A Travessia da Fantasia na Neurose e na Perversão (1)

Marco Antonio Coutinho Jorge
Psiquiatra. Psicanalista. Diretor do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Rio de Janeiro. Doutor em Comunicação pela UFRJ. Professor-adjunto do Instituto de Psicologia da UERJ. Membro correspondente da Association Insistance (Paris/Bruxelles)

A descoberta da psicanálise é a descoberta do inconsciente e Freud a apresenta em três grandes livros inaugurais: A Interpretação dos Sonhos (1900), A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) e Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905). Esses três livros – segundo Lacan, três obras canônicas em matéria de inconsciente – expõem a estrutura do inconsciente tal como ela é: articulada com a linguagem. É o inconsciente que aparece na descoberta da psicanálise.

Em 1905, ano da escrita do livro dos chistes, Freud escreve um outro livro fundamental: Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Octave Mannoni chama a atenção para o fato de que Freud tinha duas mesas de trabalho diferentes, uma para cada obra, e descansava de uma escrevendo a outra. Essa é uma observação interessante, porque os Três Ensaios é a obra na qual Freud introduz, pela primeira vez, o conceito de pulsão, ou seja, é um livro que trata da questão da sexualidade e do gozo. É como se Freud descansasse desse livro, escrevendo outro, mais prazeroso, que é o livro dos chistes, livro que apresenta especialmente a estrutura do simbólico, ou seja, da linguagem. Inconsciente e pulsão, então, são os dois conceitos fundamentais da psicanálise que são trazidos nos primeiros anos da descoberta freudiana.

O Ciclo da Fantasia
Logo em seguida, de 1907 a 1911, podemos isolar um período, na obra de Freud, que parece ser dedicado à fantasia. Chamemo-lo de ciclo da fantasia. Delírios e Sonhos na Gradiva, de Jensen (1907) inicia uma série de artigos dedicados à questão da fantasia sob inúmeros aspectos e prismas diferentes: a fantasia na sua relação com o sintoma, a fantasia na sua relação com a criação literária, a fantasia na sua relação com o romance familiar, as teorias sexuais infantis etc. São vários artigos que constituem uma espécie de núcleo do desenvolvimento da fantasia em Freud, que, durante esses anos, parece ter se debruçado, exclusivamente, sobre o tema.

Esse ciclo se encerra em 1911, com a escrita de Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental, que, embora não se encontre no grupo de artigos metapsicológicos, é um artigo que traz a metapsicologia da fantasia.

É importante notar que Freud caminha do inconsciente, chega até a pulsão e, muito rapidamente, trabalhará a fantasia. Essa percepção traz algo bastante novo que desenvolvo a seguir: a concepção da fantasia como sendo a articulação entre o inconsciente e a pulsão. Essa parece ser uma nova forma de definir a fantasia, que nos faz ver fatos novos. A fantasia é a articulação entre inconsciente e pulsão, ou, nos termos de Lacan, a fantasia é a articulação entre o simbólico e o real.

É preciso chamar a atenção para o fato de que, em 1911, Freud não escreve somente o artigo das Formulações, a metapsicologia da fantasia, mas, também, outro ensaio magistral, o Caso Schreber, ambos publicados no mesmo número da revista Imago. É nesse caso que Freud, pela primeira vez, consegue trazer à luz a lógica do delírio paranóico. Depois de um longo período de elaboração sobre a questão a fantasia na neurose é que ele pôde, então, se debruçar sobre aquela do delírio na psicose e extrair a sua lógica inerente.

Essa diferença entre fantasia e delírio parece denunciar, em Freud, uma nítida distinção estrutural-clínica entre neurose e psicose. Essa distinção, que nesse momento aparece de forma conceitual, ligada aos conceitos fundamentais, após o advento da segunda tópica, na década de 20, será trabalhada diretamente ligada à clínica, nos dois importantíssimos artigos Neurose e Psicose e A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, ambos de 1924.

