Saxa Locuuntur – As Pedras Falam

Maria Angelina Kalil Aidé
Psicanalista. Advogada. Psicóloga. Mestre em Psicologia pela UFRJ.
Membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise Seção Rio de Janeiro-RJ

Se um dia vires
Que uma pedra te sorri,
Irás dizê-lo?
Guillevie

Os rochedos, esses rostos
Vigiam o grande segredo, mudos, pescoço esticado,
O franzir pensativo do sobrolho dos rochedos.
Victor Hugo

Palavras-Chave:
Bricolage – Literatura – Judaísmo – Judeídade – Natureza

Resumo:
A autora analisa algumas fontes do texto freudiano, assinalando a ausência de Espinosa, o primeiro pensador judeu ateu.


I
Com Benjamim, argüimos: Não existem nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?...Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado no passado? Dentre essas vozes, sons, ruídos, balbucios? (Rouanet, 2003)

Assim, a bricolage freudiana–cadinho desta sonoridade imemorial.

Somos, enquanto analistas, estes sons, estas falas, estes ruídos, esta repetição, ecos de gerações e gerações, geo-históricas, que nos antecederam e que se atualizam em cada escuta e que permanecerão após...

Se não vejamos: inúmeros já se debruçaram rastreando nas pegadas de Freud, cuja fecunda cultura nos legou a Psicanálise.

Este inequívoco favorito de sua mãe, cuja “sentimentalidade” – palavra ambígua na língua alemã – confessa ser herdeiro, nasce de um “pai-avô” na qualidade de tio, primeiro paradoxo dos muitos que teria que enfrentar.

Nasce na pequena cidade de Freiberg, na Moravia, então parte do Império Austro-Húngaro, em seis de maio de 1856. A “Tanakh” – a Bíblia Hebraica, “sua pátria portátil” – que habitará sua cabeceira desde seus onze anos registra que ele ingressa no “pacto judaico”, na circuncisão, uma semana após seu nascimento, um rito que remonta ao livro do Gênesis, não sendo exclusivo do judeus, vez que muçulmanos e egípcios também o praticavam.

Os Freud chegam a Viena, indo residir no tradicional bairro judaico, passando a integrar a população dos ostjudens, judeus orientais que, em sua maior parte, seguiam a ortodoxia judaica. No cotidiano falam iídiche, língua de caráter extremamente híbrido que incorpora elementos do hebraico, do alemão e de várias línguas eslavas, sendo originária da Lotaríngia por volta do século X. Língua esta cujo sotaque Amalie, estridente e prepotente – assim denominada por seu neto, Martin, que acrescenta, as judias da Galícia eram desajeitadas e não tinham modos (...) e, certamente não eram o que poderíamos chamar de damas – conservará até sua morte em 1930. Senhora temperamental, quando contava 95 anos, recusa receber uma mantinha de presente, assinalando: Um mau clichê; faz com que eu pareça ter cem anos (Jones,1975).

Poeticamente, Kristeva (1994), comenta: Não falar a língua materna. Habitar sonoridades e lógicas da memória noturna do corpo, do sono agridoce da infância. Trazer em si, como um jazigo secreto ou como uma criança deficiente, benquista e inútil –, essa linguagem de outrora, que marcha sem jamais abandoná-la.

Cabe a Amalia transmitir o judaísmo a seus filhos, pela tradição oral: fala a comida. Freud colecionará um imenso repertório de histórias e chistes contados em iídiche.

Aí, a primeira inspiração – os judeus são homens do Livro – Talmud em hebreu quer dizer “estudo”, “aprendizagem”. Witz remete ao verbo wissen que significa saber.

Em outono de 1865 Freud entra no Gymnasium, um ano antes da idade comum de ingresso. Será o primeiro aluno durante todo o curso, exceto em seus últimos semestres. Quando se rebela contra um de seus professores. Ainda assim, diploma-se suma cum laude. Em 1914, convidado a escrever algo na comemoração do centenário do ginásio, Freud elabora um pequeno artigo – Some Reflections on Schoolboy Psychology, onde diz: “(...) os anos tornam a surgir dos caminhos de minha memória, com todos os seus pressentimentos e erros, suas penosas transformações e seus gloriosos triunfos... os meus primeiros vislumbres de uma civilização extinta, um mundo que, em meu caso, haveria de mais tarde me proporcionar enorme consolo em meio às lutas da vida”. (Perestrello, 1996).

