Antimelodia, Incômodos, Contrários: O Pensamento na Clínica

Mayra Martins Redin, Rejane Czermak
Mayra Martins Redin
Estudante do Curso de Psicologia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo/RS. Estudante do Curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Rejane Czermak
Psicanalista. Professora titular no Curso de Psicologia da Unisinos, em São Leopoldo/RS. Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Livre de Berlim, Alemanha.

Palavras-Chave:
Clínica - Pensamento - Subjetividade - Incômodos - Estilo - Criação
Keywords:
Clinic - Thought - Subjectivity - Harassments - Style - Creation

Resumo:
O presente artigo pretende problematizar o pensamento e a constituição da subjetividade na clínica. Parte da perspectiva de que o erro, o incômodo, a co-existência de contrários são a possibilidade de ruptura com o instituído, fazendo da clínica espaço para que o pensamento surja como criação e transformação.
Abstract:
The present article intends to question the thought and the constitution of subjectivity at clinic. It starts from the perspective that mistake, harassing, coexistence of opposites are the possibility of rupture with the established, making the clinic a space where the thought rises as creation and transformation.

"Estou sendo antimelódica. Comprazo-me com a harmonia difícil dos ásperos contrários"
Clarice Lispector

"Conhecem a história do menino que pediu ao pai para lhe mostrar uma floresta? O pai concordou, e, quando chegaram, o pai perguntou se o menino avistava a floresta. Admirado o menino disse: "Vejo, mas são tantas árvores que não consigo ver a floresta"
Abbas Kiarostami

Via o mar. Via e via. Será que não tinha pensado nisso antes? Via o mar desde sempre. Por que só agora que pensava que o via? Devem ter tantas coisas que a gente vai vendo com o passar dos dias que a gente deve ficar impressionado. Imagina! Passar anos olhando pra mesma coisa e só, de repente, a ver!

O mar naquele dia estava igual. Mas agora ela o via. E via e via. E não cansava. Ondas em diagonais. Ondas com a crista descompassada. Ondas desritimadas. Nada repetitivo. E pensou, como nunca anteriormente havia pensado: “Essa imensidão. Tão imensa para os olhos. Como pode fazer isso que faz? Me enche, me preenche, me transborda. E ao mesmo tempo, me falta, me foge, me faz parecer que não tenho fundo”.

Do cais ao caos...

Do caos ao cais... Num movimento infinito de ir e vir onde ela se perdia e encontrava pedaços novos e os perdia e encontrava outros...

A antimelodia causada pelos contrários de Clarice; a impossibilidade de ver a floresta pelo povoamento de árvores; o desequilíbrio da menina que, de repente, pensa que é profunda e rasa ao mesmo tempo... Qual a potência dos contrários? O que se produz quando contrários convivem? Será o pensamento? Mas então, o que é o pensamento?

Deleuze, na leitura que faz de Foucault, vai dizer que o pensamento surge da intimidade que o pensador tem com as forças do Fora. O Fora é muito mais que o exterior, e é pela inflexão das forças que o compõem (o Fora) que se dá a subjetividade. “Assim, o sujeito é aquele que reflete, que espelha, que devolve o que sobre si projeta o Fora, e aquele que curva sobre si as forças que lhe vêm do Fora”. (PELBART, 1989, p.136)

Sendo a subjetividade modelada pela dobra, quanto maior for o gargalo que se abre para o Fora, maior será a intimidade do sujeito-pensador com o Fora, e assim, maior a possibilidade de criação de pensamento.

Desse modo, “A dobradura se des-dobra, abrindo-se, e forças anteriormente re-torcidas na zona de subjetivação se dis-torcem”. (PELBART, 1989, p. 139). Este encontro com as forças do Fora dão ao pensador a possibilidade do pensamento; pensamento que vai entrar em relação com os heterogêneos das Forças. Tal estiramento da dobra é justamente a possibilidade de ruptura, mas esta carrega junto de si linhas mortíferas que podem levar à saída de órbita sem volta.

Em sua tese de doutorado Aragon (2005), em capítulo intitulado “Apontamentos para uma clínica do impessoal”, percorre a compreensão que Bion dá ao pensamento. Este, por sua vez, inspirou-se numa peça de Pirandello (1981) chamada “Seis personagens à procura de um autor”. Bion então, segundo Aragon (2005, p. 110), vai chamar os pensamentos não pensados de proto-pensamentos: “Proto-pensamento, não é uma idéia, forma ou propriedade. Mas aquilo que impele, age, pulsa, aquém ou além do pensador, sendo-lhe contemporâneo, sem esgotar-se nele. Não é, a meu ver, partícula ou signo, mas a própria potência desejante, impessoal e inumana”.