No primeiro artigo, Neurose e Psicose, Freud conclui que a diferença entre neurose e psicose é que na segunda haveria uma perda da realidade. Dois ou três meses depois, porém, ele escreve o segundo artigo e o inicia corrigindo sua afirmação:

Recentemente indiquei como uma das características que diferenciam uma neurose de uma psicose o fato de em uma neurose o eu, em sua dependência da realidade, suprimir um fragmento do isso (da vida pulsional), ao passo que, em uma psicose, esse mesmo eu, a serviço do isso, se afasta de um fragmento da realidade. Assim, para uma neurose o fator decisivo seria a predominância da influência da realidade, enquanto para uma psicose, esse fator seria a predominância do isso. Na psicose a perda de realidade estaria necessariamente presente, ao passo que na neurose, segundo pareceria, essa perda seria evitada.

Isso, porém, não concorda em absoluto com a observação que todos nós podemos fazer, de que toda neurose perturba de algum modo a relação do paciente com a realidade servindo-lhe de um meio de se afastar da realidade, e que, em suas formas graves, significa concretamente uma fuga da vida real (2).


O desenvolvimento desses dois artigos, que parecem ser um único, apresenta embutido nele um raciocínio que implica a distinção entre fantasia e delírio. Não é à toa que o segundo artigo desemboca exatamente nessa distinção. Nos últimos parágrafos, Freud marca explicitamente que a perda da realidade na neurose é diferente daquela na psicose. Na primeira há ainda certa manutenção de um vínculo com a realidade, ao passo que na segunda há uma perda radical dele.

Trabalhando esses artigos, ocorreu-me uma coisa engraçada: a idéia de que, ao escrevê-los, foi Freud quem perdeu a realidade. Isso aparece nitidamente nesses escritos. Quando digo que Freud a perdeu, é porque ele acaba concluindo que a realidade é sempre perdida. A noção de realidade é problematizável, a partir da noção de real de Lacan, e Freud, nesses textos, antecipa avant la lettre essa categoria.

É interessante notar também que, três anos depois dessa distinção estrutural entre neurose e psicose, a partir da fantasia e do delírio, Freud, pela primeira vez, escreverá um artigo que traz uma teoria consistente do fetichismo, talvez, para ele, o paradigma da perversão.

Ele havia, em 1909, elaborado a questão do fetichismo num texto apresentado na Sociedade das Quartas-Feiras, conferência publicada na Revista Internacional da História da Psicanálise(3), mas, naquele momento, ele não tinha alguns elementos que só desenvolverá depois.

Há certo fio inconsciente no trabalho de Freud. Ele, como todos nós, também estava mergulhado no inconsciente. Quando escrevia sobre algo, não poderia saber da articulação do seu próprio inconsciente e aonde ela o levaria. Isso ocorre conosco e não seria diferente com ele. Acredito que, hoje, diante da obra de Freud e com a leitura de Lacan, podemos detectar, ou pelo menos tentar detectar esses diferentes fios invisíveis que sustentaram as articulações maiores ao longo da obra freudiana.

Quando, em 1911, Freud extrai a lógica do delírio psicótico, ele afirma algo espantoso, que foi polêmica na época e é polêmica psiquiátrica até hoje: o delírio não é a psicose, o delírio é a tentativa de cura dela. Lacan refere-se a esse problema em várias passagens, por exemplo, no Seminário 3 (1956-1957), quando afirma que, em todo delírio, vemos a mesma força estruturante, ou seja, a tentativa que o psicótico faz de se estruturar pela linguagem, pelo simbólico.

Fantasia e delírio, então, correspondem a dois elementos muito parecidos e, ao mesmo tempo, muito diferentes. Freud, no ensaio sobre a Gradiva, utiliza a expressão fantasia delirante para se referir ao delírio. Expressão que associa neurose com psicose. A conseqüência direta disso é a dificuldade em distinguir com precisão os dois termos. Há, portanto, uma necessidade de dar à fantasia o lugar que ela tem no psiquismo.

Não é sem motivo que Lacan conceberá o fim da análise como ligado à questão da fantasia, mencionando a sua travessia. A fantasia é uma espécie de matriz psíquica que funciona mediatizando o encontro do sujeito com o real. Ela é uma matriz simbólico-imaginária que permite ao sujeito fazer face ao real do gozo.

Se tomarmos a noção de pulsão de morte na obra de Freud – que foi, na verdade, valorizada por Lacan -, veremos que o que ele chama de morte é o que Lacan chama de o gozo.

