Marli Piva Monteiro
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico
da Bahia
Tradutora pós-graduada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)
Palavras-Chave:
Relação sujeito/objeto – Triângulo
– Desejo – Falta – Função tradutor/autor
– Função analista/tradutor
Resumo:
A tradução mantém uma relação
intrínseca com a psicanálise, uma vez que a primeira relação
humana é uma relação de tradução.
A tradução é sempre incompleta e cheia de falhas
e tropeços como o próprio sujeito. O autor é uma
função, não uma autoridade, e a relação
entre o tradutor/autor é conflituosa como a relação
com o desejo ou a relação psicanalítica.
Falar
de Psicanálise e Tradução poderia à primeira
vista parecer despropositado, mas essa impressão logo se desfaria,
ao lembrarmos que como poucos de nós tivemos oportunidade de
ler Freud em alemão, a psicanálise a que tivemos acesso
foi sempre traduzida, quer a do Ballesteros y Torres, quer a do James
Strachey. Como se isso não fosse suficiente, é a tradução
a responsável pela imortalização dos clássicos
de todos os tempos, escritos em grego e latim. E seria possível
falar de psicanálise sem falar de Édipo, de Antígona?
Como se poderia falar de psicanálise sem mencionar O Banquete
de Platão. Pode-se estudar psicanálise sem mencionar Sófocles,
Platão, Sócrates, Aristóteles?
Milenar, como a própria tradução, é a necessidade
do homem de se comunicar. Os primeiros tradutores foram os hermeneutas,
que se preocupavam em traduzir, para os homens, os desejos divinos e
para Deus, os desejos dos homens. Eram um espécie de intérpretes
do desejo. As traduções, então, eram feitas palavra
por palavra. Foi S. Jerônimo quem pela primeira vez esboçou
um protesto contra esse tipo de tradução, dizendo que,
para ele, tradução era sensum de sensu. Estas discórdias
quanto ao que se deve traduzir e até se é possível
traduzir, têm sido uma constante na história da tradução.
Mas não obstante a celeuma, a tradução sempre ocorreu
e continua a acontecer.
Ora, o homem, para a psicanálise como para a literatura, é
humano porque fala. Já nasce programado na linguagem e nela vive
eternamente seus conflitos existenciais. O bebê, ao nascer, é
imerso num banho heterogêneo de significantes e significados –
um verdadeiro caldo de cultura – nos dois sentidos de caldo de
cultura, quer por ser de cultura que se trata, quer no sentido da microbiologia,
porque vai possibilitar o crescimento de tantos significantes e significados.
A mesma mãe que assiste o bebê nos primeiros tempos é
quem se constitui nesse infindável poço de palavras e
começa a nomear o que ele sente. Se a criança percebe
as contrações dolorosas do estômago e chora, ela
lhe diz que isto é fome; se treme, ela o agasalha e chama a essa
sensação de frio. Claramente percebe-se, portanto, que
o homem nasce objeto para fazer-se sujeito. Sujeito, porém submetido
outra vez, mas desta vez à linguagem, assujeitado à palavra,
pagando o preço da sua inserção na comunidade dos
humanos, diferenciado dos animais.
O conflito desse vir-a-ser sujeito e tornar à condição
de objeto, contudo, será a dramática e incessante luta
do ser humano pela vida afora. O passaporte que concede ao sujeito a
inclusão na ordem simbólica é o corte significante,
marcando-o definitivamente no corpo, enquanto a mãe o nomeia,
quando nomeia suas sensações, erotizando seu corpo. É
dividido e assujeitado que começa seu percurso de sujeito em
idas e vindas, determinadas pelo desejo e pela falta. Falta, que se
por um lado o fere narcisicamente como incompleto, por outro, lhe permite
o acesso ao desejo, na tentativa infrutífera de encontrar um
objeto irremediavelmente perdido, uma busca incessante.
Uma vez admitido na comunidade dos falantes, através da castração,
causa e possibilidade de desejo, o sujeito estará limitado pelo
código lingüístico – limitação
essa que não ocorre só em relação ao seu
modo de exprimir-se, de ver o mundo e de relacionar-se, mas até
mesmo do ponto de vista fisiológico irá se manifestar.
Sabemos que o aparelho fonador dos seres humanos ao nascer é
capaz de reproduzir quaisquer tipos de sons, razão pela qual
criancinhas falam o idioma do lugar onde nascem sem a menor dificuldade.
No entanto, se os órgãos da fala não são
utilizados para emitir certos sons, sua capacidade de produzi-los se
atrofia definitivamente e por isso, se alguém aprende um idioma
estrangeiro após os 13 anos de idade, dificilmente conseguirá
reproduzir com fidelidade certos fonemas para os quais não foi
treinado. Essa é a razão da dificuldade dos estrangeiros
com o som nasal ão do português, ou dos brasileiros, com
o th interdental do inglês ou a dupla consoante italiana.