Aragon (2005, p. 111) vai dizer, ainda a partir de Bion, que o pensamento impensável cria um espaço de “tormenta” ou “intensivo”. Já Deleuze (1988, p. 230) vai dizer que pensar é perigoso, já que não se dá de forma inata e natural, mas sim através de um “forçamento”, ou seja, por um ato violento. Ora, o novo carrega sua força de desestabilização, e é este encontro de forças que produz e desfaz a subjetividade. Os pensamentos só se darão quando o sujeito abrir mão da sua dura e acostumada forma de ser e de ter pensamentos já pensados. “Para não ser compulsivo, o indivíduo deve poder ser aquilo que não é, em si. Participar do 'tornar-se' que advém da ação potencial do mundo ambiente, do que lhe é estranho”. (ARAGON, 2005, p. 112). Movimento que se dá do cais ao caos e do caos ao cais, movimento de perder-se e de se encontrar em outras formas, em novas formas.

Trata-se, portanto, de lutar com e não contra. Sendo que a experiência do “tornar-se” fala, justamente, do movimento naquilo que estava instituído, fala de um novo sentir, de um novo corpo a se fazer. Ou como nos dizem Deleuze e Guattari (1992), fala da multiplicidade, de criar um “povo” que nos falta. Aragon (2005, p. 119) vai considerar a subjetividade um processo, “A emergência de uma musicalidade do ser, a partir do encontro com outras melodias. O que implica uma condição de abertura e mutação na afetação por novos ritmos”.

Falamos então de paradoxo: algo tenso e tênue ao mesmo tempo. O que tensiona, vibra, vibrações criadoras, criativas. O que é tênue pode explodir, o que está na tenuidade quer fugir – são linhas em pululação, são encontrões entre faíscas, são possíveis fugas inimagináveis... Tênue e tenso.

Em entrevista concedida a Floriano Martins, Maciel (2004, p. 145) fala de sua poesia e processo de criação como exercício de “(...) sondar as possibilidades de conjunção entre lucidez e liberdade da imaginação”. Ela está falando de uma poesia que vive de paradoxos, que nasce das tensões, daquilo que está posto em instabilidade. Poesia que não separa forma de conteúdo e que fala de uma subjetividade, como a própria autora diz, que não está tão preocupada com um “eu” rígido e sim com a povoação de “eus” na escrita. “Eus” de linhas de fuga, “eus” musicais, “eus” polifônicos. Conjugando o rígido com o fugidio, fazendo do paradoxo a possibilidade de criação; possibilidade de “(...) se extrair o rigor do delírio e o delírio do rigor” (idem), ambos co-existindo mesmo contrários. Sobre o poeta ela diz:

Creio que é porque nunca consegue resolver o enigma de todos os começos, porque se assombra diante do milagre da palavra, porque se espanta com o acaso ou com o insólito que desorganiza a obviedade do mundo, por saber que todas as verdades são incertas e que a vida não basta, que o poeta escreve e não cessa de escrever. (MACIEL, 2004, p. 148)

Não seria esse o assombramento necessário na clínica para que pudéssemos, de repente, estar instaurando outras formas de ser? Será que o poeta, de quem ela fala, não pode ser também o sujeito em encontro com a vida? Por depararmos com o não-saber, com o inexplicável, com o estranho, podemos “pensar o impensável”? Foucault (1981), diz o seguinte:

(...) o essencial é que o pensamento seja, por si mesmo e na espessura de seu trabalho, ao mesmo tempo saber e modificação do que ele sabe, reflexão e transformação do modo de ser daquilo sobre o que ele reflete. Ele põe em movimento, desde logo, aquilo que toca: não pode descobrir o impensado, ou ao menos ir em sua direção, sem logo aproximá-lo de si – ou talvez ainda, sem afastá-lo, sem que o ser do homem, em todo caso, uma vez que ele se desenrola nessa distância, não se ache, por isso mesmo, alterado. (FOUCAULT, 1981, p. 343)

Assim, o sujeito em encontro com o impensável também está a alterar a si mesmo. Não é isso que buscamos, enquanto sujeitos, experimentar novos jeitos de ser? Colocar em movimento um certo jeito acomodado?