Pfrimmer, em seu livro Freud, leitor da Bíblia, registra cerca de 400 citações usadas por Freud em sua teoria e cartas, sendo de particular importância o uso que ele faz da Midrash rabínica, que enseja a Interpretação dos Sonhos. Midrash vem da raiz darash – buscar, procurar, inquirir, investigar (Mezan,1987), e é aplicada ao conjunto dos comentários à Bíblia pelos eruditos.Como exemplo, a referência ao Talmud que nos conta Haddad (1992): R. Samuel, filho de Onyà, disse: “A mulher é um ser inacabado, e não faz aliança exceto com aquele que é um ser acabado”, pois está escrito: “Aquele que te faz, esse será o teu esposo, o Eterno é seu nome”. Ao lado da veneração de Freud pela sua mãe, que não conhece limites na moral talmúdica, a mulher é considerada mutilada, o que se lê com todas as letras, no texto freudiano. É sabido, alias, que ele só tratou da Sexualidade Feminina e da Feminilidade, de fato, após a morte de Amalie. Após, ainda, intensa discussão com Jones, para quem a mulher era born, enquanto que ele a considerava made. Ainda assim, Freud consagra três “as´das” para a mulher: a histeria, a masculinidade e a maternidade. Certamente esta última era a mais saudável.

Este judeu-ateu, aos 75 anos, na homenagem que lhe era prestada pelo prefeito de Pribor inaugurando uma placa comemorativa do local do seu nascimento, declara: No fundo de mim, encoberta, ainda vive aquela criança feliz de Freiberg, o filho primogênito de uma mãe jovem, que havia recebido as primeiras impressões indeléveis desse ar, dessa terra.

Peter Gay aduz: “isso é mais que palavrório de ocasião ou polidez social: a retórica mímica – desse ar, dessa terra–traz consigo sua própria confirmação... Não surpreende que Freud nunca viesse a superar seus sentimentos ambíguos a respeito de Viena” (Gay, 1989). Em apoio a esta idéia, Freud acrescenta: Nunca superei a saudade dos belos bosques de minha casa para onde eu mal sabendo andar, costumava fugir de meu pai.

Antes de deixarmos de lado os rastros judaicos na obra de Freud, importa salientar o termo judeídade. Criado por Alberto Memmi, ora de uso corrente, entendido como o sentir-se judeu, o modo como um judeu o é, subjetiva e objetivamente. Ou como sugere Derrida em seu Mal de Arquivo em relação ao comentário de Freud à ressurreição de Cristo, como uma verdade histórica que encobre o Urvater, transfigurado e tendo ocupado, enquanto filho, o lugar de Pai Originário, justificando o termo judeídade. E, ainda, A expressão através da qual encontramos os fantasmas ou os deixamos vir em nosso encoontro é indestrutível, é inegável. As pessoas mais cultas, mais razoáveis, mais céticas, conciliam, facilmente, aliás, um certo espiritismo com a razão. Nós conhecemos todo o enredo freudiano sobre a telepatia (Derrida, 2001). Cabe lembrar Yarushalmi que diz: Se o judaísmo é terminável, a judeídade é interminável (ibid). Apenas mais uma observação: Chamouni nos adverte que o sionismo como movimento político jamais participou dos interesses de Freud, pois ele, explicitamente, declarou: Não compartilho dos ideais nacionalistas, não se sentindo dividido entre germanidade e judaísmo, desde que, para ele, não havia fronteiras para a cultura. (Chamouni, 1992).

II
Cumpre observar duas afirmações contrastantes que Mezan nos oferece em seu “Viena e as Origens da Psicanálise”, tais sejam, as falas de B. Bettelheim e as de Peter Gay. Enquanto o primeiro afirma que a cultura vienense, dotada de especial singularidade devido ao acaso histórico, atingiu seus ápice cultural ao tempo de Freud, o que lhe possibilitou inventar a Psicanálise, o segundo afirma exatamente o oposto, ou seja, qualquer que fosse o solo e em qualquer tempo, a genialidade do mestre a teria criado.

