Herança para o Século XXI: Freud, Montaigne e Kafka
Aurélio Baggio
Médico. Psicanalista. Membro
do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG.
Presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas
Gerais. Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritos-ABRAMES.
Membro da Arcádia de Minas Gerais
Freud,
Montaigne e Kafka são autores contemporâneos na medida
que acertaram em tudo que escreveram sobre a natureza e a condição
humanas. Montaigne é atual porque nos legou a concepção
da pessoa humana desprovida de deuses; Kafka descreve a Galut que cada
um de nós está condenado a cumprir, quando sai de si mesmo;
Freud foi ousado em seu tempo escrevendo sobre sexualidade infantil
e dos desejos ocultos de suas incríveis e hoje inexistentes histéricas.
Freud (1856-1939) foi um grande construtor de mitos úteis aos
tempos atuais. Falhou ao acreditar que a psicanálise era uma
ciência que poderia trazer enormes contribuições
à biologia. A biologia evoluiu para a genética, para o
genoma e para o clone.
A prática clínica da psicanálise baseia-se na transferência
– uma espécie de confiança inter-relacional, um
depósito xamanístico velado, a ocorrer de forma cada vez
mais escassa entre o paciente e o analista.
Sabe-se que, quando a transferência se mantém por prazos
suficientemente delongados, o processo psicanalítico costuma
ser muito fecundo e valioso, sobretudo no que se refere ao incremento
da consciência do sujeito sobre si mesmo. Há também
notável capacidade do sujeito de apreender as coisas que estão
no mundo.
O maior valor social embutido na psicanálise aplicada deriva
da sua notável capacidade de propiciar campo para o desenvolvimento
das potencialidades e dos talentos do analisando. É nessa dimensão
que aposto na sobrevivência da prática psicanalítica
nas décadas vindouras. Até o momento, a psicanálise
pessoal é o maior e o melhor instrumento que se conhece –
ou de que se utiliza – para o aperfeiçoamento do cabedal
humano.
Freud foi um brilhante ensaísta sobre as questões morais
da humanidade, comparável ao grande Montaigne (1533-1592). Os
dois adotaram o lema de que cada qual é seu próprio grande
assunto. Suas ficções autobiográficas do Eu prenunciam
a aterrissagem do homem no chão do cotidiano do mundo. Tal qual
ele é. E não como, idealmente, poderia ou deveria ser
ou, ilusoriamente, seria.
Montaigne (Essais, Paris: Nelson Éditeurs, s/d) colocou o homem
com os pés no chão ao proclamar: “Humanizai vosso
idealismo.” Oferece-se-nos como um homem todo inteiro, concebido
como um vasto e poderoso Eu: a arte de vir a ser um Eu verdadeiro.
Montaigne aprendeu a contentar-se com o fragmentário e o imperfeito
que o homem é. Disso extraiu a ampla formulação:
pela auto-análise tornar-se um homem livre é saber desfrutar
da vida de acordo com o contrato social, isto é, com a lei. Sem
ansiedade, sem angústia e sem medo. Destemidamente, negando a
possibilidade da tragédia.
Ensinou-nos o grande ensaísta francês a aceitar a necessidade
biológica como imposição da natureza, da qual depende
radicalmente nossa vida. Para suprir essa necessidade, resta ao homem
a prerrogativa de utilizar diferentes recursos.
A experiência possibilita ao homem desfrutar, legalmente, das
várias facetas de sua existência. Ela permite acesso ao
bem maior, que é viver e vivenciar.
Epicurista, prosaico, descomplicado, Montaigne chega ao cúmulo
da síntese sobre a condição humana, quando diz:
Os prazeres legítimos da vida que desfruto são como
o vento. Ele se apraz fazer ruído e correr, e se satisfaz com
suas próprias funções, sem almejar estabilidade
e solidez, questões que não lhe dizem respeito.
Isso
é o supra-sumo da ironia. Do cepticismo quanto à inconsistência
das ilusões. É uma declaração do valor da
vida – a mera própria vida. Intrans-cendente.
Montaigne legou-nos uma advertência poderosa, talvez a única
capaz de prevenir e evitar as guerras religiosas que pululam ao longo
da História. É simples e sólido, quando diz:
Querer
sair de si mesmo e querer escapar da condição humana é
má prática, é loucura da pior qualidade: em vez
de se transformar em anjos, habitualmente os homens transformam-se em
feras; em vez de se elevarem, rebaixam-se.
Tornam-se os homens, com freqüência, corruptos, sicários,
facínoras, assassinos.