Maciel (2004, p. 149) entende o erro “tanto como falha, desacerto, lapso, quanto como a condição do que se espalha em várias direções”. Aqui podemos pensar no erro como a própria distração, ou como um estar à deriva que possibilita o espalhamento, a desfiguração das formas já estabelecidas e suas fugas. O erro que traz junto o bloco heterogêneo dos devires, daquilo que não está na partitura, que não foi ensaiado. Um erro como potencialidade para a criação do novo. Ter “um branco” ou abrir os olhos na escuridão é estar em encontro com o que desacomoda os vícios de “eu” e os “cais-clichês-de-si” (ARAGON, 2005, p. 118). É estar à deriva num lugar sem signos e ao mesmo tempo, paradoxalmente, povoado por estes. Possibilidade de ação, de fazer corte no caos, no branco, no escuro, e compor o novo. Não se trata de lutarmos contra o branco ou contra o escuro, mas justamente de lutarmos com eles, compondo algo com aquilo que insistentemente nos coloca em fuga. O erro é possibilidade de fuga ativa. Podemos pensar que o branco é claro e que ele nos mostra a forma das coisas, mas também nos deparamos com os “brancos” que nos indicam um esquecimento. Mas há nisto uma potência. Um esquecimento que é branco contém todas as outras cores, contém a multiplicidade das cores. O branco do esquecimento abre para o desconhecido, para as criações, para as multiplicidades do pensamento. Já uma lembrança, por vezes, pode levar ao “um”, ao “eu”, à resposta única.

Da mesma forma temos o escuro que nos emudece ou nos faz produzir sonoridades conhecidas. O lugar do medo onde as formatividades demoram a retornar no nosso campo de alcance. O escuro, o preto, a ausência de luz. “Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos”. (LISPECTOR, 1973, p. 52)

Para pensar a clínica podemos pensar o paradoxo em Lispector, pensar o incômodo como deriva ativa, como forma de criação de pensamento. O incômodo é justamente a diferença, o movimento. Daquilo que se repete e que demarca território se passa para a fuga, rápida, momentânea, passageira... Mas o que é essa inquietação? “(...) é a linha de fuga que emerge em meio à ciranda diária de demarcar lugares, de deixar rastros e rastros expressivos de um território demarcado. A inquietação é uma das manifestações desse desenho constante, incessante, mas descontínuo, de ritmo irregular e insistentemente passageiro” (FERRAZ, 2004, p. 160).

De novo do cais ao caos, do caos ao cais, sem parar. Se incomodar, se acomodar... e novamente se incomodar. Novamente porque é aí que se cria, sendo o pensamento criação. Será papel da clínica ser espaço para este movimento? Então é a clínica espaço para se produzir pensamento? Podemos pensar o pensamento não como “(...) aquilo que nos faz acreditar no que pensamos ou admitir o que fazemos, e sim o que nos faz problematizar aquilo mesmo que somos”? (FONSECA, 2004, p. 48) Podemos pensar na dupla inquietação - incômodo como movimento que deve tomar tanto o terapeuta quanto o paciente, já que é daí que surgem os pensamentos, e já que entendemos que pensar pensamentos impensáveis é também desfazer jeitos condensados de ser: “(...) o pensamento, para inquietar-se, quase sempre precisa ser incomodado, ou ainda, que quanto mais o pensamento for incomodado, tanto mais poderá vir a inquietar-se” (FONSECA, 2004).

A linha de fuga para Ferraz (2004) consiste no movimento de

(...) sair do centro e entrar a todo tempo em uma nova ciranda, em uma nova cantiga de roda, em um novo ritmo circular que crava um centro, que se vale de uns movimentos e de algumas coisas que estão ali por perto (jogar a mochila na poltrona da sala depois largar uma calça amarrotada na maçaneta do banheiro e sair por aí deixando marcas e marcas) tudo de modo a contracenar o centro, o giro e os outros centros e outros giros que nos levam a um novo centro, um novo giro. (FERRAZ, 2004, P. 161)