Mezan comenta que a opinião de Bettelheim devia-se ao fato de ele viver em Viena, tendo-lhe dedicado um livro, então pensando a Psicanálise como algo inescapável àquela atmosfera, vez que o clima psicológico ali, era de sentimentos mórbidos, decadentes, propiciando neuroses, sexo, homicídios e suicídios, tendências destrutivas inerentes ao campo de investigação que Freud investigaria anos depois. Já Peter Gay sustenta que Freud teria elaborado as mesmas hipóteses teóricas em Munique ou Berlim, sendo discutível tal sugestão, afirmando que as numerosas referências literárias constantes na obra freudiana evidenciam sua fúria pela leitura, atento sempre à educação clássica, com vários anos de grego e latim. Mezan recorda ainda a epígrafe que Freud assinala na Traumdeutung: Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo – Se não sou capaz de mudar o céu, sacudo o inferno – sugerindo que ela não foi escrita referindo-se aos deuses gregos e, sim, ao mundo em geral.

É sabido que Freud lia os clássicos gregos, latinos e alemães, bem como a literatura inglesa, estudando espanhol com gramática e dicionário, chegando a fundar, com seu amigo Silberstein, a “Academia Espanhola”. Aluno de Brentano, na Faculdade de Viena, aprofundou-se em Kant, Aristóteles, Feurerbach (seu filósofo preferido), traduzindo Stuart Mill. Doin resenha as seguintes referências contidas na Standard Edition: trinta e cinco relativas a Heinrich Heine; quarenta e sete a Friedrich Schiller, do qual retira a tese de Moisés ser egípcio, bem como a idéia constante na Psicologia das Massas se torna dummkopf, isto é, cabeça dura, idiota, etc. (Doin, 1996).

Sem nos alongarmos mais, notável é a presença de Goethe, o literato mais citado na obra e na correspondência freudiana. Rouanet, nosso fio condutor ora em diante, assinala que Goethe merece um estudo à parte, destacando-o em três registros: o hermenêutico, o clínico e o legitimatório. Quanto ao primeiro aspecto, aborda a interpretação de Freud acerca do suicídio de Jerusalém, personagem do “Werther”, correspondente ao amor de Goethe por Lotte Kastner, uma defesa contra a tentação de se matar. Outro comentário refere-se a uma recordação da infância de Goethe ao dizer que, ao nascer, foi considerado incapaz de sobreviver, sendo sua mais remota lembrança ter jogado pela janela, aos três ou quatro anos de idade, parte da louça da família, tendo sentido grande satisfação ao vê-la despedaçar-se. Da escuta de seus pacientes, correlatos semelhantes ao nascimento de um irmãozinho, analisando o mesmo acontecimento no passado de Goethe, Freud infere que este, ao querer livrar-se do incômodo rival. Podemos sugerir aqui, igual sentimento em Freud relativamente ao nascimento de Julius, seu irmão mais próximo que morre aos oito meses.

Com referência ao 2º registro, o clínico, Rouanet analisa um sonho com o poeta no qual este ataca um jovem autor desconhecido, interpretado como uma inversão da situação de fato: na verdade, fora um autor desconhecido que atacara um amigo de Freud, personalidade já famosa.

Goethe endossa ainda a teoria freudiana do chiste e também a tese de que o homem herda vivências pré-históricas transmitidas filogeneticamente, embora ativadas por circunstâncias individuais. E, ainda, quando Freud cita a famosa passagem do Neveu de Rameau, de Diderot, de onde retira sua descoberta central do complexo de Édipo, o faz explicando que essa obra fora traduzida por ninguém menos que Goethe. Igual herança percebe-se em Totem e Tabu quando Freud cita a célebre frase O que herdaste do teu pai, conquista-o para que o possuas. Ironicamente, Rouanet questiona: O que tem de escandaloso no ateísmo de Freud, se Goethe também é um perfeito pagão? Outra identificação mais significativa está numa carta a Fliess: “É no dia 12 de novembro de 1897; o Sol estava no lado oriental, Mercúrio e Vênus estavam em conjunção...” Nesse dia, informa Freud, nascera um novo fragmento do saber. Esse saber infante era nada menos que a teoria do desenvolvimento da libido. O início da carta é uma paródia das primeiras linhas da autobiografia de Goethe em que ele narra seu nascimento: no dia 28 de agosto de 1747, ao meio-dia, nascia em Frankfurt sobre o Meno. A constelação era afortunada. O Sol estava sob o signo da Virgem... Júpiter e Vênus se olhavam amigavelmente, e Mercúrio não era desfavorável (Rouanet, 2003).

As afinidades eletivas apontam para a dupla vocação de ambos os autores: se Freud foi criticado por receber o prêmio Goethe de literatura, este teve que lutar sozinho defendendo-se contra Newton, sua teoria das cores. Rouanet acrescenta ainda: Mas todos esses esforços de identificação ficariam inconclusos, se não houvesse um ponto de contato entre os dois pensadores naquilo mesmo que constituía a especificidade de Freud: a psicanálise.