Há um vetor que rege nosso psiquismo. Para Freud, esse vetor único, fundamental, se chama pulsão de morte. Na leitura que faz de Mais Além do Príncipio do Prazer (1920), Lacan afirma que toda pulsão é pulsão de morte. Freud disse exatamente a mesma coisa com outras palavras.

Felizmente, muitos de nós não vivemos submetidos a esse vetor, que, por definição, é mortífero. Alguma coisa acontece que nos permite lidar de uma forma diferente com esse alvo da pulsão de morte: o gozo. Essa alguma coisa se chama fantasia.

Ela surge a partir de uma operação chamada recalque originário, operação agenciada por um significante, o significante Nome do Pai. O recalque originário resulta sobre o psiquismo da criança a imediata instauração dessa matriz psíquica: a fantasia. Esta, por sua vez, fará com que aquilo que era empuxo-ao-gozo, como diz Lacan – pulsão de morte, empuxo na direção da morte –, seja freado e passe a ser uma região na qual a pulsão de morte é sexualizada. Nessa região, a fantasia passa a dominar pelo menos um trajeto dessa pulsão de morte. É o que Freud chama de pulsão de vida e que, para nós, é a pulsão sexual.

Do lado desta temos o princípio de prazer, dominado pela fantasia, e do lado da pulsão de morte, o mais além do princípio de prazer.

Tudo isso ocorre nas neuroses e nas perversões. Em ambas, há ação do Nome do Pai, há recalque originário e, por conseguinte, a instauração da matriz psíquica chamada fantasia inconsciente fundamental.

No caso da psicose, essa constelação não ocorre, porque a foraclusão do significante Nome do Pai produz uma falha no recalque originário de tal modo que essa fantasia não se instaura e, por que ela não se instaura, o psicótico tenderá a, no melhor dos casos, a produzir um delírio que preencherá essa lacuna, esse vazio. Esse vazio é a própria psicose.

Neurose e Perversão
Tomemos, agora, a fórmula da fantasia para tentar ler nela a diferença que há entre neurose e perversão: $ ^ a.

Podemos ver nela dois pólos: se a fantasia é a articulação entre o inconsciente e a pulsão, podemos situar, no lado do $, o pólo inconsciente, e no lado do objeto a, o pólo pulsional. No primeiro pólo temos o sujeito, que é barrado pela linguagem, pelo significante, entre S1 e S2, e no segundo, o elemento que é aquilo que se inscreve na fantasia como mais-gozar, como a inscrição do gozo que era absoluto, mortífero e que, na fantasia, se transforma num gozo limitado: o gozo fálico. Este é o gozo submetido à linguagem, ao falo. Podemos, também, dizer que o pólo inconsciente é o pólo simbólico, e o pólo pulsional é o pólo real da fantasia. Do lado do primeiro – do $, do inconsciente, do simbólico – podemos situar o amor e do outro lado – do objeto a, da pulsão, do real – podemos situar o gozo.

Uma história de observação cotidiana, que me foi contada, muitos anos atrás, por um analista, é clarificadora em relação à questão do gozo, um conceito difícil em Lacan. Um menino de 5 anos observava o seu irmãozinho de leite mamando. Ao observar essa cena, ele virou pra mãe e disse: “Mamãe, eu também quero mamar”. E a mãe respondeu: “Mas você já mamou”. E ele disse: “Mas eu não sabia!”.

Assim, um menino de 5 anos nos ensinou, com quatro palavras, o que é o gozo para Lacan. O gozo é a perda que se inscreve na medida em que houve a entrada no mundo simbólico. O menino, olhando o irmãozinho, mamando, quis ter acesso àquele gozo que já foi perdido. Mas, ele não tem mais como achá-lo. Como sujeito falante, ele não tem mais acesso a esse gozo. Este está perdido. O que o menino queria era gozar sabendo e o que Lacan assegura é que há um corte radical entre saber e gozo. Quando há gozo, não há saber, quando há saber, não há gozo. Por isso que a análise, que dá acesso ao saber inconsciente, implica numa perda de gozo.

