Para Onde nos Conduz o Fim da Análise? (1)

Ana Beatriz Zuanella Cordeiro
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernambuco

"O tempo passa antes que o analista reconheça
o que faz, e o que sabe não progride senão
no só-depois do seu ato" (2).

Palavras-Chave:
Finalidade da psicanálise - Fim de análise - Feminilidade - Criação.
Keywords
Purpose of the psychoanalysis - End of analysis – Feminility - Creation.

Resumo:
O presente artigo aborda o fim de análise. Apresenta a perspectiva da finalidade da psicanálise não estar voltada diretamente para a cura, mas sim para a abordagem do inconsciente, através do vínculo transferencial estabelecido entre paciente e analista. Ao apontar para os aspectos finito e infinito de uma análise, situa do lado infinito o relançamento incessante da pulsão, balizada pelo rochedo de castração, com o qual se esbarra o paciente em fim de análise, associada ao conceito de Feminilidade, tal como apresentado por Freud em 1937. Ao mesmo tempo que aborda a impossibilidade de sustentar a ilusão de uma cura total em psicanálise, aponta para a elaboração dos restos transferenciais como responsáveis pelas ações extremamente criativas de que o analisando pode ser capaz ao término de sua análise.
Abstract
This article discourses about the end of analysis. It presents the point of view that psychoanalysis is not directly focused to achieve the cure, but to approach the unconscious, through the transferential link established between the patient and the analist. Pointing to finite and unfinished aspects of analysis, the author situats in the infinite side the uncessation of the drive, through the castration rock, that the patient find at the end of analysis, related to the concept of Feminility, as presented by Freud in 1937. At the same time that she discourses about the impossibility of sustaining the ilusion of a total cure in psychoanalysis she points to the importance of the elaboration of the transferential rests as reponsible for extremely creative actions that the patient is capable at the end of his/her analysis.

Propondo-me a refletir sobre o término de uma análise, surpreendi-me a princípio pensando dialeticamente sobre seu início.

Qual o endereçamento incial que faz um paciente a seu analista quando demanda uma análise? Geralmente há um pedido por resgatar uma felicidade e autonomia no gerenciamento de sua vida, em algum ponto da história, perdida. Aquele sujeito que era capaz de extrair prazer nas atividades mais simples do seu quotidiano está agora cerceado pelas limitações que seu sintoma lhe impõe.

Embora este cerceamento seja causado pelo próprio indivíduo e dele extraia um gozo, este também o faz sofrer. O que fazer então, para tentar modificar esta incômoda situação na qual encontra-se instalado?

A análise surge como possibilidade de remanejamento do destino pulsional que o nó do sintoma parece absorver, de forma que a pulsão encontre outras possibilidades de escoamento mais livres.

Assim começa uma análise: com a transferência do sintoma para a figura do analista, revelando toda submissão do sujeito portador do sintoma ao Outro, encarnado a partir de então na figura do analista.

O paciente inicialmente fala, em busca de um sentido para os seus sintomas. Logo, ecoa-nos a pergunta: mas que é mesmo um sintoma do ponto de vista psicanalítico? Em psicanálise ele é mais do que um distúrbio: ele é, acima de tudo, um mal-estar que se impõe a nós e nos interpela; um mal-estar que descrevemos com palavras singulares e metafóricas inesperadas. O sintoma é, antes de mais nada, um ato involuntário. Nenhum controle consciente podemos exercer sobre ele.

O sintoma se impõe, nos escapa, está pronto para se repetir, e acima de tudo, ocorre na hora exata de nos interrogar. Trata-se de um sofrimento questionador e em última instância pertinente. Pertinente como uma mensagem que nos informa sobre fatos ignorados de nossa história, diz-nos o que não sabíamos até então.

O sofrimento gerado pelo sintoma que move o paciente a procurar uma análise, incita-o a falar, e à medida que articula uma fala no processo analítico, procura inicialmente uma explicação para o seu sintoma.