Goethe não teria se limitado a antecipar processos psíquicos que seriam desvendados posteriormente pela psicanálise; ele antecipou a própria psicanálise... Assim, Freud cita uma carta de 1785 dirigida por Goethe a Charlotte von Stein, na qual ele conta ter “tratado” uma senhora, vítima de humores hipocondríacos, fazendo-a narrar todos os seus erros e transgressões... Em outro exemplo ele menciona que Goethe teria atuado como verdadeiro terapeuta, aplicando um método que se assemelhava, por estranhos pormenores, à técnica de nossa psicanálise (ibid).

Rouanet encontra mais um ingrediente na aproximação, vendo os sentimentos ambivalentes de Freud, que ora elogia, ora reprova Goethe, tal seja, na sugestão deste concernente ao caráter neurastênico de Hamlet, expressão de um homem cuja capacidade de agir paralisa-se pelo seu pensamento. Freud discorda: o personagem não é de momo algum incapaz de ação – ele manda dois cortesãos para a morte, e se não mata o rei, é porque ele próprio gostaria de tê-lo feito, manter relações com a rainha.

E por demais conhecida que a opção de Freud pelo estudo de medicinas deveu-se ao belo ensaio de Goethe, Die Natur, o qual produziu nele uma verdadeira conversão, na dupla acepção que têm tanto a palavra portuguesa quanto a alemã: profissão e chamamento. Ele ia estudar direito, com a intenção se dedicar à política. Em vez disso, graças ao impacto do ensaio, foi estudar medicina. Podemos dizer que Goethe gerou o médico do qual nasceu o psicanalista. Foi o genitor de Freud, como nós o conhecemos, Moisés foi o Urvater judeu de Freud. Faltava um Urvater cristão, com que ele pudesse se identificar, transcendendo os limites estreitos da cultura judaica. Foi o papel de Goethe (ibid). Rouanet apresenta, em resumo, mais doze significativas inspirações desse parentesco, acrescentando: Com isso Freud produz uma das mais decisivas semelhanças entre si próprio e Goethe: os dois eram dois grandes fingidores. Lamentavelmente, se essa característica cria mais uma afinidade entre ambos, ela dificulta a compreensão integral da completa rede de identificações que Freud estabeleceu com Goethe (ibid).

Deixemos Goethe, lembrando a aproximação de Freud com Nietzsche, expressamente negada por ele, ao mesmo tempo citada já na Interpretação, a qual mereceu exame detalhado de Paul Laurent Assoun, para enfocar, com estranheza, a ínfima presença de Espinosa no texto freudiano: apenas três citações incidentais são encontradas nos 23 volumes da ESB.

Personagem inexistente, por igual, nos trabalhos de Jones, Gay, Marthe Robert, dentre tantos outros biógrafos e estudiosos. Yerushalmi apenas o menciona, em seu Moisés de Freud, no contexto das heresias. Lacan o cita em alguns de seus Seminários. Marialzira Perestrello localizou duas referências importantes: uma carta de Freud a Siegfried Hessing num Festschrift de 1933 em homenagem aos trezentos anos do nascimento de Espinosa; a outra é a de Chemouni em Freud, la psychanalusme et le judaisme (Dines, 2003).

Na ESB Espinosa é citado acerca da curiosidade e da sede de saber de Leonardo da Vinci, comparado com a de um Fausto, sugerindo que ele se aproxima do pensamento daquele filósofo. Ora, tal afirmação leva a inferir seu conhecimento sobre o pensamento espinosiano.
Dines propõe uma curiosa aproximação entre ambas biografias. Vejamos com o auxílio ainda de Damásio (2004).

Espinosa nasce na Idade de Ouro do judaísmo, o sefardismo ibérico, na próspera cidade de Amsterdã em 1632.Vizinho de Rembrandt, então com 23 anos, pintando A lição de anatomia do doutor Tulp, tendo por mecenas Constantijn Huygens, estadista e poeta, pai de Christian Huygens, que viria a ser um dos mais brilhantes astrônomos e físicos da história, tendo sido aluno de Descartes, que, por essa época, também habitava o mesmo solo.

