Psicanálise
e Psicanalista:
Demandas, Intervenções e Questões
Trani de Meneses e Dacorso
Psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise/RJ.
Mestre em Psicanálise. Professora de Psicologia do Centro de
Ensino Superior Juiz de Fora
“A pesquisa científica representa a forma mais elevada
de adaptação do Princípio da Realidade atingida
até o presente. Mas toda verdadeira ciência – isto
é, uma soma de experiências com generalizações,
teorias e hipóteses – não é de maneira alguma
o produto puro e sem mistura da pesquisa científica. Ela mostra,
como todo o resto, traços de desejos e de angústias inconscientes,
na forma de cegueira para fatos importunos ou de sua distorção
pelo desejo de fazê-los coincidir com o que se gostaria que fossem...
Toda ciência conserva a marca de sua origem, da influência
pessoal dos mestres pelos quais ela foi criada e desenvolvida, da obediência
cega ou da revolta das gerações recentes perante seus
predecessores”
Resumo:
O presente artigo procura fazer uma análise de nossa
sociedade tecno-científica e o lugar da psicanálise neste
contexto. Uma dinâmica social que desvaloriza e marginaliza o
bom-senso, a palavra e o sentir. A autora tenta pensar mudanças
no setting psicanalítico como sendo a via que permite a ação
do psicanalista sem divã.
Introdução
O
título do presente artigo alia a teoria e prática do profissional
psicanalista no nosso milênio. No mundo da era globalizada, a
violência, as misérias, os abusos, desmandos e desamparos
ficaram banalizados. A guerra invade as telas da televisão como
se fosse um filme... mas o sangue e a morte são reais.
Surgem novas teorias e técnicas terapêuticas, propondo
soluções mais rápidas e efetivas para homens, grupos,
instituições e comunidades. Paralelo às técnicas
curativas, as políticas sociais e econômicas têm
por objetivo as quebras de garantias sociais, profissionais e sindicais,
aumentando a insegurança, o medo e a fragilidade das pessoas.
Estamos numa sociedade marcada pela exigência de respostas tecno-científicas
beirando ao cientificismo que nos leva a ficar presos nas teias do fato
comprovado. Que posição ocupa a Psicanálise neste
mundo? Qual sua contribuição científica –
se há – para intervenções neste contexto
social?
O enquadre, fundamental ao “setting” analítico, para
abordagem do objeto da Psicanálise – o inconsciente –
deve ser repensado em decorrência do fato de nós profissionais
estarmos enveredando por outros espaços. Tentaremos levantar
hipóteses para que o “psicanalista sem divã”
possa atuar num mundo marcado pela comprovação científica.
Acreditamos que a resposta para a reorganização do enquadre
se encontra no interior da teoria psicanalítica.
Análise
No
início do século XIX, quando Sigmund Freud, sujeito de
seu tempo, começou a construir o corpo científico –
assim o consideramos – da Psicanálise, a cultura da época
primava por um código de valores e regras claras. A Lei tinha
seu lugar, a transgressão quando exposta provocava desagrado
e exigência de punição.
A vida sempre foi imprevisível, mas herdeiros do Iluminismo e
influenciados pelo positivismo, todos acreditavam no poder da ciência
e na segurança que esta poderia dar aos homens.
A Psicanálise teve o mérito de solucionar, reconhecer
e desvendar a fala carregada de fantasias, desejos, amores e ódios.
Com o tempo, este saber foi se especializando e sofisticando. Durante
as Grandes Guerras ocorreram cisões e exílios para outras
terras. Novas teorias e técnicas foram forjadas para compreender
e abordar distintas realidades e subjetividades.