Montaigne é nosso contemporâneo porque nos legou a imagem
e a concepção da pessoa humana inteira, viva, desprovida
de deuses, de balangandãs e de idealismos espúrios. Para
ele, o que vale é a pessoa humana, grandiosa em seu solipsismo.
Sem mistificações.
É a partir daí, desse ser pessoalizado em seu Eu e em
suas sensações, que começa toda a trama de suas
circunstâncias.
O século XX foi o século de Kafka (1883-1925) e de Freud.
Joyce, Proust e Rosa talvez fossem artistas maiores, mas o que marcou
o século passado foi o isolamento niilista kafkiano do homem
em um universo totalitário, comandado pelo absurdo, pelo surreal,
escoltado pela sensação de um perigo avassalador de desfecho
iminente.
Em Kafka, vemos a premonição do homem imerso em um mundo
excludente e impenetrável, encurralado em guetos, em campos de
concentração, em banheiros públicos irrigados com
Zyklon B, * em Gulags, em gangs, em bandidagem
vagabunda ou aprisionado a drogas. Em sua obra, é recorrente
o confronto entre os personagens e o poder atrabiliário das instituições,
demonstrando a impotência e o desespero do ser humano.
As duas grandes guerras mundiais foram kafkianas. A titânica tirania
da estupidez humana nelas vigorou plenamente. O poderoso Imperador,
atemorizado, dispara seus terrores. Em seus escritos, encontra-se a
descrição da culpa sem motivo, um absurdo sentimento de
culpa, que assumirá uma forma concreta durante a Segunda Guerra
Mundial. Totalitarismos antagônicos vitimaram até a morte
20 milhões de pessoas na Primeira Grande Guerra e mais de 60
milhões na Segunda. “Stalingrados” proliferam para
lá, para cá. Centenas de milhões viveram em uma
atmosfera de pesadelo e de espantosa brutalidade. Trezentos milhões
de pessoas foram assassinadas ao longo do século XX.
Kafka parece dotado de uma autoridade espiritual sobressalente. Ele
toca a errância humana, em sua busca solitária de um porto
que, uma vez encontrado, jamais o abriga. Descreve o desterro –
o Galut – a Diáspora – que cada homem está
condenado a cumprir, ao ter de sair de si mesmo. Prenuncia a extrema
crueldade a que o abuso fundamentalista pode chegar:
Ninguém
há de ler o que aqui escrevo, ninguém virá me ajudar
[...] não grito pedindo socorro [...] basta-me olhar em volta
de mim mesmo e verificar onde estou e – posso afirmar, com segurança
– tenho estado a centenas de anos.
Kafka é triste, é derrotado e sombrio. Relata o lado terrível,
maligno e absurdo do homem metido na engrenagem macabra da sociedade.
Mostra o homem preso a uma realidade que ele não compreende e,
ao mesmo tempo, é incapaz de questionar.
Para Franz Kafka, a existência era uma negação inóspita
do ser. Ao cabo de certo percurso de desenvolvimento, sua trajetória
de vida inflete sob o peso de uma acusação, de uma metamorfose
regressiva, ou ainda sob o influxo de um desgarramento de destino. A
desprodução do indivíduo é sempre um risco
ameaçador, já que está sujeito a uma inefável
opressão que o manieta. Em Kafka, é o pequeno burguês
– e não os deserdados da terra, os ofendidos e os humilhados
– que se transforma no homem paralisado, anulado e atirado ao
monturo da exclusão.
O século XX nada mais ofereceu a extensas parcelas da humanidade
do que as absurdidades descritas em A Metamorfose (1916), O Processo
(1925) e O Castelo (1926) e em outros textos do escritor tcheco.
Já Freud demonstra uma atitude estóica diante da vida.
Esta é também uma das características do goliárdico
Harold Bloom.
O fundador da psicanálise nos oferece uma nova e valiosa mitologia,
cujo Olimpo está, quase crivelmente, em nosso espaço mental
interno. Suas especulações são muito penetrantes
e se tornaram por demais fecundas.
Freud é o pensador da cultura cujos postulados tiveram o melhor
índice de aceitação durante o século passado.