Porém, sendo impossível encontrar uma resposta imediata para o que procura, nesta busca o analisando encontra, na verdade, um destinatário para o seu sintoma: o analista. A figura do analista insere-se nesse momento, pois na realidade o paciente nada sabe sobre o seu sintoma e por mais que queira se explicar, ainda teme sabê-lo. E é preciso que o analista ocupe este lugar do Outro do saber. Quanto mais o paciente fala sobre seu sofrimento, mais aquele que escuta torna-se o Outro do seu sintoma. O sintoma passa a incluir a presença do analista. De início o analista é destinatário do sintoma, passando a ser posteriormente sua causa.

É à medida que o paciente se explica que o amor transferencial se inicia e se desenvolve. Quanto mais se fala, à procura de sentido, mais se ama aquele com quem se fala. Instalada a transferência, o analista participa do sintoma do paciente. É o que Lacan denomina o Sujeito-Suposto-Saber. É acreditar não apenas que o analista tem um saber, mas que ele está na origem do seu sofrimento.

Ao analista cabe aceitar este lugar de amado que o paciente lhe atribui para que uma análise possa se desenvolver. Porém, sem jamais esquecer da origem deste amor, expressão sintomática, que está diretamente ligada a fantasias inconscientes.

Freud, em seu artigo sobre os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, já nos advertia bastante precocemente da íntima conexão entre os destinos da libido recalcada, presa a fantasias inconscientes, que não encontram outra expressão além dos sintomas. “A psicanálise não encontra dificuldades em mostrar a pessoas desta espécie que elas estão amando, no sentido ordinário da palavra, estes seus parentes consangüíneos, pois, com o auxílio de seus sintomas e outras manifestações de sua doença, ela pesquisa seus pensamentos conscientes. Nos casos em que alguém que antes fora sadio, adoece após uma experiência infeliz de amor, é também possível mostrar com certeza que o mecanismo da doença consiste num retorno da sua libido para aqueles que preferia na infância”(3). Sendo este o protótipo da experiência que será re-editada na transferência, sob a forma do amor de transferência, percebemos aí a dificuldade do neurótico no abandono do amor incestuoso, e portanto, toda sua dificuldade em relação à castração. Porém, é essencial, por outro lado, que o analista suporte todas as projeções incestuosas que o amor de transferência lança sobre ele, renunciando ao gozo de amor que o analisando lhe oferece. E várias são as maneiras do analista fazer uso deste poder que lhe é conferido, quer seja ao acreditar que possui todo o saber que lhe é depositado pelo analisando, quer seja ainda colocando-se numa posição de superioridade, deixando todo o sofrimento, desgraça e infortúnio do lado do analisando, como se a análise não fosse um processo que acontece no “entre dois” da relação analítica.

Se o analista acreditar que possui todo o saber nele depositado, acaba ensurdecendo para toda nova fala do analisando, o que não deve significar ser ignorante em relação à teoria que dá suporte à sua prática. Já o “não saber” do neurótico, por sua vez, é o desconhecimento que ele porta sobre seu sofrimento, é o que experimenta em si mesmo como a estranheza do seu sintoma.

O efeito terapêutico de uma análise está atrelado à transferência, que utiliza a linguagem como instrumento. Graças à transferência, o bem mais precioso de uma análise, entrelaçada à interpretação, paciente e analista juntos trilham o percurso de uma análise.

A análise é infinita num aspecto mas, não pode, por outro lado, escapar de sua finitude, a qual põe em cena a relação do sujeito com a castração, rochedo com o qual se esbarra no final de análise. Se ele inicia uma análise defendendo-se desse confronto, ao final do processo analítico esbarra-se inevitavelmente com ele.

Pulsão de um lado e complexo de castração do outro e teríamos aqui a dulpa que adjetivaria o fim de análise. A pulsão se situaria do lado de um relançamento infinito, balizada pelos limites com que esbarra a castração. Mas esta dicotomia não deve ser vista de forma tão simplista, como tudo em Freud. Não devemos, de forma radical, situar o infinito do lado da pulsão e o finito do lado do complexo de Castração. Pois, no fundo, a constância da força da pulsão se identifica a um desejo reconhecido em fim de análise, ao mesmo tempo que seria precipitado acreditar que o complexo de Castração está relacionado a um fim, porque as particularidades deste impasse constituem elas mesmas a ocasião de um relacionamento infinito em Freud. Como de costume em Freud, não podemos apressadamente retirar conclusões simplistas.

