Anchyses Jobim Lopes *
Médico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ, Mestre em Medicina (Psiquiatria) pela UFRJ, Mestre em Filosofia pela UFRJ, Doutor em Filosofia pela UFRJ, Sócio Efetivo e Psicanalista CBP-RJ. Professor de cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia desde 1984.
Os pássaros
retornam
sempre e
sempre.
O tempo cumpre-se. Constrói-se
a evanescente forma
ser
e
ritmo.
Os pássaros
retornam. Sempre os
pássaros
A infância volta devagarinho. CICLO (II)
Orides Fontela
Palavras-Chave:
Psicanálise - Estética - Música - Linguagem - Tempo - Gozo Keywords: Psychoanalysis – Aesthetics – Music – Language – Time – Enjoyment
Resumo:
A música como a arte menos interpretada pela Psicanálise. Algumas das idéias de Didier-Weill sobre Psicanálise e música. A hipótese de que a linguagem musical seja a origem da linguagem verbal. A questão do tempo na música. A hipótese contrária, a de que a linguagem verbal seja a origem da linguagem musical e de todas as demais artes. A música como fonte do sentimento oceânico mencionado por Freud e do gozo além do fálico descrito por Lacan.
Abstract: Music as the artistic form least interpreted by Psychoanalysis. Some of Didier-Weill's concepts about music and psychoanalisys. The hypothesis that musical language may be the origin of verbal language. Music and time. The contrary hypothesis, that verbal language may be the origin of musical language and all other artistic languages. Musica as origin of the oceanic feeling mentioned by Freud and as origin of the enjoyment beyond the phallic described by Lacan.
Introdução:
Freud não era amante da música, pelo contrário, o fundador da Psicanálise lhe tinha certa ojeriza. Compreensível, tanto pelo apego de Freud à palavra, quanto por seu repúdio a qualquer irracionalismo. Não verbal, produzindo emoções incompreensíveis e sentimentos oceânicos, a música constitui a antítese do temperamento reservado, metódico, controlador e um tanto obsessivo de Freud. Conheceu Mahler em uma curta análise, mas é certo que jamais ouviu alguma de suas composições. Em quase todos nós música é capaz de causar êxtase. Quando indagado por Romain Rolland se o sentimento oceânico – do eterno, ilimitado, sem fronteiras – não poderia ser a origem psicológica das religiões, Freud responde que não podia descobrir qualquer traço deste sentimento oceânico em si mesmo (1).
Quanto a Melanie Klein, embora tenha escrito sobre um romance, sobre uma trilogia da tragédia grega e sobre filmes, não conhecemos que alguma vez tenha procurado trabalhar sobre a música. Lacan seguiu a trilha de seus ilustres predecessores, seu modelo de arte e exemplificação para suas idéias é a literatura. Concessões feitas por Lacan ao surrealismo nas artes plásticas, a obras como a de Joyce que penetram na própria construção da linguagem e a alguns exemplos do cinema.
A repulsa ou indiferença dos principais nomes da Psicanálise em parte explica por que, apesar da enorme influência que a Psicanálise teve para a compreensão de todas as outras artes, assim como serviu de fundamento para novas propostas artísticas, como o surrealismo, a música permaneceu-lhe um continente negro. Ao longo dos mais de cem anos da história da Psicanálise, contam-se nos dedos de uma mão os autores que se atreveram a tentar psicanalisar a música (2). Há até duas décadas, os autores que se atreveram a fazê-lo foram pouco além da questão da catarse e da imaginação evocadas pela música.