Se a fantasia é um elemento que se instaura para a criança como uma verdadeira contrapartida ao gozo que ela perdeu, a fantasia se dá, essencialmente, como uma fantasia de completude. A fantasia é fantasia de completude. Ela é a elisão da falta inerente à estrutura do falante. Houve perda de gozo. A fantasia, instaurada, é uma tentativa de recuperação daquilo que foi perdido.

Minha hipótese é a de que, se, na neurose, temos fantasia de completude, ela é uma fantasia de completude amorosa. O neurótico quer resgatar a completude perdida pelo viés do amor. Ele se fixa no amor. Ele se fixa no pólo inconsciente da fantasia e elide o pólo do gozo da fantasia.

Um jovem analisando, com uma tendência predominantemente obsessiva, certa vez, chegou numa sessão dizendo que concluíra que terminaria o seu namoro, porque sacou uma coisa muito importante. Se ele continuava sentindo atração física por outras meninas, era porque sua namorada não era a mulher da vida dele. A expressão “mulher da vida dele”, como outras tão comuns na cultura, mostra que, na neurose, existe a tentativa de, através do amor, preencher completamente o vazio e resgatar a completude perdida, elidindo totalmente esse aspecto do gozo.

Se a clínica analítica é uma clínica sob transferência, então, ela é na essência uma clínica da neurose.

Na perversão, houve a mesma entrada da fantasia, mas, por motivos históricos absolutamente singulares, a entrada do sujeito perverso no mundo do simbólico se deu através da fixação no outro pólo da fantasia, no pólo pulsional, no pólo de gozo. O perverso tem uma fantasia de completude de gozo. Ele almeja resgatar a completude perdida pelo viés do gozo.

Poderíamos, então, pensar que para o neurótico o fim da análise, enquanto uma travessia da fantasia, é uma travessia da fantasia amorosa; e de fantasia de gozo, para o perverso. O fim da análise implicaria em dar acesso ao neurótico ao pólo do gozo do qual ele tanto se defende, e, no caso do perverso, implicaria no acesso à dimensão do amor, da qual ele também se defende.

Mas, o que mais importa nessa travessia não é ter acesso ao outro pólo da fantasia, mas que, ao fazê-lo, o sujeito tenha acesso à dimensão que está escrita, no matema da fantasia, entre o $ e o a, que é a dimensão do desejo, inscrita no signo da punção: ^. O desejo, aqui, está escrito enquanto falta e é a presentificação daquela perda de gozo que esteve na origem da entrada do sujeito no mundo humano, no mundo do simbólico.

Ao ter acesso ao pulsional e ao gozo, e deixando de se fixar no pólo do amor, o neurótico terá acesso ao desejo. No perverso é o contrário. Porque, quando se tem acesso ao amor e ao gozo, tem-se perda de amor e perda de gozo.

Essa é a definição que eu proporia de desejo: desejo é duplamente uma perda de amor e de gozo, ou seja, a dimensão da falta de amor e da falta de gozo.

A frase de Lacan “só o amor pode fazer o gozo ceder ao desejo” resume essa elaboração, na medida em que há uma espécie de báscula entre amor e gozo.

Percebe-se, porém, que essa báscula ocorre não só nas estruturas clínicas como tais, mas também em um mesmo sujeito. É possível ver na clínica muito mais perversão do que comumente se presume.

Se tomarmos o fetichismo como o paradigma da perversão, teremos algo muito definido, mas não podemos nos contentar com isso. A perversão é um campo amplo demais e é necessário estender a percepção que temos dele. Diz-se que o perverso não busca análise, mas Freud não assegura isso e descreve casos de análise de perversão. O que ele afirma é que o perverso não procura análise pela perversão. Os casos de fetichismo de Freud são casos nos quais o paciente procurou tratamento por motivo diverso do fetichismo, que só foi descoberto durante o tratamento. Mas que questões levariam um perverso à análise? Provavelmente algum tipo de sofrimento, que suponho estar ligado ao que chamo de pólo amoroso da fantasia. Na perversão, escutamos o sujeito queixar-se da solidão na qual é jogado por certas posições perversas que adota. Ele chega a questionar isso. Ele chega a se sentir só.

