Direção dos Tratamentos Psicanalíticos na Universidade – Uma Releitura Prática de “A coisa freudiana”

Guilherme Massara Rocha
Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Palavras-Chave:
Psicanálise – Universidade – Ensino – Transmissão –Interdisciplinaridade
Uniterms:
Psychoanalysis – University – Teaching – Transmission –Iinter-disciplinarily

Resumo:
Este trabalho retoma aspectos da presença da psicanálise na universidade, tendo como pano de fundo o escrito A “coisa freudiana” de Lacan.
Abstract:
This paper takes on examination aspects of the presence of psychoanalysis at the university. The argument takes place based on Lacan´s thesis explained on his work named La chose freudienne.


Debruçar-se sobre a tarefa de avaliar os efeitos da prática da psicanálise lacaniana em instituições que são de alguma forma permeáveis ao discurso analítico conduz a não menos do que um programa de investigação cujas implicações principais inauguram o argumento que é pretendido discutir aqui. Cabe então lembrar que um programa de investigação pode ser definido a partir de um elenco de pesquisas, que compartilham determinadas premissas teóricas e hipóteses fundamentais, e que produzem, a partir das articulações de seus resultados, um efeito cujo alcance duplica-se entre o saber e a práxis. Um projeto de semelhante envergadura, construído por muitos e permeável a diferentes metodologias, é exigido sempre que a natureza dos objetos a serem elucidados revela-se em sua susceptibilidade às mais variadas formas de enunciação e presentificação.

O programa de investigação a que se propõe essa instituição de psicanalistas parece, portanto, lançar-se numa avaliação acerca do binômio psicanálise e instituição cujas premissas teriam sido aferidas por Lacan, num dentre os diversos momentos em que discutia com analistas e não analistas o seu programa de retorno a Freud. Reafirmava ele, em A coisa freudiana, sua intenção de demonstrar, a partir do texto de Freud, os avatares que constituem o discurso analítico em sua radical singularidade, ou seja, em sua heterogenia a outras modalidades discursivas que visavam às ordens do psíquico, do desejo e das condutas. Dada a constatação da condição de extravio em que se encontrava a prática analítica desde o pós-guerra, Lacan, munido de ferramentas conceituais ainda estranhas ao campo analítico e à rotina daqueles a quem se dirigia, buscaria, quanto à psicanálise, “recolocar em vigor aquilo que não cessou de sustentá-la em seu próprio desvio”1.

Cinqüenta anos de história no movimento analítico e também de distância em relação à enunciação daquele programa selam, no tempo, a índole dessa renovada manobra de insistir em elucidar as características da prática lacaniana nas instituições. Sustenta-se que uma vez reconhecido o discurso analítico, cabe – sobretudo a partir dos efeitos de realização de um sujeito diante de uma alteridade a um tempo corporificada e inexistente – articular o saber que daí decorre aos movimentos de variadas instituições no interior das quais esse discurso opera. O programa visa, no limite, aos efeitos, no real das instituições, das operações desse discurso, mediante as resistências que Freud nos ensinou a considerar, mas também interpelando novas formas de avaliação e tratamento do sofrimento psíquico e também de transmissão da psicanálise, cuja origem é tributária, nas palavras de Lacan, ao “valor metódico” e ao “efeito de verdade”2 da invenção freudiana.

De fato, quando Lacan assinala o inestimável valor da “simples presença” da verdade apresentada por Freud na prática cotidiana com seus pacientes, ele faz ali destacar os resultados do procedimento analítico no que ele dá lugar ao “testemunho de uma transformação”3. Freud, lembra-nos Lacan, sendo hábil em manejar os efeitos da palavra nos planos distintos da ciência e das paixões, transmite, nos interstícios dos romances familiares e na formalização dos resultados do método analítico e do princípio da transferência sobre a fala corriqueira, as bases conceituais de uma prática inaugural no tratamento da subjetividade. Eis aí um estilo, e cabe reconhecê-lo sob a pena de Freud. Se o programa de que se trata aqui leva em conta uma “outra concepção da alteridade”, Freud a sublinhou ao transmitir-nos algo da verdade engendrada simultaneamente nos destinos assumidos por seus analisantes e nas balizas que orientam os analistas em sua escuta e seu ato.