O mundo se instalou numa nova ordem. As mudanças culturais, a
tecnologia e a ciência ofereceram novos estilos de vida, de organização
e administração social. A unicidade da história
é questionada e as referências ao passado são consideradas
nostálgicas. Percebemos o declínio do mundo privado; as
revoluções institucionais; as guerras; ameaças
e crises ecológicas; os neo-tribalismos; novas identidades sociais;
a engenharia genética, o acesso facilitado às drogas lícitas
e ilícitas; a economia globalizada e virtual; os desempregados
sem função... inevitável perguntarmos: e o ser
humano? Como reagiu e se adequou? A quem tem recorrido para lhe dar
suporte no desamparo e insegurança? Para atender a um social
em mutação, o homem tem recorrido a tudo e a todos que
lhe dêem forças para se re-inventar o tempo todo.
Depois dessa abordagem generalizada o olhar se volta para nossa realidade.
Aqui, a Psicanálise surgiu nos meios de comunicação,
em 1961, na revista Cláudia com artigos assinados por Emilio
Servádio. A partir de 1963, Carmem da Silva passa a assinar a
coluna “A arte de ser mulher”, no mesmo periódico.
Divulgava-se de forma simples o saber da Psicanálise, em discussões
sobre o cotidiano das pessoas e famílias, principalmente no que
dizia respeito à condição sociocultural e psíquica
da mulher (Santos, 2001). Para a mesma autora, o processo de modernização
da sociedade brasileira se acelerou pós década de 70,
tendo como modelo os países ocidentais desenvolvidos. Anteriormente,
o pessoal estava subordinado ao social e o trabalho não atropelava
a vida pessoal. Os valores que vigoravam eram tradicionais e profundamente
associados à religião.
Os sentimentos eram próprios do privado e inacessíveis
ao olhar do outro e não se esperava que variassem de sujeito
para sujeito. As aptidões, vocações e desempenho
no mundo externo eram apresentados de maneira a excluir elaborações
de um desejo singular. A modernidade trouxe consigo a liberdade de opção,
projetos pessoais e a angústia da responsabilidade do próprio
destino. Surge incerteza e dificuldade de clareza, já que o terreno
sobre o qual a leitura pessoal e de mundo se apóia é calcado
nas opções subjetivas.
Para Figueira (1991), este quadro descrito produz uma demanda de intervenção
organizadora partindo de pessoas e famílias. A Psicanálise,
por trabalhar com o individual e subjetivo, sofre uma maior solicitação.
Instala-se, partindo dessa demanda, uma cultura da Psicanálise
caracterizada por uma difusão de seus conceitos até o
limite da saturação.
O psicanalista não recuou frente aos pedidos, ultrapassou as
paredes do “setting” e ao longo dos anos ampliou a prestação
de serviços de Carmem da Silva. Apresentou quadros em programas
de TV, artigo em jornais, se empregou em empresas, faculdades, hospitais,
firmas terceirizadas, trabalhos ambulatoriais e outras. Neste universo
ampliado teve e tem de conviver com a alteridade do outro, numa experiência
de multiplicidade de saberes e narcisismos. Houve multiplicação
das sociedades de psicanálise e a maioria já recebe em
seus quadros profissionais de todas as áreas. Por instantes,
esta difusão pode passar a idéia errônea de aceitação
incondicional. Não é o caso. A técnica e a teoria
psicanalítica são firmemente inquiridas, já que
estão em outros espaços: Que fazer na drogadição?
E as mutilações corpóreas? E a indisciplina nas
escolas? E as gangs de adolescentes? Muitas outras questões...
inúmeras. E com exigência de resposta rápida e efetiva
como é característica dos tempos modernos.
Diante de nosso cuidado e reticências nas respostas, solicitando
um pouco mais de tempo para apreensão das situações,
caímos no desagrado, desconfiança e recebemos acusação
de ineficácia. Birman (1999), analisando o descrédito,
diz que o fascínio produzido pela Psicanálise estava diretamente
ligado às promessas de apaziguamento interno, que naturalmente
não foram alcançadas, fazendo o homem sentir-se ainda
mais desamparado.
Contudo, em todos os setores está ocorrendo a dissolução
dos discursos totalizantes e homogeneizantes. Não existe um saber
científico capaz de dar um traçado único, um sentido
unitário, às experiências da vida cultural, socioeconômica
e subjetividades. O mundo tornou-se complexo e as respostas instáveis.