Ferraz (2004) continua este relato falando do processo de criação, trazendo agora o momento, aquele, em que não se quer ser interrrompido, de maneira alguma, tamanha a potência e o lugar que está se “presentificando”. Podemos pensar a linha de fuga e a expressão da potência como criação territorial. São necessários pequenos lugares para que se consiga expressar isto que vem potencializado pelo incômodo ou pela deriva ativa. Estes lugares também devem ser proporcionados pela clínica. Esta marca é o estilo, que não sobrevive sem também encontrar, por vezes, o cais para esse movimento ancorar:

Um pensar impessoal se avolumava, trazendo consigo o perigo e a necessidade de sofrer um ”para além”; de abrir mão dos mundos próprios, dos roteiros afetivos costumeiros, das significações restritivas e mudar com ele. Deixar passar o sentido em devir, abrindo vazios de saber e liberar a intuição para a possível criação de um som, uma imagem, uma palavra. (ARAGON, 2005, p. 117)

O Estilo na Clínica
“(...) armar tensores em toda a língua, mesmo a escrita, e extrair daí gritos, clamores, alturas, durações, timbres, acentos, intensidades” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 50). Fazer tensão é esticar a linha, dar a ela a possibilidade de se arrebentar. Permitir que se parta, que ela parta, fuja, experimentando assim uma nova musicalidade na palavra, na voz, na escrita. Ouve o choro de um bebê... ele se perde, de repente, no som, na intensidade, na sensação das cordas vocais que vibram na garganta – para alguns é manha. Mas ele continua na sua experimentação. Tensiona o choro, prolonga o tom agudo que em seguida atinge notas graves. Um bebê faz variar seu choro que já foi significado como manha, e assim tenta fugir de uma possível interpretação. O mesmo fazem os artistas:

O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 262)

O que se coloca é justamente o que faz uma linha de fuga: destrói as marcas de um território tão bem condensado. Portanto, “É em sua própria língua que se é bilíngüe ou multilíngüe. Conquistar a língua maior para nela traçar línguas menores ainda desconhecidas. Servir-se da língua menor para pôr em fuga a língua maior” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 51). Entendemos o maior como tudo aquilo que tem uma constante, supõe poder e dominação, sendo que a minoria fica livre do modelo. O que faz Carmelo Bene é justamente tirar de suas peças os elementos de poder, como por exemplo o personagem Romeu da peça “Romeu e Julieta”. Assim, novas configurações se tornam possíveis onde “(...) la sustracción de los elementos estables de Poder, que va a liberar una nova potencialidad de teatro, una fuerza no representativa siempre em desequilíbrio” (DELEUZE, 2003, p. 81). Através daquilo que se subtrai “hace nascer y proliferar algo inesperado” (idem, p. 78). Isso não quer dizer que basta estar em posição de minoria para que se fique livre dos modelos, mas sim, deve-se inventar um “devir específico autônomo, imprevisto” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 53) através dos muitos “elementos de minoria, conectando-os, conjugando-os” (idem).

O maior extrai da língua as constantes e o menor coloca-as em variação contínua. As constantes fazem-nos refletir sobre questões trazidas por Nietzsche acerca da linguagem. Giacóia (2001) apresenta a questão da comunicação e do comum como um dos pontos criticados por Nietzsche na metafísica tradicional. A metafísica tem crença na unidade eterna e monódica da alma. Nietzsche vai postular uma racionalidade inconsciente.

Para Nietzsche, comunicar = tornar comum. Reduzir a língua ao que pode ser partilhado, aquilo que pode ser identificado por ambos, trata-se de suprimir as diferenças. A linguagem, para ele, não pode expressar o singular. Linguagem, consciência e sociedade têm origem comum, tendo como finalidade a comunicação, mas estes estão ainda sujeitos à transformação, ao devir, à história. A consciência não faz parte da existência individual, é natureza de “rebanho”. Nietzsche vai dizer que o corpo e seus afetos são a grande razão, e a consciência, a pequena razão. Só o gemein (comum) ingressa na consciência, porque ela se desenvolve em função dos valores de Gemeinde (comunidade).

O silêncio, os barulhinhos menores, os grandes estrondos, os ruídos, fazem parte da linguagem e suas intensidades afetivas. Nos platôs 4 e 5, Deleuze e Guattari (1995) também trabalham a questão da linguagem, propondo que se saia da gramática dentro dela mesma, atravessado pela história, sim; mas sem se engessar nos clichês da fala. A partir de Nietzsche podemos pensar que tudo o que é constante participa do mesmo conjunto, sendo que o que varia, o que entra em variação, não pode ser capturado por algo do comum, ou seja, da comunidade. O que varia desforma a todo instante e então não cristaliza numa forma cabível de interpretações ou dotada de significações. O que varia foge dos clichês e, assim, se desfaz para poder criar.