Na medida em que se reconhece na prática lacaniana uma redefinição, e mesmo uma reinstauração daquilo que há de mais específico a presidir os efeitos do discurso analítico, averigua-se o impacto desse discurso em diversas instituições – de tratamentos mentais, de ensino universitário, de formação de analistas, dentre inúmeras outras pensáveis – no tanto em que nelas ocorrem transformações. Eis portanto, na esteira da tradição inaugurada por Freud e Lacan, o analista convocado a dar seu testemunho dessas transformações. E dizer “seu testemunho” implica particularizar o depoimento na exposição das circunstâncias que definem uma prática, perfazendo, contudo, uma etapa da tarefa que aí não se esgota. Reiteramos tratar-se aqui de um programa que, para sua execução, requer de seus diversos testemunhos o esforço na direção da verificação das regularidades e dos parâmetros que possam primeiramente legitimar a unidade suposta no sintagma “prática lacaniana”. Ao supor-se que tal prática funda um novo lugar de enunciação, pode-se examinar a legitimidade dessa hipótese a partir dos efeitos dessa subversão do sujeito nas instituições.

Freud fez advir a legitimidade de sua prática sobretudo no testemunho reiterado das análise que conduziu. Ainda que tenha ele subsidiado e fomentado o debate acerca dos efeitos institucionais da psicanálise – por exemplo em História do Movimento Analítico, Psicologia das Massas..., O Futuro de uma Ilusão e mesmo no Ensaio Autobiográfico –, a particularidade de seu depoimento permaneceu, excetuando-se aquilo que ele produziu no contexto de sua experiência com a IPA, desguarnecida de empiricidade. Lacan, por sua vez, é dotado de uma trajetória que amplia, em termos de experiência propriamente dita, os lugares de onde se pode visar um saber acerca dos efeitos da psicanálise em extensão e da prática analítica sob condições a ela originalmente estranhas. Desde sua experiência na instituição manicomial, passando por seu ensino no meio universitário e párauniversitário, suas inovações acerca da estrutura da instituição analítica e sua atitude permanente de debate com práticos e pesquisadores das mais diversas orientações. Lacan não só formaliza a demarcação dos vetores que orientam uma certa prática analítica como ensina que, por se tratar de um discurso e de uma ética, certas condições parecem ser requeridas para que ela se dê. Ao mesmo tempo em que é preciso reconhecer que a psicanálise efetivamente acontece em circunstâncias e contextos nos quais não seria de esperar a verificação de seus resultados. E é a partir desses efeitos – insuspeitados até o momento em que se realizam – que podemos anunciar o ponto em que nosso argumento pretende sustentar-se na trans-missão de um testemunho.

Tal testemunho é efeito de uma prática do ensino da teoria psicanalítica num departamento de psicologia, e também de uma atividade clínica efetivamente exercida num serviço de psicologia aplicada, além da supervisão de alunos de graduação que nesse serviço inauguram sua experiência com a clínica psicanalítica. Mas é também marcado pela participação nos órgãos colegiados desse departamento, comissões de reestruturação de serviços e currículo, parcerias de pesquisa com colegas não analistas e coordenação do serviço no qual se dá toda uma gama de práticas em saúde mental de caráter terapêutico e de avaliação psicodiagnóstica. Enunciar essas diversas formas de inserção institucional poderia causar a falsa impressão de facilmente pré-determinar-se aquelas articuláveis ao dispositivo analítico e as outras a ele estranhas e no interior das quais nenhum efeito analítico seria esperado.

Quanto à transmissão da doutrina analítica, levamos em consideração uma afirmação de Jean Claude Milner segundo a qual “o freudismo, segundo Lacan, repousa sobre a tripla afirmação de que existe inconsciente, que esse não é estranho ao pensar e que, portanto, ele não é estranho ao sujeito de um pensar”4. Como corolário dessa proposição, Milner nos mostra que o inconsciente freudiano exige uma elaboração acerca de uma atividade do pensamento mediante a qual a consciência não é sequer requisitada. Ala-nos de graduação em psicologia, mediante um currículo de formação minimamente comprometido com a investigação dos elementos fundamentais da atividade anímica, em geral estudam o pensamento e a consciência a partir de diferentes paradigmas teóricos.