A possibilidade de inscrever-se num novo código lingüístico
atrai e fascina o homem desde sempre, como oportunidade de obturar a
falta. É porque não o logra que pode prosseguir. É
nesse encontro entre a falta e o desejo que a tradução
vem situar-se. Na impossibilidade de acontecer totalmente é que
pode constantemente ocorrer. A relação da primeira tradução
com o desejo se evidencia nas tentativas iniciais do bebê de,
traduzindo a mãe, satisfazer o desejo dela. É a frustração
de não realizá-lo que o mantém vivo e desejante,
enquanto ser de falta. Ao perceber que não se trata de satisfazer
o desejo da mãe que é fadado a ser insatisfeito, como
o seu próprio, o bebê encontra o caminho para a busca,
sua razão de ser e de viver.
O processo de tradução evidencia o tempo inteiro o conflito
sujeito x objeto, quer no ato de traduzir, na teoria ou mesmo no ensino
da tradução. A relação estabelecida entre
o leitor e o texto é sempre triangular – leitor- texto-
autor – ou texto na língua de partida –, leitor-texto
na língua de chegada ou pai - falo - filho.
Otávio Paz, grande poeta e tradutor, recentemente falecido, considerou
a tradução como paradigma da linguagem humana, quer na
mesma língua, quer em línguas diferentes.
Na primeira relação do bebê, ele não fala
ainda mas utiliza-se de propriedades proprioceptivas para se comunicar
com a mãe, que o entende e responde com palavras. Trata-se da
primeira lição de tradução e interpretação
– processo motivado pelo amor e o desejo que vai marcar a relação
de cada tradutor com seu texto.
Vista como mera transmissão de palavras, de sentidos ou de equivalentes,
até mesmo de culturas, a tradução esbarra numa
questão fundamental – a fidelidade do tradutor. O dito
italiano traduttore, tradittori nada mais é que a vivificação
dessa lembrança. Mas a que deve ser fiel o tradutor? Se for ao
texto, tem-se que admitir que haja um texto que seja pronto, que contenha
significados fixos, imutáveis, sem levar em conta as condições
do leitor, seu mundo político e social, sua Weltanschauung, suas
circunstâncias, sua história, sua origem, enfim, seus pré-textos
e pretextos, seu desejo, seu inconsciente. Esses significados, o leitor
teria que descobrir no texto como objeto independente e depois de destrinchados
e bem protegidos seriam integralmente passados para a outra língua,
o processo de tradução, todavia, implica em um conflito
que parece atualizar a contraposição sujeito-objeto, o
tempo todo, pois a relação estabelecida entre o leitor
e o texto, como já vimos, é sempre triangular.
O texto não se rende à normatização, é
rebelde a todo tipo de controle. A fragilidade e as limitações
do modelo lingüístico não dão conta da tradução
mas o tradutor insiste. E por que insiste? Seria o desafio de escapar
à sujeição da linguagem através do domínio
de um outro código lingüístico? O desafio perde-se
no tempo. Na Antigüidade, o homem tentou construir a Torre de Babel
visando à compreensão universal. O simbolismo da Torre
de Babel é inequívoco – atesta, ao mesmo tempo,
a multiplicidade de línguas, a impossibilidade de concluir-se
e a impossibilidade de comunicação. A tentativa resultou
em algo inacabado e impossível. A incompletude da Torre de Babel
é o símbolo da tradução, a multiplicidade
de línguas é a multiplici-dade de significados e a impossibilidade
de significados constituídos completos que impedem que sejam
unidos para sempre significados e significantes. A tradução,
segundo Jacques Derrida, papa do desconstrutivismo, se transforma numa
dívida que não se pode saldar, tal qual a do Homem dos
Ratos, verdadeiro motivo da compulsão, marcada no nome de Babel
que se traduz e não se traduz, nem pertence a língua nenhuma
e se endivida consigo mesma, como dívida impagável e eterna.
Derrida faz um jogo de palavras com o título do seu livro Des
Tours de Babel que soa no francês do mesmo modo que (Détours
de Babel) quer se refira ao indefinido DES que traduziríamos
por sobre, a respeito de, quer se refira a DÉTOUR que quer dizer
rodeio, desvio, sinuosidade. A desconstrução de Derrida
nos faz refletir sobre a tradução mas recupera todos os
sentidos do prefixo TRANS, que significa movimento para além
de, através de, posição ou movimento através
de e compõe as palavras: Translation,Transferência e Transporte.
