obra. Mas o que pensar quando se depara já em 1931, no texto “Sexualidade Feminina”, com uma ligação entre a histeria e o germe da paranóia?

Entre estas acha-se a suspeita de que essa fase de ligação com a mãe está especialmente relacionada à etiologia da histeria, o que não é de surpreender quando refletimos que tanto a fase quanto a neurose são caracteristicamente femininas, e, ademais, que nessa dependência da mãe encontramos o germe da paranóia posterior nas mulheres (Freud, 1931:261).

O analista, ao se deparar com um quadro clínico com ausência de sonhos e fantasias, associada ao pouco saber se si mesmo, pode levantar a hipótese de uma estrutura em que o recalcamento não está operando. Na neurose, o mecanismo de defesa é o recalcamento, que mantém preservado o universo simbólico do sujeito assim com também o alimenta. Se existe o fracasso do recalcamento, há um bloqueio da vida fantasmática do sujeito, caracterizando uma forma de psicopatologia mais grave do que a neurose. Apressadamente se poderia concluir que se trata de um quadro de psicose; porém, Flávio C. Ferraz acena com uma nova possibilidade ao escrever sobre a normopatia, quadro clínico que possui as seguintes características:

Empobrecimento ou, até mesmo, a supressão da vida fantasmática, seja pela via do sonho, seja pela via do fantasiar. Do mesmo modo, o mundo interno encontra-se desinvestido; o sujeito pouco ou nada se refere a ele, demonstra baixa capacidade de introspecção e seu discurso refere-se quase que exclusivamente a objetos concretos do mundo exterior... ocorre uma cisão entre a realidade interna e a realidade externa, a primeira sendo suprimida e a segunda sobre-investida de modo compensatório. O sujeito perde o contato consigo mesmo, passando a funcionar à moda de um robô (Ferraz, 2002:48).

O fato é que muitas das dificuldades que Ferraz descreve como normopatia se assemelham ao que Joyce McDougall classificou como analisando-robôs ou antianalisandos. Ambos apontam para uma obstrução no acesso para o seu mundo subjetivo, o qual é negado ao analista, mas que se encontra obstruído para o próprio sujeito na relação de si para consigo, e uma grande falta de afetividade, devido a uma falha na constituição da identidade subjetiva, considerando-a, portanto, como uma patologia não-neurótica.

Numa busca de melhor conceitualizar a problemática de Maria da Dores, encontramos no livro Teatros do Corpo, de Joyce McDougall, o seu relato de “ter analisado pessoas que são polissomatizantes desde a mais tenra infância. Não se trata aqui de histeria clássica. Muito freqüentemente são rotulados de histéricos os indivíduos que sofrem de seqüelas de uma carência afetiva precoce e cujos gritos de aflição procuram chamar a atenção mais para o perigo de morte psíquica do que para o perigo de castração fálico-edipiana – no máximo é possível formular a hipótese de ‘histeria arcaica’. É por isso que não encontramos essas soluções de compromisso diante dos processos sexuais e edipianos, próprios da neurose, mas antes uma erotização primitiva, implicando o corpo inteiro que se oferece como local de conflito, sendo que esse tipo de organização visa a constituir uma aparência de identidade subjetiva e a proteger contra a morte psíquica.”

Ela teoriza que pacientes psicossomáticos que estiveram expostos a traumas contínuos na primeira infância tendem a atribuir seus problemas emocionais a circunstâncias externas, revelando uma falha de natureza simbólica e verbal. Não pretendemos com isso dizer que Maria é psicossomática, mas ela possui esse tipo de mecanismo acima descrito. Sabemos que, muitas vezes, apesar desses sinais exteriores parecerem escapar à representação, são mensagens para o psiquismo; e apesar de ainda ser uma luta para Maria falar, ela já começa a se perguntar: por que meu corpo dói?

McDougall afirma ainda que em analisantes que tendem a somatizar seus conflitos psíquicos e que parecem atingir uma organização edipiana normal, durante o processo de análise aparece uma imago paterna deteriorada, ausente tanto do mundo simbólico da “mãe” (no caso em questão quem fazia o papel de mãe era a tia; será que ela autorizava esse pai?) quanto da criança (meu pai é grosso, estúpido, ignorante – falas de Maria das Dores). O pai aparece como alguém que não merece ser amado ou é proibido de ser amado pela criança, representando um papel estruturante mínimo na sua organização psíquica. De fato, esse pai de Maria aparece sempre como o pai Real, aquele que goza de todas as mulheres, que tudo pode fazer. É um pai temível e sobretudo destrutivo. Numa sessão ela relata nada ir a para frente com nenhum de seus irmãos porque o pai sempre dizia: “Vocês são barrigada perdida.” À medida que vamos trabalhando, suas dores abrandam um pouco, ela começa a perceber que pode se salvar dos vaticínios paternos, mas todas às vezes que chega perto de algum ponto angustiante, ela se cala e sente dores e aperto no peito.