As teses que sustentam tais investigações, quando presididas pelos saberes das neurociências ou das psicologias cognitivas e do comportamento, despertam em muitos estudantes uma estranheza diante da apresentação das principais teses e conceitos metapsicológicos. Mas o que aí se anuncia como o prenúncio de um impasse proporcional à resistência e ao descrédito do discurso analítico diante das supostas verdades da “ciência psicológica” e das realidades da atividade cerebral vem a ser para muitos estudantes – a partir de um reiterado e calculado esforço de demonstração – uma experiência de subversão do saber até então regulador de suas concepções e atitudes diante do sofrimento psíquico. Com base em uma metodologia que acrescenta aos princípios metapsicológicos da experiência freudiana alguns conceitos advindos do ensino de Lacan – o Outro, privilegiadamente –, a particularidade do corte que a psicanálise instaura sobre os saberes psi pode ser transmitida em seu vigor e, na medida em que se apontam reiterada-mente suas realizações nos fragmentos clínicos recorrentemente apresentados, também em sua eficácia.

Para ser mais específico, nem é preciso por vezes aguardar que a consolidação de alguma articulação entre os conceitos metapsicológicos tenha se produzido na experiência desses estudantes para que uma apreensão distinta daquilo que Lacan vem a formalizar sob a insígnia do Outro possa ser aí transmitida. Um estudante de psicologia da personalidade ou de teoria do conhecimento é capaz de decifrar, por exemplo ao ler A morte nos olhos de Jean-Pierre Vernant, como a cultura grega se constitui, nos traços mais marcantes do logos e do ethos, a partir daquilo que esse autor chama de uma “figuração do Outro”, a saber, de uma experiência com a alteridade que se dá na linguagem e no interior da qual a subjetivação se produz nas margens dos mitos e das formas primeiras de regulação da atividade simbólica5. O efeito dessa apreensão, na medida em que permite ao estudante articular um certo substrato antropológico aos avatares que assimila quanto ao sujeito da psicanálise, produz um ganho qualitativo que não hesitaríamos em chamar de generalizado nos termos de sua formação.

Sustentamos nossa convicção de que tais investigações preliminares, que apresentam a construção da subjetividade a partir do campo do Outro em contextos relativos ao ethos grego ou à revolução científica, formam, na experiência desses estudantes com o saber, uma base de cálculo ou uma estrutura de raciocínios que viabiliza posteriormente a assimilação não somente dos constructos metapsicológicos como também dos conceitos de Lacan e de suas teses principais a serem debatidas no plano da formação do psicólogo e de outros profissionais das ciências humanas. Teses tais como: por que o sujeito sobre o qual a psicanálise opera é o sujeito da ciência; em que medida o Outro opera, a partir dos efeitos diferenciados do discurso, os processos fundamentais de subjetivação aos quais a teoria do inconsciente de Freud se refere; como articular a disjunção entre a psicanálise e as psicologias a partir da circunstância em que essa primeira recolhe o sujeito que se exclui necessariamente das operações “científicas” engendradas pelas segundas.

Nos limites em que esses saberes se articulam, o que se observa é uma certa realização, no plano de formação em psicologia, da prevalência de uma atitude crítica e rigorosa diante dos constructos psicológicos em sua totalidade. Os estudantes – aos quais teria sido transmitido mais do que conceitos, mas sobretudo traços de uma certa atitude frente ao saber veiculada pelos estilos de Freud e Lacan – passam a não se contentar com quaisquer teorias cujos efeitos permaneçam inarticulados; tornam-se exigentes quanto ao rigor demonstrativo das pesquisas que lhes são apresentadas e tornam-se capazes de interpretar, no sentido analítico mesmo da palavra, diversos aspectos do material clínico que lhes é apresentado, ainda que isso lhes chegue através de outros discursos acerca do funcionamento anímico ou, como é freqüente ocorrer, pela via do “comportamento” e da “cognição”.

Há cerca de dois anos, inauguramos uma interlocução entre a psicanálise e o behaviorismo, a partir do momento em que um professor de psicologia do comportamento solicitou-me referências sobre o conceito freudiano de transferência. Ele achava que, quando atendia seus pacientes, “falava demais”, dizia a eles coisas que talvez eles descobrissem por si próprios e isso lhe parecia inócuo em termos de eficácia do tratamento. Esse professor desenvolve uma pesquisa acerca do conceito skinneriano de “comportamento verbal”, tema esse, segundo ele, negligenciado pela grande maioria dos profissionais da análise experimental do comportamento. Apresentei a ele, em alguns encontros, os elementos meneamos a partir dos quais pode-se definir a noção lacaniana de Outro a partir dos efeitos subjetivos do discurso. Em seguida, propus-lhe, a partir da noção freudiana de transferência, alguns elementos que lhe permitissem distinguir, no plano da prática terapêutica, demanda e desejo e sujeitos do enunciado e da enunciação. Ele foi se interessando por isso, à medida que reconhecia e pesquisava, na obra de Skinner, o que viria a ser uma estrutura da linguagem e sua determinação sobre o comportamento. Esse professor, que se tornou meu amigo, tem se mostrado interessado em investigar a tese do inconsciente estruturado como uma linguagem, e com ele tenho aprendido diversas coisas a respeito do conceito de “contingência” em suas diferentes aplicações no escopo dos tratamentos psicoterápicos.