A libido como energia psíquica pulsional; o Édipo como
possível estruturador de um psiquismo neurótico; a vigência
de uma instância obscura e efervescente, conceituada como “o
inconsciente”, dotado de forças daimônicas para o
bem e para o mal; o conjunto dos 83 mecanismos de operação
utilizados pelo Ego para lidar com os outros três Titãs:
o Id, o Superego e o Mundo Externo; as vicissitudes da conflitiva psiconeurótica;
a interpretação dos Sonhos; a teoria do desenvolvimento
psicossexual do ser humano; a descrição das tendências
controversas, tais como o masoquismo e o sadismo, a pulsão de
morte e o empreendimento da autodestruição; o desvelamento
da dimensão simbólica, presente, desde a aurora dos tempos,
no psiquismo dos homens. A desmontagem de alguns quadros clínicos
e, por vezes, sua reconstrução em bases mais sadias, somam-se
à argúcia de suas deliciosas análises dos chistes
e dos atos falhados. Freud criou uma mitologia própria, sui generis
e altamente bem recebida pela cultura ocidental no século passado.
Deve-se a Freud ainda duas magnas contribuições imorredouras
no campo da sexualidade humana.
Primeiro, elaborou a ousada e escandalosa proposição da
existência da sexualidade infantil, retirando a criança
do limbo da inocência deserotizada, cegueira tão confortável,
até então, para as autoridades clericais e para a classe
burguesa. Com Freud, a criança deixou de ser um inocente anjo
alienado, adquirindo o estatuto de vigoroso participante dos jogos eróticos
e erísticos no seio da família.
A segunda contribuição foi a mais marcante, valiosa e
revitalizadora entre todos os avanços obtidos pela humanidade
no século XX. Trata-se do achado clínico espantoso de
que certas psicopatologias em jovens histéricas da classe alta
vienense decorriam – em boa ou em alguma parte – de desejos,
anseios ou anelos sexuais reprimidos, desejos esses de natureza incestuosa
ou socialmente condenáveis.
O gênio de Freud criou e desenvolveu uma sistemática –
um método – de tratamento que se mostrou bastante efetivo
para obter a desrepressão dos desejos sexuais, trazendo-os, catarticamente,
à luz da consciência vigil.
Muitas pacientes melhoraram. Algumas até se curaram. Esse foi
o maior feito freudiano: a ruptura do dique de contenção
neurótico inconsciente, o defloramento das defesas psíquicas,
o arrombamento da linha de frente do antagonista que mantinha a neurose
e seu séquito de sintomas perturbadores, inundando a consciência
com as ondas inovadoras da auto-escuta, seguida pelo autoconhecimento
que expandia a consciência e a irradiava de luz. Foi assim que
Freud testemunhou interessantes processos de mudanças psíquicas,
favoráveis e rápidas, “curando” suas pacientes.
A teoria da repressão (e do recalque) da sexualidade como matriz
da psiconeurose desencadeou um processo de desrepressão da sexualidade,
que teve alcance universal. Culminou com a liberação e
o desmantelamento dos costumes nas décadas de 60 e de 70 do século
passado, proporcionando um avanço notável nas práticas
convivenciais entre homens e mulheres. Com a pílula anticoncepcional,
os motéis e o automóvel, a humanidade, sobretudo a cultura
ocidental cristã, pôde usufruir de um delicioso hiato de
licenciosidade erótica e sexual.
Três eventos marcaram o século XX:
– a criação, a expansão e a extinção
do totalitarismo político bem como a proposição,
a ascensão e a queda do fascismo, do nazismo e do comunismo;
– o acendrado avanço científico e tecnológico,
com a multiplicação do conforto e da riqueza mundial;
– a liberação da sexualidade humana, no Ocidente.
Esta última quase tudo deve ao poderio conceitual de um só
homem: o vetusto, conservador e estóico monogâmico Herr
Doktor Professor Sigmund Freud.
Se seu método terapêutico – a prescrição
clínica do processo psicanalítico acendrado – não
teve o mesmo sucesso ao ser proposto para diversas outras condições
na clínica psiquiátrica, infelizmente, constata-se que
isso se deve a razões que não dizem respeito ao método
freudiano.
Essa falha decorre de duas insuficiências: primeiramente, a psicanálise,
embora exercida por centenas de milhares de sisudos e empenhados profissionais
– entre os quais, constrangidamente, me incluo –, jamais
produziu outro gênio do porte de Freud (tirante, talvez, D. W.
Winnicott).
Segundo, a descoberta freudiana rompeu, sim, uma linha de defesa no
psíquico patológico, mas foi incapaz de envolver todo
o âmbito da psicopatologia humana. O psíquico desvairado,
enlouquecido, atormentado e adoecido, provou-se um campo muito maior
de ocupação dos territórios mentais, tão
vasto quanto as planícies centrais da Ásia. Mesmo quando,
a partir de 1955, 1960, desenvolve-se a psicofarmacologia, recurso barato,
interessante e eficaz meio de dissolver algumas estruturas psíquicas
patológicas, um montante expressivo da psicopatologia mostra-se
refratário aos dois métodos de tratamento.
