Do Significado do Ato: Sentido e Criação na Análise
Rejane Czermak
Psicanalista em formação no Círculo
Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Professora Titular no Curso
de Psicologia da Unisinos, em São Leopoldo/RS. Doutora em Psicologia
Clínica pela Universidade Livre de Berlim, Alemanha.
Palavras-Chave:
Intervenção psicanalítica – Criação
– Desejo
Resumo:
Este estudo pretende problematizar a dimensão criativa
dos processos de significação no âmbito da intervenção
psicanalítica, e situá-la como aquilo que se busca em
um processo de análise, através da escuta dos movimentos
do desejo, em seu poder de invenção.
No começo de uma análise temos um sujeito marcado pelos
seus sintomas e pelo desprazer que os mesmos produzem, e o que se apresenta
são os seus enredamentos na sua experiência de ser e estar
no mundo.
No entanto, a partir da interpretação dos sintomas em
suas relações superegóicas e identificatórias,
o desprazer vai cedendo espaço para o surgimento da vertente
prazerosa ligada ao sintoma, ou seja, sua articulação
com uma certa satisfação pulsional em termos de fantasias
que Freud1 chamou de rochedo da castração.
Se no sintoma vemos um sujeito errante na busca de um objeto que falta
e que jamais será encontrado, na fantasia o sujeito é
aquilo que preenche a falta do outro sendo então o objeto o que
o detém e o fixa. É ai que o sintoma e a pulsão
se articulam e que o sintoma se torna resistente à interpretação,
levando Freud a supor a análise como interminável.
Assim, o prazer está presente no sintoma desde o início,
não como ganho secundário, mas como aquilo que não
cessa, que privilegia o gozo, o Real2 e que é inatingível
pela via da interpretação na medida em que não
pode ser apreendido pela via significante.
Conforme Miller3, depois de percorridas as redes simbólicas que
determinam o sujeito, onde a série infinita de objetos é
reduzida a um traço presente em todos, operando-se uma convergência
que isola aquilo que se repete enquanto o ponto de fixação,
o que temos é um resto de libido que não se conformou
à redução simbólica.
Trata-se do caráter puramente quantitativo do afeto e que exige
sua efetuação em termos qualitativos de simplesmente mais
potência. A partir deste ponto, o que se produz é da ordem
da invenção e aponta uma mudança de posição
do sujeito: enquanto na fantasia ele é objeto do gozo do outro,
ao nível do real, “serve-se do outro”4 e inventa
um modo de gozo. Trata-se de um puro fazer sem significação
que só se torna sabido em ato e se produz no limite do encontro
com o Real. Por não estar submetido ao simbólico e situar-se
além do princípio do prazer, o real é um domínio
não sexualizado: “se a fantasia via desejo, articulada
no campo simbólico, sustenta a sexualidade, o objeto situado
na dimensão do Real não o faz”.5 Neste sentido,
Lacan6 vai se referir que o final de uma análise deve ser pensado
em termos da travessia da fantasia (distanciamento) e da disjunção
do sujeito e do objeto.
Se aqui vemos uma passagem da clínica lacaniana construída
na lógica do significante para uma clínica que privilegia
o Real do corpo7 - distinto do biológico, pois fala de um corpo
e suas intensidades, é em Deleuze8 e em seu conceito de acontecimento
que buscamos os fundamentos para falar de uma clínica para além
tanto da posição estruturalista de um saber que já
existia a priori, porém, desconhecido para o sujeito, onde a
análise resultaria em um acréscimo de conhecimento, como
também em termos de uma verdade construída a posteriori
enquanto potência que emerge após o ato. O conceito de
acontecimento nos remete a entender o ato como o próprio surgimento
(Entstehung) simultâneo tanto do sujeito como do objeto que, enquanto
reais, determinam, a partir de suas propriedades reais, a singularidade
do sentido (de si e de mundo) que se produz na especificidade desta
relação.
No plano dos corpos e suas intensidades, um objeto real se coloca como
diferença de potência para ser apreendido por outro objeto
também real, que como sujeito desta preensão se atualiza9
como diferença, ou seja, como mais potência. Trata-se de
uma experiência subjetiva de ordem afetiva percebida pelo sujeito
enquanto intensidades e duração a partir do sentir imediato
dos efeitos que se produzem na concretude do encontro entre objetos
reais, Ou seja, a intensidade da emoção e sua variação
no tempo implicam a percepção de um si mesmo que emerge
como uma qualidade interna surgida na relação para, em
conjunto e como reflexo desta experiência, traduzir-se como o
sentir de si próprio transformado na especificidade dessa relação.