Essa situação, que emergiu de uma interpelação de um clínico a outro no que diz respeito aos percalços na prática com o sofrimento psíquico, evocou-me o ditado inglês lembrado por Lacan em 1955: “Não se pode ao mesmo tempo comer o bolo e guardá-lo”. Ao procurar demonstrar a natureza estritamente pontual da fala daquele que visa, num sujeito, o hiato de onde se pode entrever seu desejo, Lacan afirma que “não se pode ao mesmo tempo proceder pessoalmente a essa objetivação do sujeito e falar a ele como convém”6. Meu colega, naquele momento, pareceu defrontar-se com a materialização dessa circunstância na proporção mesma do impasse que adveio no curso do trata-mento que ele conduzia. Ao mesmo tempo em que pareceu entrever que as contingências de manutenção de determinadas condutas comportamentais, visadas pela vertente de tratamento que ele empregava, traziam consigo um elemento suplementar, um algo a mais que se apresentava ali e que insistia em reaparecer à revelia das intervenções que ele fazia para que seu paciente se tornasse consciente do mal que causava a si mesmo. Note-se, ainda, um interessante efeito na instituição decorrido desse evento, na medida em que o debate por nós inaugurado despertou o interesse de outros colegas, sobretudo dos não analistas. Alguns outros professores e supervisores se mostraram interessados em apresentar casos por eles conduzidos ou supervisionados para o exame crítico de colegas de diferentes orientações, num espaço ainda em construção de um grupo interdisciplinar de investigações clinicas. Essa história rendeu ainda um artigo, redigido em parceria com meu amigo skinneriano, que apresentamos e publicamos, em 2003, no encontro da Sociedade Brasileira de Medicina e Psicoterapia Comportamental7.

Nos parágrafos finais do escrito que ora relemos, reitera Lacan sua expectativa de que “uma nova geração de clínicos e pesquisadores resgate o sentido da experiência freudiana e seu motor”8. A experiência, no meio universitário, de articular prática e pesquisa em psicanálise também tem sido fomentada não somente no plano das dissertações de mestrado, mas sobretudo estimuladas entre os jovens psicólogos em formação, alunos dos dois últimos anos do curso de graduação. Quanto às pesquisas de pós-graduação – particularmente de mestrado em estudos psicanalíticos –, nelas não nos deteremos por razões relativamente simples. Em geral têm sido conduzidas por alunos que são também clínicos experientes e orientadas por professores gabaritados, com vasta experiência na clínica e na pesquisa psicanalíticas. Nesses casos, seria de surpreender quando, no momento das defesas de dissertação, não se verificassem efeitos do dispositivo analítico, seja no manejo do material clínico, seja nas articulações conceituais dele extraídas. Mas quando são pensadas as circunstâncias nas quais se dão, na graduação, os estágios supervisionados em “práxis psicanalítica”, poder-se-ia aferir a legitimidade da tese trágica de que a natureza parece porventura reunir no solo da precariedade as sementes que, ao germinarem, contrariam as leis daquela que as depositou ali.

Jovens, com idade média entre 19 e 23 anos, solicitam aos professores que oferecem vagas nessas modalidades de estágio uma oportunidade de compartilhar sua primeira experiência como “terapeutas” ou, como alguns deles assim o definem, de “aprendizes de psicanalistas”. Muitos deles com uma leitura ainda incipiente dos textos fundadores da psicanálise e pouca ou nenhuma passagem pelo divã de um psicanalista. Trata-se de uma universidade pública brasileira e, como tudo o que se passa aqui vem acompanhado da insígnia da precariedade, esses jovens se vêem confrontados com a tarefa de se colocarem à escuta do drama de sujeitos para os quais o impacto cruel de nossa realidade sócioeconômica imiscui-se nos avatares de um sofreamento psíquico agudo. Não tem sido raro nesse serviço de psicologia, assim como em diversos serviços da mesma natureza em outras universidades públicas e privadas, um incremento sensível no número de intercorrências psiquiátricas, suicídios e passagens ao ato. E a despeito da gravidade crescente dos casos que ali se apresentam, os estagiários a eles se dedicam com afinco e, no que concerne aos estágios de orientação psicanalítica, têm sido interpelados a apresentar seus casos clínicos ao final de um ano de estágio, numa jornada que conta com debatedores convidados, e que podem ou não ser do quadro de docentes da universidade. Ao longo do estágio, além da atividade regular de supervisão, ao estagiário é atribuída a tarefa de remeter-se às fontes bibliográficas que subsidiem a construção do caso clínico que ele conduz. Para alguns estágios essa tarefa é obrigatória e o dispositivo de conclusão do estágio tem sido responsável, ao que tudo indica, por mais um ganho qualitativo na condução do caso e na formação conceitual.