São as experimentações que levam à criação, ao imperceptível, ao sem rosto, ao desconhecido, ao novo. As linhas de fuga são possibilidades de devires, sendo estes a conjugação de diversos fluxos. Fluxos que se desterritorializam entre si e assim levam a linha para mais além. Vê-se que é no meio, no percurso, no caminho, que as mudanças ocorrem. Poderíamos pensar numa clínica fugidia onde houvesse espaço para que pudéssemos abrir fissuras na hegemonia e no discurso cristalizado? Podemos pensar numa clínica que toa as palavras e as faz variar? Podemos pensar numa clínica que parte do comum para se engendrar nos caminhos e descaminhos da criação? O meio “Es la vía por la cual los tiempos más diferentes se comunicam. No es ni lo histórico, ni lo eterno, sino lo intempestivo” (DELEUZE, 2003, p. 82), no menor encontramos as potências dos devires. O desejo tende a investir no menor por este não possuir modelos, valendo-se então de suas intensidades que não reconhecem valores, formas e funções:

“É como uma alegria triste”, diz uma paciente:

(...) é próprio da linguagem, simultaneamente, estabelecer limites e ultrapassar os limites estabelecidos: por isso compreende termos que não param de deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da ligação em uma série considerada (assim, demasiado e insuficiente, muito e pouco). (DELEUZE, 2003, p. 09)

Para além do trabalho interpretativo, trata-se de, na escuta da fala, resgatar a dimensão poética da linguagem naquilo que escapa dos códigos. Trata-se de resgatar os afetos e as intensidades que possam dis-trair as certezas e, desta forma, ampliar o campo de experimentos inéditos de si.

“Quando estava vindo para a análise lembrei-me do gosto do cachorro-quente da Confeitaria Princesa e das aulas de piano que eu fazia quando criança.” Na fala desta paciente podemos remeter para o fragmento do gosto, da música, buscando extrair, na expressão de impressões, na musicalidade da fala, as sensações e suas variações de intensidades, os sentidos de potência ou impotência de si ali presentes, mais do que aos Nomes a que se referem, como, por exemplo, o significante princesa, infinitamente preso na cadeia significante. Na dimensão dos afetos, do corpo e da experiência sensível, o fazer sentido é sempre dar passagem e, simultaneamente, inventar significados para o que pede passagem. É um exercício de fazer saturar e também de fazer subtrair. Fazer da fala a possibilidade de estender os limites, mas também de estabelecê-los, num jogo de risco que é sempre, inseparavelmente, também de prudência.

Deleuze e Guattari (1997, p. 73–74) acerca do pensamento de Virgínia Woolf dizem o seguinte: “É preciso 'saturar cada átomo' e, para isso, eliminar, eliminar tudo o que é semelhança e analogia, mas também 'tudo colocar', eliminar tudo o que excede o momento, mas colocar tudo o que ele inclui (...)”. O diretor de cinema Abbas Kiarostami (2004) brinca com as eliminações nas construções de seus filmes e fotografias. Além de o diretor abdicar de cenários grandiosos e cheios de detalhes, ele também abdica, em alguns filmes, de alguns personagens. Ele diz: “Sei que é preciso ter coragem para mostrar o nada, mas essa coragem é estimulada pela confiança que deposito no espectador, principalmente nestes tempos em que o cinema procura conquistar o público mostrando-lhe tudo” (ISHAGHPOUR e KIAROSTAMI, 2004, p. 250). E ele continua se questionando:

Como fazer um filme em que não se diz nada? Se as imagens conferem ao outro o poder de as interpretar, extraindo delas um sentido, um sentido que eu nem imaginava, melhor é eu não dizer nada e deixar o espectador livre para imaginar tudo. (...) quando não dizemos nada é como dizer muitas coisas. (ISHAGHPOUR e KIAROSTAMI, 2004, p. 185)

O nada desértico de Kiarostami também pode ser muito. O muito do infinito, o “um” da única árvore da cena que parece tomar conta da multiplicidade de possibilidades para a imaginação. Lógica de desindividualização, lógica dos vazios que abrem brechas para o pensamento.