Nos últimos 20 anos assistimos a uma reavaliação
da perspectiva ordeira. O caos, a desordem e crise são caracterizados
como decorrentes de informações complexas mais do que
ausência de ordem. Vivemos numa sociedade onde a lei e a ordem
não advêm do reconhecimento da autoridade legitimada. Os
aparatos para ordenar, oriundos dessas posições, são
constantemente questionados. A ordem, a lei, surge do acordo entre parceiros.
Cientificidade,
Psicanálise
e Contexto Social
Após
o percurso anterior, faz-se necessário neste ponto que tornemos
a elucidar as nossas questões: como pode a Psicanálise
cooperar com as solicitações do mundo atual? Nas exigências
de dados científicos e cientificidade como se posiciona a Psicanálise?
O nosso objetivo não é uma discussão epistemológica,
analisando os princípios, hipóteses e resultados da Psicanálise
para determinar sua origem lógica, valor e alcance. Esta tarefa,
árdua, não se adequa a um artigo. O que tentamos pensar
é se a ação do psicanalista fora do setting analítico
teria o mesmo efeito e validade que no seu local de origem. Isto se
coloca porque o enquadre necessário ao nosso trabalho talvez
deixe de ser efetivo caso nos distanciemos.
Começaremos a nossa abordagem pela segunda questão. A
ciência moderna é definida por seu método, a lógica
é constitutiva da estrutura teórica e do espaço
experimental observacional. As proposições científicas
são gerais, mesmo quando se referem a algo concreto. O método
restringe-se ao estudo das relações funcionais de uma
realidade. Não há contato com o objeto ou a coisa em si:
restringe-se aos princípios formadores da razão (Delouya,
2003).
Lebrun (2004) considera que esta lógica do pensar invadiu o social
transformando-se na sua patologia – o cientificismo. No nosso
mundo o saber se transformou numa forma de laço social. Uma sociedade
tecnocrata, onde a técnica é a autoridade e o funcionamento
é o método. As conseqüências são que
doravante tudo se passa como se as conquistas do método científico
tivessem deixado crer que a única legitimidade é aquela
da coerência do saber científico. Há o descrédito
a qualquer idéia de bom senso ou de algo que se refere somente
a palavra.
A Psicanálise foi definida por Freud em 1923 como:
1. Um procedimento para a investigação de processos mentais
que são quase inacessíveis por qualquer outro modo,
2. um método (baseado nessa inves-tigação) para
tratamento de distúr-bios neuróticos e,
3. uma coleção de investigações psicológicas
obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova
disciplina científica (Dois verbetes de enciclopédia).
A exigência de cientificidade também alcança a Psicanálise.
Contudo, ela possui características singulares na constituição
de suas hipóteses teóricas. Prof. Freud a define como
método investigativo e para tal temos um enquadre: sessões
semanais; tempo das sessões; pagamento; transferência analisada
na relação com o analista; abstinência do analista
em julgamento e interferência na vida do analisando. De forma
geral os psicanalistas seguem estes preceitos para o seu ofício.
Esse enquadre que possibilita a investigação e é
intrínseco à Psicanálise é objeto de críticas
ao seu corpo teórico porque implica em contato direto com o seu
objeto – o inconsciente. O setting analítico engendra o
próprio saber. A transposição do conhecimento oriundo
da clínica para o social sempre foi questionada, considerando-se
que o social é atravessado por muitos outros fatores –
o que é verdade, também se questiona a interferência
da subjetividade do analista nas proposições construídas.
É uma discussão infrutífera. Os adeptos da cientificidade
têm a seu favor toda a metodologia e validação do
discurso das ciências experimentais. E nós o inconsciente
com suas produções...
Caminhando alguns passos com Castoriadis (1987, p. 138), temos uma responsabilidade
que não podemos ignorar: é o pensar e o fazer num mundo
obscuro. Tendo de lado a matéria psíquica e do outro,
exigência de pensar e fazer, sem poder nos justificar com “um
nada a fazer ou nada a pensar sobre isto”, para não correr
o risco de sermos chamados de charlatões. É um momento
presente que não há mestre, mas dominantes, exploradores
e manipuladores. O discurso sobre a fala dos mestres pertence aos peões.