Confrontados com a circunstância de terem que apresentar esse trabalho numa jornada aberta ao público inteiriçado, os estagiários estudam muito e esmeram-se na conclusão de seus artigos. O supervisor, por sua vez, acrescenta à sua atividade regular com o estagiário uma tarefa complementar de acompanhá-lo no percurso laborioso da pesquisa com material clínico. E ambos, estagiário e supervisor, prestarão contas de seu trabalho não somente ao grande número pessoas que tem acompanhado essas apresentações de casos, mas sobretudo ao debatedor convidado que, mesmo sem se dar conta disso, perfaz a função de precipitar os traços mais significativos do momento de conclusão dessa trajetória.

Se o que motiva as idéias aqui contidas é atravessado pela concepção dos efeitos sobre os sujeitos de uma alteridade inexistente mas corporificada, talvez seja oportuno supor que tais dispositivos, ainda que não visem estritamente a formação de um psicanalista, parecem colocar em ato uma dimensão onde a prática orientada pelo texto freudiano encontra seu horizonte de regulação ética. Afinal, afirmar que o Outro não existe, e ao mesmo tempo permanecer no plano onde alguma experiência moral é possível, pressupõe a corporificação dessa instância, se não num aglomerado de referências, talvez mais precisamente num horizonte de endereçamento de onde retorne ao sujeito em questão o corte que assinale sua divisão constitutiva. Lacan afirma, por seu turno, que ali onde uma análise fracassa pode-se suspeitar a presença de um analista que sabe demais. E que não sabe, da verdade, o que dela é veiculado pela fala de seu paciente. E que, tão-somente por isso, o impede de reconhecer essa verdade que a ambos se apresenta9. Ao se evocar essa assertiva, pode-se a ela acrescentar, de nossa experiência, que não são certamente em todos os casos apresentados nas jornadas dos estagiários que as operações do dispositivo analítico podem ser verificadas. Alguns pacientes entram em análise e nela prosseguem. Outros sequer entram, ou porventura a abandonam ou, ainda, permanecem e pareassem se beneficiar de algum efeito terapêutico de acolhimento, empatia ou solidariedade, a despeito dos esforços daquele que conduz o tratamento e daquele que o supervisiona.

Curiosamente, muitos alunos para os quais parecem obscuros os conceitos psicanalíticos e que apresentam dificuldades com o saber teórico da psicanálise revelam um talento insuspeitado para permanecerem no exercício da função de escuta. Esses, sobretudo nos primeiros tempos das supervisões, às vezes têm dificuldades em formalizar e justificar conceitualmente algumas de suas intervenções com os pacientes que atendem. O que, não obstante, não desprovê tais intervenções da qualidade de terem sido bastante precisas quanto ao efeito analítico por elas visado. Aqui é de novo Lacan quem não nos deixa esquecer que, na medida em que o desejo do analista opera, os que conduzem uma prática fazem-na tornar-se mais simplificada e “mais eficaz antes mesmo de se lhes tornar mais trans-parente”10. O curso ulterior dos atendimentos e das supervisões, e a prerrogativa de formalização de aspectos do caso clínico parecem exercer – aos poucos e a posteriori – efeitos de edificação de um saber acerca do real do tratamento.

Um último aspecto a ser ainda tematizado refere-se à pluralidade de orientações em psicanálise que presidem os tratamentos no serviço de psicologia aplicada e também, quanto ao aspecto teórico, nas demais atividades de ensino. Na medida em que se reconhece, diante do que foi exposto, que a essa prática com a psicanálise lacaniana na universidade devem ser atribuídos determinados efeitos – que foram aqui expostos de forma pontual e resumida –, vale considerar ainda que outros resultados do dispositivo analítico advêm das práticas psicanalíticas não filiadas a essa orientação.