Então, tanto o pouco quanto o muito podem quebrar com as condensadas referências. “Uma única tulipa simplesmente não é. Precisa de campo aberto para ser” (LISPECTOR, 1973, p. 68).

Brincar com as definições é colocar a linguagem em variação contínua. Para Deleuze, citado por Tadeu, Corazza e Zordan (2004, p. 170), isto é o estilo. Escreve-se, cria-se, escuta-se com estilo, para devir. E devir é transformar, ou seja, “estilar”. Brincamos nós na clínica de colocar a língua em variação? Estamos a “estilar”? Será que fazemos uma clínica da transformação pela saturação e pela eliminação?

Arnaldo Antunes (1996) em devir-criança, também varia, continuamente:

(...) Assim: mesa e cadeira são duas palavras. Móveis é uma palavra só – Coisas que se movem. Mas não há palavra para dizer dois corpos encostados, ou uma mão segurando um punhado de terra, ou duas mãos dadas com um tanto de terra entre elas; como há, por exemplo, a palavra jardim para designar o conjunto de terra e plantas; ou a palavra planta para expressar a soma dessa parte que fica abaixo da terra. Com raiz bulbo folha talo ramo galho tronco fruto flor pistilo pólen dentro. E a sola do pé chamaremos de planta. Sobre o solo. Assim como dizemos planta para o pé diremos palma. Para a mão. Folha de palmeira. E se não quisermos dizer planeta podemos dizer terra. Ou isso. Mas se ele não estiver por perto não podemos chamá-lo de isso. (ANTUNES, 2002, p. 57)

Deleuze e Guattari (1995, p. 59), falando sobre a natureza dupla de uma mesma palavra que pode ser uma passagem ou uma parada, propõem “(...) transformar as composições de ordem em componentes de passagem”. Extraem-se da ordem as passagens. Assim são os mapas das crianças, assim são os descaminhos artísticos. Da dureza de uma ponte onde embaixo corre o rio, para a fuga da ponte, onde o rio apenas está a chover: “A ponte é aonde chove o rio embaixo” (ANTUNES, 2002, p. 37). Mapas que são trajetos, e que se sobrepõem, sem ordem, origens ou continuidades, para criar deslocamentos. Mapas que tratam de mobilizar: “Trata-se de uma forma de organizar o espaço e o tempo que expande a percepção e infla a alma, isto é, torna sensíveis (sonoras, audíveis, visíveis, legíveis...) forças ordinariamente imperceptíveis” (JÓDAR e GÓMEZ, 2002, p.39).

Deleuze (1997) fala em levar a palavra e a língua a delirar. Um delírio que também deve pertencer ao ver e ao ouvir. Quem sabe levar a língua a derivar? A estar à deriva? Quem sabe então devamos desacomodar a língua? Incomodá-la? Extrair da palavra as intensidades que arrastam os nomes na criação de novos nomes?

Estar à deriva é estar distraído, e estar distraído é possibilidade para um incômodo. É por sermos atravessados por forças distraídas que podemos cantarolar, que podemos balbuciar, que podemos silenciar. A psicanálise faz a escuta desta linguagem, movendo com as representações que aprisionam o fluxo das forças desejantes em sentidos cristalizados e totalizantes da experiência (repetição do mesmo) na direção do paciente se autorizar a experimentar seus próprios e sempre novos devires (repetição da diferença). Uma língua distraída se distrai da ordem, do controle e do modelo. A palavra à deriva é possibilidade de mapa. É possibilidade de fuga, de fazer fugir, fazer distrair o costume, o comum, o certo, o engessado, sendo que o trajeto “(...) se confunde não só com a subjetividade dos que percorrem um meio, mas com a subjetividade do próprio meio” (DELEUZE, 1997, p. 73). Com isto podemos entender por que é uma questão de política a variação da língua. Se a psicanálise situa sua prática no campo da ética, onde os sentidos que emergem no processo são sempre avaliados a partir de um critério vital e nunca moral ou normal, fica claro que esta dimensão ética é inseparável de uma dimensão estética e política enquanto criações de sentidos singulares de existir: invenções de “eus” e mundos outros.

Interessa, portanto, pensar uma psicanálise que se estenda para a vida, uma psicanálise ética-estética-política que não separa a arte da vida naquilo que a vida traz de possibilidades de produção de sentidos inéditos e criadores, enquanto um pensamento que se desestabiliza – já que transformações são políticas – num incômodo do mundo.

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