Em duas ocasiões, Maria retira a pele do dedo mínimo dos pés com alicate justamente após sessões em que ela se sente muito angustiada. Pensamos que ao se machucar, Maria fazia uma tentativa de contenção da angústia através desse ferimento. Ao se sentir ameaçada com a aproximação da representação recalcada, ela usa dessa violência contra si mesma para barrar a angústia: à medida que atingíamos níveis psíquicos primários referidos a marcas, impressões psíquicas corporais oriundas de acontecimentos traumáticos imemoráveis e inassimiláveis que se mantêm afastados da consciência e se acalmam e silenciam através da dor. Freud em “Estudos sobre a Histeria” afirma que todo acontecimento traumático vivido passivamente perpetuar-se-á mantendo a intensidade do afeto correspondente, e que será revivido em toda sua plenitude, se despertado algum dia.

Pensar o sujeito a partir do que nos é dado a ver, inferir a significação do que acontece no espaço da sessão para situar uma hipótese diagnóstica, utilizar os mecanismos de defesa, as fantasias que perpassam seus sonhos e sintomas possibilita um vislumbre de sua estrutura e maneira de ser. Trabalhar com pessoas em que este universo está de tal forma empobrecido, a despeito da aparente possibilidade de enquadre no setting analítico, nos coloca frente a um impasse: Como intervir? Qual a sua estrutura clínica? Como fazer para que consigamos causar alguma mudança, alguma diferença na dor que silencia, na palavra presa no interstício do significado, na auto-agressão de se ferir, na angústia emudecida pelos psicotrópicos? Seria possível abordá-las por qual vertente: neurótica? psicótica? perversa? normopata? psicossomática? Como diagnosticá-las? Seriam as categorias diagnósticas atuais insuficientes para responder ao que estamos encontrando em nossas clínicas? Urge pesquisar, teorizar e escrever sobre o funcionamento psíquico dos nossos clientes que se expressam de maneira diferente e que pagam com seus corpos entorpecidos pelo círculo vicioso dos sintomas, pelo não saber o que fazer do analista que vê os dispositivos da análise e sua teorização se tornarem insuficientes para embasar sua práxis.

Assim como Freud em “Estudos sobre a Histeria” escreveu sobre Emmy, Maria das Dores causa no analista o mesmo impacto. Sobre sua paciente ele diz: ...comecei o tratamento de uma senhora de cerca de quarenta anos, cujos sintomas e personalidade me interessaram de tal forma que lhe dediquei grande parte do meu tempo e decidi fazer tudo que estivesse ao meu alcance para recuperá-la (Freud, 1893:91). Trata-se de uma busca de esclarecimento extremamente pertinente para a nossa clínica psicanalítica atual, um assunto abrangente e apaixonante, que com certeza causará inúmeros questionamentos, suscitando, esperamos, novas perspectivas clínicas...

Keywords

Anxiety – Lack of symbolization – Psychoanalytic practice – Clinical structure – Transference – Neurosis – Hysteria – Normalpathia – Robot – analysed or Antianalysed – Psychosomatic – Psychosis

Abstract
The clinical practice and its theory about the different cases had always been forms to work the impasses that the clinic places to us psychoanalysts, implying not only in a deepening of the concepts as well as in a form of questioning our praxis. It has been a while that the analysts have been interpelled by patients whose dissimulates his difficulties, and underneath an apparent normality that the psychoanalysis could offer treatment, a difficulty in adjusting to the analysis, evidenced for the fact that they don’t fit to the average clinical structures.

Bibliografia
BEZERRA JR., Benilton e PLASTINO, Carlos Alberto (org). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rio Ambiciosos, 2001.
FERRAZ, Flávio Carvalho. Normopatia: sobre adaptação e pseudonormalidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
FREUD, S. Estudos sobre a histeria. Edição Standard Brasileira, v.II. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
FREUD, S. Sexualidade feminina. ESB, v. XXI. Idem.
KRISTEVA, Julia. As novas doenças da alma. Trad. Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.
MCDOUGALL, Joyce. Em defesa de uma certa anormalidade: teoria e clínica psicanalítica. Trad. Carlos Eduardo Reis. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
MCDOUGALL, Joyce. Teatro do corpo, o psicossoma em psicanálise. 2. ed. Trad. Pedro Henrique Bernardes Rondon. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SANTOS, Tania Coelho dos. Quem precisa de análise hoje? O discurso analítico: novos sintomas e novos laços sociais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

Recebido em Junho/2005, aceito em Agosto/2005.
Endereço para correspondência:
Av. Francisco Sales, 1614/604
30150-221 - Belo Horizonte - MG
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