Espinosa recebe o nome judaico de Baruch, adotando, após ter sido expulso de sua própria sinagoga, o nome latino Benedictus. Seus pais, judeus sefarditas portugueses, o chamavam Bento. Por igual, Freud jamais assinou o Scholomo, recebido no batismo, simplificando ainda o Sigismund para Sigmund. Ambos lutam com dificuldades financeiras, ambos fumam cachimbo, ambos elegantes no trato e no vestir, ambos ocuparam-se da religião em geral. Espinosa foi o primeiro judeu não-judeu, afastando-se da comunidade judaica, mas não da judeídade. Freud não sofreu excomunhão, todavia, à medida que foram sendo divulgados rumores e conhecidos alguns trechos do seu Moisés, foi alvo de uma formidável pressão para adiar a publicação, e, até mesmo, modificá-la. Os dois souberam conduzir a penosa condição judaica de buscar a verdade às últimas conseqüências, ultrapassando limites, transformando-se ambos em expoentes do que hoje se considera crítica bíblica, com base no ceticismo crítico e rigorismo ético.

Marilena Chauí, profunda estudiosa do espinosismo, permite-nos fazer, de modo sucinto, uma aproximação entre alguns aspectos de ambas as teorias. Se para Freud a religião é uma ilusão sem futuro, apenas uma neurose infantil, fruto do desamparo humano, carente de um pai onipotente e protetor, garante imaginário de sua incolumidade face à Not des Lebens, para Espinosa, o Absoluto é materializado no conceito de substância, que existe em si e por si, sem a qual nada existe nem pode ser concebido. Ou, dito de outro modo, Deus sive natur. Para ele a teologia ergue-se sobre uma imagem de Deus como uma pessoa transcendente, onisciente, um demiurgo, artífice universal, que governa todos os seres, com todas as qualidades humanas de amor, bondade e justiça, colérico e misericordioso, a um só tempo, que ampara e provê todas as necessidades e desejos do homem, organizando e mantendo o universo magistralmente, sob uma ordem jurídica natural.

A mente humana, um modo do atributo pensamento, portanto, uma força pensante ou um ato de pensar. Um corpo, um modo finito do atributo extensão, constituído pela união de uma pluralidade de corpúsculos duros, moles e fluidos relacionados entre si pela harmonia e equilíbrio de suas proporções de movimento e repouso (...).

O primeiro objeto que constitui a atividade pensante da mente humana é o seu corpo e por isso a mente não é senão idéia do corpo... Em outras palavras, a união corporal e a conexão mental são atividades que constituem a singularidade individual (Chauí, 2003). A alma, a seele de Freud, é idéia do corpo. Espinosa define a essência do homem pelo desejo (cupiditas), sendo a tendência interna do conatus (alma e corpo) a fazer algo que conserve ou aumente sua força (a pulsão?). Sendo a alma consciência da vida de seu corpo e consciência de ser consciente disso, deixa de existir o problema metafísico da união entre ambos, alma e corpo, o que, de resto, Freud propõe no seu Grundbegriff – a pulsão.

Damásio considera o estudo de Espinosa absolutmente relevante, embora não sendo filósofo e, sim, emérito professor de neurologia, uma vez que entendia as emoções, as motivações e os sentimentos, cujo conjunto ele designava como afetos, aspecto central da humanidade.

Se Freud declara que um dia, tudo acabará em química, hoje, o conatus espinisiano nada mais é que o agregado de circuitos cerebrais os quais, uma vez ativados por certas condições internas ou externas ao indivíduo, levam-no à cata de seu bem-estar, representadas no cérebro através de sinais químicos e neurais. No trato das reminiscências, mais uma inspiração: Um homem é tão afetado, agradavelmente ou dolorosamente, pela imagem de uma coisa passada ou futura como pela imagem de uma coisa presente, diz Espinosa na sua Ética.

Fiquemos por aqui, lembrando que, se admitirmos o conflito entre os devires culturais vividos por Freud, podemos conceber a Psicanálise como uma solução de compromisso, vez que o recalque nada mais é que um arquivo – sintoma ou sublimação? – que, todavia, somente um ser tão vasto como ele poderia engendrar, o que nos remete a Paul Eluard quando escreve As geografias solenes dos limites humanos...

Keywords
Bricolage – Literature – Judaism – Judeism – Nature

Abstract
The author analyses some of the sources of the freudian text, emphasizing the absence of references to Espinoza, the first jewish atheist thinker.


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Recebido em Junho/2005, aceito em Agosto/2005
Endereço para correspondência:
Rua Antônio Parreiras, 139/601
24210-320 - Niterói - RJ