Já dizia ao iniciar o texto que o sintoma é antes de mais nada um sofrimento que nos põe em questão. O processo de análise põe em marcha uma cadeia incessante de outros questionamentos, constantemente renovada. Na pós-modernidade, num mundo fragmentado e marcado por certezas que se colocam como inquestionáveis, o que a psicanálise procura reinstalar é a nossa capacidade de questionamento. Mesmo que o analisando assim o faça de início acreditando que um outro sabe todas as respostas, cabe ao analista re-endereçá-las de volta a ele, para que se abra para ele sua capacidade de se pôr em questão aquela que o pôs em análise.

Mas como pode finalmente acontecer o desenlace de todos esses questionamentos do analisando que têm como origem seu sofrimento? Em outras palavras, sob a perspectiva da finalidade da psicanálise, a que nos conduz o fim de análise? A psicanálise não tem por finalidade perseguir a cura por mais que o analisando a almeje e acabe por fim até experimentando uma melhora considerável dos seus sintomas. Mas se tivermos a paciência e tranqüilidade necessárias, ela sempre vem por acréscimo, não pode ser o alvo do tratamento psicanalítico.

É em Análise Terminável e Interminável, 1937, o testamento de Freud segundo Lacan, que Freud expõe algumas de suas idéias finais sobre o processo analítico, sobretudo sobre o seu desenlace. Freud fala sobre o destino da cura, assim como sobre o destino da pulsão, de suas vicissitudes ou de suas transformações. Para ele, o destino da cura depende do destino da pulsão. É no eixo entre o eu e a pulsão que se articula a duração de uma análise. E o texto mostra justamente como há manifestações residuais: o eu tenta sempre dominar, mas não é possível porque fica sempre um resto, um pouco de sofrimento que insiste. Porém, pensando bem, há sempre algo que pode ser negociado desse sofrimento. O que fazer com esta dor, com este sofrimento que resta, o que fazer com a desilusão de uma cura total? Segundo Conrad Stein, em Fim de uma Análise, Finalidade da Psicanálise, para sair de uma análise talvez seja preciso ser criador em algum lugar, em algum sentido, é fazer algo qualitativamente novo. Para ele, há uma criança poeta no fundo de cada um de nós que pode desenvolver algo que transforme em sua obra, obra de vida, qualquer que seja ela. “Portanto, ao final há como que uma visada terapêutica que produz algo, que cria alguma coisa, mas para ver, não a partir da dor de um luto que não se faria, mas sim que já estaria pré-inscrito ou prestes a se inscrever em algum lugar” (4).

Criando sua obra, o analisando/artista faz sua inscrição em nome próprio, assume a construção do seu destino. Aceita a condição do seu desamparo fundamental.

De acordo com Maria Rita Kehl em Sobre Ética e Psicanálise, “o artista não se torna pleno de ser ao afirmar-se como autor de suas obras. Mas a função-autor, como uma das funções do sujeito, segundo a definição de Foucault, intensifica a relação do artista com o Nome do Pai, que ele transforma em nome seu ao imprimi-lo junto à obra que nomeia seu desejo” (KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002).

A capacidade de criação do ser humano está intimamente associada à sublimação, uma das vicissitudes da pulsão que continua investindo num objeto de prazer, sem passar pelo livre de recalque. Mas todo ato sublimatório visa o reconhecimento público, o alcance e o valor social da obra criada. Portanto, há um deslizamento do endereçamento do sujeito ao Outro para todos os outros que compartilham da obra final, fruto do trabalho de sublimação.

Se há um retorno narcísico para o criador que recebe o aplauso, o reconhecimento e a gratidão pelo seu trabalho, não devemos nos esquecer que esta obra tem uma função social maior, que atravessa não apenas o artista, mas todos aqueles que usufruem da sua obra.