Dois recursos de natureza diversa que se interpenetram e se completam,
ainda assim, mostram seus limites e suas insuficiências na clínica
hodierna.
No entanto, velhas e novas psico-patologias mantêm-se sobranceiras,
depletando as pessoas sofredoras.
Drogadictos; psicossomatoses cada vez mais bizarras; indivíduos
impulsivos-agressivos; psicopatas de todas as espécies; delinqüentes
e criminosos; pessoas dotadas de atributos indômitos de caráter
somam-se a uma miríade versicolor de personalidades de estruturação
borderline, pré-edipianas, e a alegres hordas de inconseqüentes
desvairados.
Os
espíritos lúcidos não desconhecem as contribuições
conceituais já impregnadas na vida cotidiana, oferecidas pelo
gênio de Sigmund Freud. É por isso que todos somos, hoje,
gratos pós-freudianos.
Entre centenas de formulações, pinçamos três,
bastante elucidativas.
Um forte egoísmo é uma proteção contra a
enfermidade. Contudo, no extremo, precisamos começar a amar,
a fim de evitar a doença.
O texto, dialeticamente contraditório, demonstra que precisamos
preservar-nos das excessivas solicitações que a cada momento
nos diminuem, mas, mesmo assim, temos de ser capazes de escolher uma
relação de amor que permita o afloramento de nossa generosidade.
O amor ao outro é uma poderosa via de ascensão daquilo
que há de melhor em cada um de nós. E assim nos protegemos
da nossa dimensão sombria.
Uma coleção seguida de decepções e de frustrações
acarreta adoecimento.
Os micro-desgastes e os banais desencontros do dia-a-dia, aparentemente
insignificantes, tendem a se tornar micro-traumas psíquicos.
Estes, por sua vez, exercem um imperceptível trabalho de sabotagem
do potencial endógeno, responsável pelo ânimo e
pela vitalidade da pessoa.
Evitamos uma enfermidade aceitando outra, menos gravosa. Eis uma barganha
que Freud tão bem descreveu.
Como exemplo recente, pode-se citar o seguinte relato:
“Sou asmática desde menina. Aos 20 anos, comecei a sofrer
episódios de enxaqueca Agora, aos 40 anos, foi diagnosticado
um refluxo esofagiano decorrente de uma gastrite que me tortura. De
quando em vez, sem razão aparente, fico toda empolada, em decorrência
de uma urticária. O curioso é que, quando estou sofrendo
de uma dessas doenças, a minha depressão desaparece.”
O nosso corpo e o nosso psiquismo trabalham acoplados, em sintonia.
Quando um adoece, o outro, por compensação, tende a sarar.
Psiquismo e corporeidade, entre si, são buffer um para o outro.
Um compensa a sobrecarga do outro. Funcionam como amortecedores do excesso
de excitações que acometem um ou outro.
Freud tornou-se a voz que nos orienta através das vicissitudes
das paixões e dos afetos e indica a direção correta
para se ir adiante pelo trânsito denso e louco da vida.
É nosso compassivo avô, vetusto e avelhantado, mas que
ostenta a dignidade de ainda ser o melhor pedagogo de que dispomos.
Nosso único confiável guru, nestes tempos de tantas ofertas
“alternativas”.
Montaigne descreve a venturosa vida acessível ao homem. Kafka
denuncia as possibilidades horrorosas que nos espreitam. Freud nos descortina
a pluralidade de componentes de que somos constituídos.
Abstract:
Freud, Montaigne and Kafka are contemporary authors since they have
succeeded in everything they wrote about nature and human conditions.
Montaigne is an up-to-date writer who left us the legate of Man without
gods; Kafka described the Galut in which every one of us is condemned
to fulfill when we are out of ourselves; Freud dared to write about
childhood sexuality and the hidden desires of his unbelievable and today
non-existent hysterical women.
* Zyklon B é
um gás derivado do ácido cianídrico empregado pelos
nazistas para matar milhões de pessoas nas câmaras de gás
em seus campos de concentração, durante a Segunda Guerra
Mundial.
Bibliografia
1. BAGGIO, M A. Causação em psiquiatria:
o endógeno. Belo Horizonte: Foglio, 2000.
2. BAGGIO, M.A. Psicoterapia: técnica, arte e clínica.
Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 2000.
3. BLOOM, H. Gênio: os 100 maiores autores mais criativos da história
da literatura. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
Recebido
em Janeiro/2005 aceito em agosto/2005
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