A Psicanálise ter passado ao longo da música também é explicável pelo fato que, tendo a palavra como fulcro, o não-verbal ficasse em segundo plano. Mas só parcialmente explicável. Dentre as qualidades universais do homo sapiens está sua musicalidade. Não há cultura sem ela, não há criança que não: cantarole, dance ou brinque com sons. Mesmo um bebê no colo freqüentemente movimenta seu corpo todo, procurando acompanhar o ritmo de uma música. Onde fica, quando aplicada ao fenômeno musical, a Lei de Haeckel, tão adorada de Freud: a ontogênese segue a filogênese. Como pode cada criança trazer em si o gosto aparentemente inato pela música? Seria o fenômeno musical parte integrante da antropogênese? Talento já é outra questão, ainda mais inexplicável pela Psicanálise. Dentre todos os autores que trabalharam ou trabalham sobre Arte e Psicanálise, sobre os quais não nos deteremos, curiosamente encontramos apenas um, contemporâneo, dedicado à compreensão da música pela Psicanálise e que, talvez em ter se apercebido, coloca tanto uma quanto outra diante de interessantes questões: Alain Didier-Weill (1997, 1997, 1998, 1999). Utilizaremos algumas de suas formulações.
Obriga-nos uma outra confissão: os grandes autores da Estética, como disciplina de Filosofia da Arte, quando relidos com cuidado, também não conseguiram explicar a música. Permanece a mais enigmática, talvez por ser a mais profunda, de todas as artes. Os que se aventuraram a desbravá-la – Hegel, Schopenhauer, Nietzsche – não solucionaram o mistério e abriram mais um problema: a relação entre a música e a palavra.
Entramos no domínio em que, por bem ou por mal, Filosofia e Psicanálise se confundem. A ontogênese segue a filogênese, enunciado tão caro a Freud. Na Filosofia temos o conceito pré-socrático de Arché – princípio, origem, tanto no passado como o que sustenta e une o todo no presente e o dirige ao futuro. É a música a Arché e o Haeckel da palavra, ou o contrário? Quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? A leitura de Didier-Weill supõe que a música veio primeiro, o que talvez questione o próprio inconsciente como linguagem. Mas vamos pelo princípio.
O Ovo ou a Galinha? – No Princípio Era o Som
O primeiro pensador a considerar a música como mais que um apêndice a sua teoria estética foi Arthur Schopenhauer. Não apenas a levou em conta em seu sistema filosófico, mas a tornou o núcleo de sua metafísica. Em O Mundo Como Vontade e Representação (2005), sua obra magna e o mais sólido pilar do pensamento romântico alemão, que irá desembocar no Unbewusste de Freud, a arte possui prioridade sobre a ciência. Só através da arte atingem-se as idéias, que sintetizam as representações produzidas pela Vontade cega e irracional. Contudo, a verdade atingida por meio de todas as manifestações artísticas, excetuando a música, embora superiores ao conhecimento da ciência, necessitam um movimento de dupla mediação. A Vontade objetiva-se através das idéias (platônicas), da quais as obras de arte permitem acesso ao ser humano: da Vontade às idéias, destas às obras de arte.
Entretanto, no sistema schopenhauriano a música se distingue de todas as outras artes, carece do duplo movimento em direção à Verdade. A música: trata-se de uma imediata objetivação, de uma cópia direta de toda vontade. A música, portanto, de modo algum é semelhante às outras artes, ou seja, cópia de idéias, mas CÓPIA DA VONTADE MESMA, cuja objetividade também são as Idéias (3). Emanação direta da Vontade, Schopenhauer postula a música como uma linguagem universal anterior a toda outra linguagem, plástica ou verbal. Todas as manifestações artísticas possuem o dom de momentaneamente liberar o ser humano do individual, do querer, do desejar, que lhe é inato por também ser um ente causado pela Vontade. Mas esse dom pertence muito mais à música que às outras formas de arte. Neste estado de liberdade do desejar, de submissa passividade, a obra é quem olha e penetra o espectador. Esta invasão, este sentimento oceânico, ao qual benignamente acedemos, possui o dom de revelar não apenas o que seria a fonte de todo existir, como sua real intensidade. E então o espetáculo trágico da existência, as contradições externas e da própria Vontade em si mesma podem ser contempladas e aceitas.