Nos afastemos desses impasses e retomemos a nossa primeira questão,
reconhecendo que a insegurança da prática no social marcada
pela matemática e lógica pode nos levar a sermos dogmáticos
e burocratas. Não acreditamos que este seja o nosso destino...
Popper, citado por Kaufmann (1993), nos diz que se o critério
de verdade, no sentido lógico, não pode ser usado, então
se deve usar um critério de demarcação. Dessa forma
ficamos analisando que, talvez, devêssemos repensar o enquadre
e tentar transpô-lo para outras situações onde o
“psicanalista sem divã” se encontre. De outro jeito,
caímos num lugar de realizar um ofício que a priori não
é possível porque falta aquilo que o constitui.
No corpo teórico da psicanálise temos conceitos como:
castração, limite, falta, feminilidade, passividade, impotência.
Eles se articulam de muitas maneiras nos inúmeros quadros que
se apresentam, sempre denunciando a dificuldade de lidar com o não,
com a incompletude, com a dependência, com o desejo; com a realidade...
Não é nosso objetivo neles nos determos, vamos citá-los
para articulá-los posteriormente com outras idéias. É
óbvio para nós que são temas que vai de encontro
à sociedade do impossível ser possível. É
um mundo onde o fim do impossível de ontem parece implicar no
cumprimento de todo possível.
Esta situação torna os sujeitos, instituições
e comunidades dependentes dos experts que trarão as sábias
respostas científicas, mesmo que de efêmera duração.
Porque esta é a característica do saber produzido, ser
questionado, re-experimentado, renovado.
Se fora do setting não podemos contar com: 1. uma situação
de neutralidade analítica ideal; 2. o uso da transferência
como ferramenta fundamental ao nosso trabalho; 3. dias e horários
da sessão definidos, temos de criar um novo aparato que nos permita
atuar no social. A palavra é nossa arma mesmo que desvalorizada.
Se as instituições, comunidades e qualquer outra realidade
conseguirem espaço para se pronunciarem – isto nós
podemos conceder – vão se deparar com o não saber,
a impotência, submissão e servidão a um saber estabelecido,
limites de seu cotidiano... e principalmente com o desamparo de não
ter um sábia resposta, o vácuo se instala ... Esta situação
a Psicanálise pode provocar através do ofício de
seus artífices. Porque neste encontro com seus limites, algo
começará a ser criado, construído... margeando
os parâmetros atuais de exigências de cientificidades. Talvez...
Mas o lugar de margear discursos estabelecidos sempre foi nossa sina...
e continuaremos a construir “apesar de”...
Lidando com a angústia do impasse de saber que nenhum de nós
pode ser neutro e/ou isento das influências das tribos que nos
rodeiam e das que fazemos parte...
Continuaremos no meio do ruído ensurdecedor das soluções
corretas e científicas, o silêncio do “não
saber” abre espaço para escutar – não ouvir
– o diferente, o novo, deixando espaço para possíveis
construções... Descobrindo e re-descobrindo a cada dia
e momento pequenas veredas no emaranhado de caminhos e guias turísticos
desse nosso mundo novo.
“Ao que não podemos chegar voando, temos de chegar manquejando” (Freud, S. Além do Princípio do
Prazer, 1920).
Abstract This article aims at analysing our technical scientific society and
the role of the Psychoanalysis in this context, which does not value
good sense, words and feelings. The author tries to think about change
in the psychoanalytic setting as the way that allows the psychoanalyst
action without a couch.
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SANTOS, Tânia Coelho. Quem precisa de análise hoje. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
Recebido
em Junho/2005, aceito em Agosto/2005
Endereço para correspondência:
Rua Padre Nóbrega, 35/201 - Paineiras
36016-140 - Juiz de Fora - MG