Ainda segundo Maria Rita Kehl, o analisando descobre ao final da análise que ao analista também falta o ser e toma a seu cargo o enigma do desejo. Identifica-se com o trabalho de investigação do psicanalista, resultado de uma árdua elaboração sobre a impossibilidade do eu sustentar certezas inquestionáveis.

Penso que o conceito de feminilidade em Freud, tal como apresentado por ele em 1937, em Análise Terminável e Interminável, nos possibilita pensar sobre a abertura do eu para além das certezas narcísicas cristalizadoras e cerceantes.

No último capítulo do referido texto, Freud apresenta o conceito de feminilidade associada ao impasse do rochedo de castração com que se esbarra no final de análise. À medida que o analisando elabora a rivalidade fálica com o analista, o rochedo de castração, antes barreira incontornável para o fim de análise, acaba por introduzi-lo. Estaria aí colocado o relançamento infinito de uma análise, a partir do conceito de feminilidade visto sob o prisma da incompletude que porta todo ser humano?

Penso que poderíamos postular a feminilidade como o constructo que sustenta esta incessante busca, a eterna construção de uma obra sempre passível de ser aperfeiçoada, aquela que o analisando/artista se propõe a elaborar com os restos de sua análise. Para tanto é preciso manter uma postura de eterna abertura para o novo e principalmente para a aceitação das diferenças.

A feminilidade sob esta ótica colocada por Freud em 1937, diferentemente da proposta em 1933 na Conferência Feminilidade, não se constitui a partir de um aprisionamento do sujeito ao pai, no sentido mesmo de uma dívida eternamente impagável. Se a lei paterna não cessa de se inscrever quotidianamente é para nos lembrar de que somos atravessados por uma ordem simbólica que nos transcende, abandonando a ilusão de que tudo começa e termina em nós mesmos. É com a feminilidade que podemos prosseguir a transmissão em psicanálise, pensada também como continuidade de um legado de que somos herdeiros, sem nunca perdermos de vista o estilo próprio, o respeito à diferença e a necessidade de renovação constante, mas preservando a fidelidade ao princípio que nos fundou: o pensamento freudiano.

Muito podemos construir respeitando a ética da psicanálise: “não ceder nunca do seu desejo”.

A travessia da fantasia no momento conclusivo de uma análise põe em cena o que há de mais íntimo no sujeito. Constatamos a carência simbólica que anula os limites da realidade diária e assim seguimos criando, sonhando, e sabendo, sobretudo, que a construção do amanhã não está garantida a priori, mas não precisamos mais nos encarcerar ao nó do sintoma pela impossibilidade que tínhamos, no início, de assumir o enigma do nosso desejo. “O amanhã não pertence a ninguém, mas se você quiser, ele pode ser seu”.

Com esta frase de autor desconhecido encerro este ensaio, advertida de que desconhecido também é o nosso amanhã. Sua apropriação hoje sempre nos escapa, e tudo o que nos resta fazer é elaborar o que vivemos hoje na esperança de inscrevermo-nos no amanhã só-depois do ato que a ele nos conduz.

Notas
1- Trabalho apresentado no IV Encontro Latino-Americano dos Estados Gerais da Psicanálise em São Paulo, de 4 a 6 de Novembro de 2005.
2- NASIO, Juan-David: Os sete conceitos cruciais da psicanálise, 1989, p
3- FREUD, S., Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), ESB, v.VII, p. 234-235..
4- DIDIER-WEILL, Alain (org). Fim de uma análise, finalidade da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

Bibliográficas:
ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE. Como terminam as análises. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
CALLIGARIS, Contardo. Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
DIDIER-WEILL, Alain . Fim de uma análise, finalidade da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). ESB v. VII, p. 234-235. Rio de Janeiro: Imago, 1969.
FREUD, S. Análise terminável e interminável. ESB, v.XXIII, p. 241-287, v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969
FREUD, S. Conferências introdutórias sobre psicanálise – Conj. XXXIII. ESB, vXXII, p. 113-134. Rio de Janeiro: Imago, 1962
KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MOSCOVITZ E GRANCHER. Para que serve uma análise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
NASIO, Juan-David. Lições sobre os sete conceitos cruciais em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
POMMIER, Gérard. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.