Cito um exemplo dessa ordem. Um sujeito diz: “Eu não me ligo a ninguém, não tenho nenhuma relação com ninguém, porque sei que não vou conseguir. Depois de algum tempo começo a transar com outras pessoas”. Ao contrário do obsessivo a que me referi anteriormente, neste caso, o gozo fica como uma defesa em relação ao vínculo amoroso. O vínculo amoroso implica a alteridade, implica a diferença, implica certa castração do gozo. A definição que gosto da perversão é: ela é a abolição da diferença, a abolição do desejo do Outro. Ou seja, a perversão é a abolição daquilo que entra com toda força na intersubjetividade amorosa.

Mas vejam que, apesar de toda problemática em jogo nessa posição perversa, assim como na neurótica, ela é uma saída daquele vazio que chamamos de psicose. O que a inscrição do significante Nome do Pai provoca é a instauração de uma fantasia que recobrirá o vazio da psicose. E esta é uma assertiva importante porque coloca a psicose como a base do humano e, clinicamente, como uma falha na saída dessa base.

Lacan, numa daquelas passagens que só se comentam entre analistas, chegou a dizer que uma psicanálise levada muito longe conduziria à psicose. Isso se explica pela capacidade que a análise tem de desconstituir essa matriz psíquica simbólico-imaginária que é a fantasia e lançar o sujeito no vetor da pulsão de morte, a base da nossa estrutura psíquica. Tanto a neurose como a perversão são defesas, cada uma a sua maneira, contra a psicose. Acredito que a perversão é a primeira saída de fato, o primeiro corte, mas ainda com a manutenção de um traço que é forte na psicose: o gozo. Isso se inscreve na perversão, mas não como na psicose. Inscreve-se de outra maneira, pela presentificação do objeto a, do objeto mais-gozar.

Na neurose, há também essa saída, há um corte em relação à psicose. A dimensão que dominará, porém, é a do simbólico e, portanto, a dimensão do amor ao Pai, que vem, como radical alteridade, frear o empuxo ao gozo. E a criança neurótica se atém a esse elemento que a salvou. A fantasia amorosa é uma salvação. Freud desenvolve essa idéia principalmente num artigo do ciclo da fantasia, chamado Fantasias Histéricas e sua Relação com a Bissexualidade (1908). Trata-se de um texto sobre a relação entre pulsão e fantasia. É muito curioso que ele seja do primeiro dualismo pulsional e ainda não tenha a articulação entre pulsão de vida e aquela de morte. É possível, porém, encontrar todos os elementos sustentando que a fantasia freia o empuxo ao gozo da pulsão de morte.

O problema é que, como tudo no nosso psiquismo, a fantasia tem dois lados: ela é uma salvação, mas também é uma patogenia. Pelo próprio fato de que ela nos salvou da derrelição absoluta na qual estamos fadados pela pulsão de morte, vamos nos agarrar a ela com unhas e dentes. Isso é o que Freud chama de “fixação”. Agarramo-nos à fantasia com tanta intensidade, que ela passa a ser um núcleo da nossa vida, e passamos a produzir uma série de coisas chamadas “sintomas”, que são a perpetuação constante da nossa relação com a fantasia. Ela tem, então, uma dupla face: uma face de salvação e uma face de produção patológica.

E assim como há uma báscula entre amor e gozo nas estruturas clínicas e num mesmo sujeito, ela também aparece na cultura. A cultura traduz essas fixações. A história da música popular recente é um bom exemplo disso.

Em 1966, em Liverpool, nasceram dois grandes grupos de rock: os Beatles e os Rolling Stones. Os Beatles tiveram uma existência efêmera, foram um cometa que atravessou a existência da música e deixou rastros em todos nós. Os Rolling Stones existem até hoje, dando shows no mundo inteiro, gravando discos etc. O que me chama a atenção é que os Beatles foram um grupo que cantou essencialmente o amor. Por exemplo, “All you need is love”, para tomar uma canção deles que é paradigmática dessa posição. Já a canção paradigmática dos Rolling Stones é “Satisfaction”: “I can´t get no satisfaction, But I'll try, but I'll try, but I'll try”. É a própria pulsão falando...