Esta transformação se opera em termos de “potência”
e “diferença de potência” e implica a emergência
de um outro sentido de si.
Se Lacan situa a criatividade na travessia da fantasia, portanto, ao
nível do real e das intensidades (potências) que se atualizam
a partir do servir-se do objeto, Winnicott10 ao abordar esta questão,
vai problematizá-la enfocando principalmente a relação,
o “entre corpos” como a coisa em si. Implica na destruição
do objeto onipotente para que o mesmo se torne objeto de uso que, enquanto
externo e diferente (outro), contribui com suas próprias propriedades
para a afirmação tanto de um si mesmo como do próprio
objeto, os quais emergem simultaneamente no próprio entre enquanto
espaço potencial. Winnicott vai nomear este processo de “apercepção
criativa” 11, pois acontece em um plano sensível independente
de qualquer imagem, de qualquer significação simbólica
ou, conforme Lacan, independente de qualquer articulação
significante.
Entendemos que o sentido de potência ou, conforme Nietzsche, a
vontade de potência forma o pano de fundo de toda vida mental.
Podemos dizer que o sentido se constrói como resposta à
pergunta: Sou capaz ou não de realizar um desejo? A resposta
ou o sentido emerge na relação imediata com a alteridade
e é captado em termos de potência – eu-com-o-outro-posso
– ou, ao contrário, como sentido de impotência (ou
desamparo) – eu-com-o-outro-não-posso – ou como sentido
de onipotência – eu-sem-o-outro-posso.
Afetos nos falam, portanto, de estados vividos-no-mundo enquanto sentidos
de potência e também seus correlatos: sentidos de impotência
e onipotência, todos estes como representações não
lingüísticas que vão se ligar a diferentes construções
fantasmáticas enquanto estruturas complexas que intervêm
desde o inconsciente até o consciente.
Esta vida mental só pode ser pensada em sua dimensão relacional
e afetiva enquanto afetos, suas variações e abstrações
que se produzem no plano real enquanto a experimentação
dos efeitos que se produzem no encontro. Mais do que um mundo de identidades
e clausuras é um mundo de diferenças e capturas onde,
conforme Deleuze12, o sujeito não se encontra fechado no mundo
das séries infinitas convergentes e compossíveis que expressa
por dentro, mas se mantém aberto graças às séries
divergentes e os conjuntos incompossíveis que o arrasta para
fora. A economia desejante não se curva à função
repressiva e também não se esgota quando representada
ou interpretada, mas continua a estabelecer conexões à
procura do que está por vir.
Desta forma, o desejo não é propriedade de nenhuma subjetividade,
nem a subjetividade pode ser tomada a partir da idéia de uma
interioridade contraposta ao que lhe é exterior e que ganha expressão,
ou enquanto uma sexualidade transformada em suas origens, ou em termos
de um saber que sucede ao ato.
Podemos situar estas formulações em termos da criação
de um pensamento-ação estritamente ligado ao desejo e
à implicação do sujeito, que é ao mesmo
tempo sujeito do conhecimento e sujeito do desejo. Trata-se de inventar
modos de existência ou possibilidades de vida que não cessam
de se recriarem como novos, sendo esta atividade própria dos
fluxos desejantes a partir da exterioridade das forças existentes
e suas relações, entendendo o campo do real como o campo
das puras virtualidades.
Para Winnicott13 trata-se de uma maneira de viver onde o indivíduo
sente que a vida é digna de ser vivida, em contraste com um relacionamento
de submissão à realidade externa, onde o mundo é
reconhecido apenas como algo a que se ajustar ou se adaptar.
Assim, podemos dizer que a produção de sentidos ou a subjetivação
se distingue de toda moral: ela é vital, portanto ética
e simultaneamente estética, pois constitui estilos de vida sempre
singulares, na medida em que o que é vitalizante para um, não
o é para outro.
Para além da castração simbólica como valor
universal de identidade do sujeito, trata-se, sim, de uma pragmática
universal cujos efeitos só podem ser entendidos ao se considerar
suas duas vertentes: o sujeito e o mundo como encontro de corpos reais
em seu poder de afetarem e serem afetados.
A questão colocada aqui é entender a criação
de um nome como o ato de experimentação de uma nova potência
de si que emerge sempre na relação intensiva com a alteridade.
Dito desta forma, significa que situamos a própria enunciação
no âmbito de um sujeito que não somente diz eu mas essencialmente
faz eu enquanto a afirmação criadora de um sujeito desejante.