O fórum clínico do serviço de psicologia aplica-la, que reuniu em algumas de suas edições trabalhos de diversos estágios em “práxis psicanalítica”, não repousa sob a premissa de que todos os casos apresentados compartilhem de uma mesma orientação teórica. E se pudemos minimamente demonstrar os avatares de uma interlocução possível da prática lacaniana com práticas não psicanalíticas, assim como alguns de seus resultados, pode-se considerar a legitimidade de uma ampliação desses efeitos numa interlocução entre psicanalistas de diferentes orientações. Pode ser, ainda, que o meio universitário favoreça mesmo essa experiência pois, em primeiro lugar, dele não se espera a consecução de uma formação strictu sensu de psicanalistas. Em segundo lugar, porque a diversidade que o constitui no plano discursivo não parece demandar da psicanálise que ela se estabeleça aí como elemento de exceção, ou seja, como um discurso cujos resultados dependeriam de que a orientação daqueles que o proferem soasse em uníssono. No limite, poder-se-ia esperar dessa pluralidade de referências o benefício do esclarecimento. Essa aposta, que vem sendo na UFMG sustentada no Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica, indica que, para tanto, exige-se tão somente dos sujeitos ali inseridos que sejam prioritariamente analistas. Que, ao se absterem da arrogância do mestre e da rigidez do acadêmico, saibam escutar beneficiados pelo exercício da dúvida. Que se lembrem, finalmente, que “o púlpito não é um eu, por mais eloqüente que tenha sido”11.

A presença do analista no meio acadêmico, para além ainda de suas atribuições quanto ao saber e ao fazer psicanalíticos, dá ensejo ao subsídio de novas propostas para as atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão. Da participação do analista nos órgão colegiados e nas comissões intradepartamentais pode-se ainda esperar efeitos de inovação nos planos das metodologias de implementação de serviços e dispositivos e, por que não, também de contribuição para a regulação de um gozo que corrói os laços que tais grupos visam instaurar. Insisitimos, contudo, que a viabilidade desses resultados e a legitimidade das marcas desse trabalho são efetivamente condicionadas pelo requisito de que os analistas, que se colocam como sujeitos dessa prática, sejam capazes de partilhar das regras que ali presidem as relações, num meio onde a ação transformadora advém da heterogeneidade e complementaridade dos discursos circulantes. Concluímos, insistindo na radical atualidade do argumento desse que pode ser talvez considerado um dos mais belos escritos de Jacques Lacan, e reafirmando que as proposições fundamentais ali contidas dão suporte a grande parte daquilo que este nosso trabalho visa em termos práticos e conceituais. Pode-se ler em A coisa freudiana um testemunho de notável inspiração quanto ao resgate do sentido da experiência psicanalítica, assim como um manifesto de legitimação da verdade naquilo em que ela pressupõe um ato de ultrapassamento. Eis Lacan a incitar-nos a deixar “a resistência aos resistentes” e a ensinar-nos que “a palavra cabe àqueles que põem a coisa em prática”12.

IPsicanalista. Mestre em Filosofia. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Notas
1 LACAN, J. A coisa freudiana, in Escritos, p. 404.
2 LACAN, J. Idem, p. 405.
3 LACAN, J. Ibid.
4 MILLER, J. C. A obra clara, p. 35.
5 VERNANT, J.-P. A morte nos olhos – Figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó, p. 34-36. Cf. ainda o capítulo sobre a linguagem no excelente Ensaio sobre o homem, de Ernst Cassirer.
6 LACAN, J. A coisa freudiana, in Escritos, p. 420.
7 MEDEIROS, C. A & ROCHA, G. M. Racionalização: um breve diálogo entre a psicanálise e a análise do comportamento. IN BRANDÃO, M. Z. et al. Sobre comportamento e cognição: contingências e meta-contingências; contextos sócio-verbais e o comportamento do terapeuta. Santo André: ESETEC, 2004.
8 LACAN, J. A coisa freudiana, in Escritos, p. 436.
9 LACAN, J. A coisa freudiana, in Escritos, p. 420.
10 LACAN, J. Idem.
11 LACAN, J. A coisa freudiana, p. 427.
12 LACAN, J. A coisa freudiana, in Escritos, p. 419 e 421.

Bibliografia
LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
MILNER, J.C. A obra clara – Lacan, a ciência, a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
VERNANT, J.P. A morte nos olhos – figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

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