Talvez esses grupos – e a presença deles em nossa vida e em nossa cultura – signifiquem que o amor é mais frágil que o gozo, que o gozo é a busca da satisfação absoluta que se repete com uma intensidade impressionante, na medida em que há esse vetor insistente em nós. Tudo indica que Mick Jagger cantará e dançará até os 80 anos. E nós com ele, o que é interessante.

Mas vamos também cantar com os Beatles. Poucos de nós sabem de cor a letra de uma música dos Rolling Stones, mas muitos aprenderam inglês com os versos de John Lennon e a música dos Beatles.

Mas a música não é o único exemplo cultural que temos das fixações nos pólos da fantasia. O pólo do amor se traduz também pela religião no qual há uma fixação nele por meio dela. E o pólo do gozo se traduz pela pujança do capitalismo.

É possível perceber certa rivalidade entre religião e capitalismo, que se expressa até pela arquitetura das cidades. Em Salvador, Belo Horizonte, no Rio de Janeiro, é possível ver templos religiosos de novas seitas evangélicas construídos em frente aos grandes shopping centers. Um espelha o outro, brigando por primazia. Passamos, ali, no meio desses desfiladeiros de fixações de amor, na religião – porque a religião é uma fixação no amor: “Amai-vos uns aos outros” –, e de gozo, no capitalismo, com aqueles objetos todos que nos são oferecidos e vendidos de uma maneira tão excessiva.

Mas não é só a neurose e a perversão que se traduzem na nossa cultura, a psicose também o faz. E parece que ela o faz pela ciência. É preciso que nós, analistas, possamos dizer, com todas as letras, que a ciência está louca. A ciência enlouqueceu, perdeu os limites. Hoje, ela mistura espécies, clona os animais a bel-prazer e quer fazer isso com o ser humano. O ápice dessa loucura, desconfio, é seu intento de transformar a reprodução sexuada em reprodução assexuada. Isso é loucura. Não é à toa que, na cultura, existe a figura do cientista maluco. O cientista maluco é um traço da linguagem no inconsciente que denuncia que a ciência tem uma forte tendência à loucura, patente hoje em dia.

Evidentemente que fomos advertidos quanto a isso desde a época em que o homem foi a Lua. Ali, começava uma grande loucura, porque ir à Lua, é claro, é coisa de lunático.

A psicanálise propõe um quarto lugar da fantasia, diferente daqueles traduzidos pela religião, pelo capitalismo e pela ciência. Nem a fixação no amor, nem a fixação no gozo fálico, nem a fixação no gozo absoluto. Ela propõe um lugar do desejo, que é aquele lugar, no matema da fantasia, entre $ e a pequeno. Porque aquilo ali é um lugar, é um lugar da fantasia. E acredito que, na cultura, há, hoje, dois discursos que sustentam esse lugar: a psicanálise e a arte. A arte é também um discurso poderoso que tenta sustentar esse lugar do vazio e da falta.

NOTAS
1- Trabalho apresentado no XIII Fórum Internacional de Psicanálise - As Múltiplas Faces da Perversão, realizado em Belo Horizonte, de 24 a 28 de Agosto de 2004. Texto estabelecido, a partir da exposição oral, por Alexandre Louzada.
2- FREUD, "A perda da realidade na neurose e na psicose", in Obras completas, v.XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 229.
3- FREUD, S., "Sobre a gênese do fetichismo", in Revista Internacional da História da Psicanálise, n.2, Rio de Janeiro, Imago, 1992, p.371-387.


BIBLIOGRAFIA
FREUD, S. “O delírio e os sonhos na 'Gradiva' de W. Jensen”, in Obras completas, v. IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”, in Obras completas, v.IX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Pontuações psicanalíticas sobre um caso de paranóia (Dementia paranoides) descrito autobiograficamente”, in Obras completas, v.XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico”, in Obras completas, v.XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Neurose e psicose”, in Obras completas, v.XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “A perda da realidade na neurose e na psicose”, in Obras completas, v.XIX. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S., “Mais-além do princípio de prazer”, in Obras completas, v.XVIII. Buenos Aires: Amorrortu, 1996.
FREUD, S. “Sobre a gênese do fetichismo”, in Revista Internacional da História da Psicanálise, Rio de Janeiro: Imago, 1992.
LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.