Tal posicionamento remete a entender que o sintoma, assim como as fantasias,
colocam-se como formações discursivas que se originam
na impossibilidade de efetuar esta afirmação e conseqüentemente
experimentar seu gozo.
Desta forma, não será a proposta analítica a instauração
de um “espaço-potencial” onde se torne possível
desemaranhar as tortuosas linhas de uma trama que acaba por destituir
a potência do viver?
Trata-se de liberar a produção, o fluir das pulsões,
restituindo-lhes o poder de invenção. Se a interpretação
opera no sentido de desbloquear o fluxo do desejo naquilo que o aprisiona
em termos das significações fantasmáticas, é
na escuta das linhas intensivas, dos elementos a-significantes: as vozes
e suas musicalidades, um gosto, um cheiro, cores, imagens e seus movimentos,
sombras e luzes que o analista poderá auxiliar o analisando a
estabelecer uma conexão com seus afetos naquilo que se significa
como vitalizante ou destrutivo.
Deleuze nos leva a pensar uma clínica acontecimento como aquela
que se propõe elevar afetos à potência. Essa nova
lógica, ao invés de pensar a subjetividade ligada à
concepção de uma identidade fundamental universal, propõe
a criação de processos singulares a partir da experimentação
das intensidades vividas e da apreensão desta diferença
como possibilidade de invenção de sempre novos e estranhos
eus.
A proposta de que estamos falando é de sermos artistas na vida,
torná-la ato de criação, tecer-lhe a trama, expandindo-a.
No nível do corpo e suas intensidades, o mundo se oferece.
Abstract: This paper intends to analyze the creative dimension of the processes
of significance in the real of the psychoanalytical intervention in
order to put it as a target in a process of analyses by focusing on
the moves of desire and its power to invent.
1 FREUD, Sigmund.
“Análise terminável e interminável”,
v.XXIII, 1975.
2 LACAN, J. Joyce, o sintoma. Coimbra: Escher, 1986.
3 MILLER, J-A. “O osso de uma análise”. Cadernos
de Psicanálise, Sociedade de Psicanálise da Cidade do
Rio de Janeiro, v. 20, n. 23, p.275-90, 2004.
4 LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. Notas de curso,
1975-76.
5 ISSA, M. G. V. N. Idem.
6 In ISSA, Maria das Graças Villela Neder. “Sintoma, gozo
e final de análise”. Cadernos de Psicanálise, Sociedade
de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro, vol. 18, n° 21,
p. 201-8, 2002.
7 LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda, 1973.
8 DELEUZE, G. El Pliege Leibniz y el barroco. Buenos Aires: Paidós,
1989.
9 Para o processo de diferenciação como atualização
de virtualidades remeto o leitor para CZERMAK, R. “Subjetividade
e clínica: notas preliminares para uma cartografia do autismo”.
In: Plastino, C. & Bezerra Jr., B. (org.). Corpo, afeto e linguagem:
a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.
10 WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago,
1975.
11 WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade, p. 95.
12 DELEUZE, G. Idem.
13 Winnicott (1975), op.cit.
Bibliografia:
CZERMAK, R. “Subjetividade e clínica:
notas preliminares para uma cartografia do autismo”. In: PLASTINO,
C. & BEZERRA Jr., B. (org.). Corpo, afeto e linguagem: a questão
do sentido hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2001.
DELEUZE, G. El Pliege Leibniz y el barroco. Buenos Aires: Paidós,
1989.
FREUD, S. “Análise terminável e interminável”.
Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de, v.X XIII. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
ISSA, M. G. “Sintoma, gozo e final de análise”. Cadernos
de Psicanálise, Sociedade de Psicanálise da Cidade do
Rio de Janeiro, v. 18, n. 21, p. 201-8, 2002.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1973.
LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1975.
LACAN, J. Joyce, o sintoma. Coimbra: Escher, 1986.
MILLER, J-A. “O osso de uma análise” (1998). In:
MACHADO, O. M. “Qual a relação entre sintoma e sinthoma”.
Cadernos de Psicanálise, Sociedade de Psicanálise da Cidade
do Rio de Janeiro, v. 20, n. 23, p.275-90, 2004.
WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Recebido
em Junho/2005, aceito em Agosto/2005
Endereço para correspondência:
Av. Coronel Lucas de Oliveira, 2730/508 - Petrópolis
90460-000 - Porto Alegre - RS
E-mail: czermak@unisinos.br