Mas voltando ao tradutor, se não for fiel ao texto, seria fiel
ao autor? Da mesma forma que a ficção não nasce
do real mas da ausência do real, é impossível personificar
o autor no texto. O autor não é o outro semelhante, mas
enquanto lugar-função é o Outro. Ao investir-se
da função de tradutor, o leitor estará supondo
ser esse Outro, capaz de gerar significados. Mas ao terminar de ler
o texto, perceberá que é como ser faltante, incompleto,
falho, cheio de lacunas a serem preenchidas por outro que se proponha
a ocupar de novo esse lugar, ou seja, outro leitor-tradutor. Esse Outro,
que não é ninguém, mas função conferida
ao leitor do momento, é que vai fazer do texto, emergir o sujeito,
ou o desejo que é a mesma coisa.
Tratando-se de tradução, qualquer que seja a situação,
quer ela se passe numa mesma língua ou entre uma língua
e outra, há sempre um leitor ou um receptor que se apropria do
significado do outro e o traduz para o seu próprio idioma, o
que poderíamos chamar de um “ato de transferência”
(nos dois sentidos de transferência, transporte ou relação
analista-analisando).
Ora, toda interpretação é motivada pelo desejo
e contém em si algo de agressivo, por isso, entregar-se à
leitura/ tradução é entregar-se ao desejo, dele
ficando à mercê, segundo Rosemary Arrojo. E porque é
uma prática de desejo, a tradução deixa sempre
um resto, o mais um que não se conta, resíduo, rastro
que irá permitir que o processo seja inacabado e prossiga. Para
que uma leitura seja produtora de novos textos tem que marcar sua singularidade.
Por isso, a leitura nem é isolada nem ascética e não
existem textos mas relações entre textos, declara Arrojo.
De acordo com as novas teorias da tradução, a fidelidade
do tradutor é questionada como remissão de culpa, como
tributo prestado ao pai (autor) pelo desejo de apossar-se do seu texto
para produzir os próprios significados.
A possibilidade de uma tradução total e completa não
existe – a super-tradução é tão irreal
como a ilusão da completude do sujeito, mas o tradutor precisa
dessa ilusão para investir o texto como objeto de desejo e traduzi-lo.
Causa-nos certa estranheza constatar que até os psicanalistas
que conhecem sobejamente as intrincadas armadilhas do desejo, deixem-se
por ele enredar como Laplanche, que se referindo à tradução
de Freud comunica que não tocou em nada nem nos parênteses
e até respeitou os artigos e as orações subordinadas
que eram características do pensamento do autor. Elisabeth Roudinesco
chega a mencionar uma tentativa de Laplanche de “apagar”
Lacan do texto para não permitir a ele, Laplanche, ser infiel
a Freud. O que corresponderia admitir que Lacan foi fiel a Freud, o
que absolutamente não aconteceu. Lacan fez a sua leitura-tradução
de Freud. É como se após a morte do pai, a luta fraticida
se estabelecesse na disputa do espólio.
Por sua vez, Lacan, ao recolocar no texto as expressões alemãs,
e o faz às dezenas, Die Verwerfung, Die Verneinung, Die Wunsch,
Das Ding, Die Vorstellung, Die Traumdeutung, usa “fetiches da
arbitrariedade do significante”, segundo Forrestier, reforçando
a idéia de extrema e absoluta fidelidade ao texto original. Lacan
utilizou-se da pretensa fidelidade ao texto freudiano para propor um
“retorno a Freud” que politicamente lhe convinha ao deixar
a IPA, mas produziu de fato uma nova tradução da psicanálise
e tornou-se autor. Como todo leitor-tradutor, criou um texto fazendo
suas escolhas e lhes dando um sentido, mas jamais esgotando todas as
novas possibilidades.
No entanto, por ser falha, incompleta e capaz de gerar sempre outros
textos, a tradução foi e é ainda comparada à
mulher, quando delas se diz que “quando fiéis não
são bonitas e quando bonitas, não são fiéis”.
Abstract Translation is intrinsically related to psychonalysis since the first
human experience is an experience of translation. Translation is always
incomplete and full of creeks and faults as the subject himself. The
author is a function, not an authority and the relation between the
translator/author is conflicted as the relation with the desire or the
psychoanalytic relation.
1 Trabalho apresentado
durante a X Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia
– Salvador - Nov. 1999.
Bibliografia
ARROJO, Rosemary. Tradução, desconstrução
e psicanálise. Rio de Janeiro: Biblioteca Pierre Menard, 1993.
ARROJO, Rosemary. Oficina de tradução – a teoria
na prática. S. Paulo: Atica, 1986.
PAZ, Otavio. Traducción: literatura y literalidad. Barcelona:
Tusquets Editor, 1971.
LAPLANCHE, J.; BOURGUIGNON, A; COTTET, P.; ROBERT, F. Traduire Freud.