Todas estas concepções foram retomadas por Didier-Weill a partir de um prisma psicanalítico. A música não é escutada a partir de uma deliberação interna que me permita dizer um não. Trata-se de um sim absoluto que coloca-nos sobre a pista do que é o sentido verdadeiro da Bejahung (4). Constitui o acesso a um Real que é intraduzível pela palavra. Se dependesse apenas da música não viveríamos em um mundo clivado entre palavra e música, não haveria um sujeito sempre barrado. Anterior à palavra, a música exprime uma linguagem universal. E no infans é a pulsão invocante, a mais próxima da experiência do inconsciente (5), que ao mesmo tempo permite emergir o sujeito do inconsciente, que existia em potência, mas não em ato, e também causa que seja dito um segundo sim, interior, em resposta ao chamamento do Outro. Ao longo de toda sua existência, a música relembra esta Bejahung primordial, relembra que há um parentesco entre o sujeito e o Outro, por meio do qual a mais desconhecida das canções, por exemplo, recupera a comemoração inicial do sim e a banda moebiana de uma Arché universal. Para Didier-Weill a experiência trazida pela música é próxima da experiência mística, na qual sou oceanicamente contemplado pelo Outro, mas de modo oposto ao da invasão do Outro e de seu olhar medúsico como psicose. A música permite que me contemple e me reconcilie com as contradições, os conflitos, do trágico universal, em uma grande celebração da existência.
Na seqüência da filosofia alemã do século XIX, embebida no Romantismo e cada vez mais transformando o Trieb - termo muito utilizado por Kant - ora na direção do irracional, ora na daquilo que está aquém ou além da consciência, Friedrich Nietzsche foi o grande leitor e crítico de Schopenhauer. Crítico quanto à apologia schopenhauriana do deixar-se abandonar à contemplação da Vontade. Crítico quanto à passividade e o nihilismo do procurar não desejar, assim como também o não lutar contra a natureza última do mundo. Nietzsche criticou tendências que refletiam tanto preceitos da filosofia grega, quanto de influências orientais em Schopenhauer. Mas quanto à música, Nietzsche pode ser visto como seu melhor leitor e principal discípulo. Tanto que sua primeira grande obra, para muitos a mais importante, deu-lhe o título de O Nascimento da Tragédia a Partir do Espírito da Música (1992).
Mais conhecida como A Origem da Tragédia, neste livro a música é schopenhauriamente a origem de todo existir, é ela que se objetivando em imagens, através do sonho cria as figuras das quais nasceram os dois deuses gregos originais: Apolo e Dioniso. Corporificada por deuses que sintetizam forças antagônicas e contraditórias – um da forma e do equilíbrio perfeito, o outro do sentimento oceânico e do arrebatamento – a música desvela a diversidade e o conflito que se desdobra a partir do que Nietzsche denominou Uno Primordial. Do confronto entre Apolo e Dioniso ocorre não a soma, mas a multiplicação do Trieb originário.
Em sua teoria sobre a origem do teatro grego, Nietzsche defendeu que: primeiro existiria um êxtase místico em honra da Dionísio, no qual toda a polis participava, depois o êxtase místico tornou-se uma procissão, onde só uma minoria cantava e dançava, enquanto a maioria teria sido reduzida ao papel de espectadora, até que finalmente a procissão foi confinada entre montanhas. Das encostas nasceu a platéia, que assistia a um coro que continuava com a função de cantar e dançar, enquanto um ator passou a representar os arquétipos em que se desdobram os infinitos conflitos do Uno Primordial. Além de cantar e dançar, o coro passou a falar, assim como da mímica passou o ator à fala. O diálogo surgiu quando a skené passou a ser dividida com um segundo ator. O êxtase místico original, semelhante ao das bacantes, e que em sua contrapartida masculina os participantes se vestiriam como sátiros, seria repleto de visões e sentimentos oceânicos. Constituía uma ameaça ao poder e à religião olímpica oficiais. O nascimento do teatro surgiu como uma domesticação parcial. Mas o canto e a dança, executados pelo coro vestido de sátiros, alternavam sua função com a da fala, ora dirigida à platéia, ora aos atores. A música e da dança transformando-se em fala e diálogo, o êxtase original cedendo a breves momentos de catarse e gozo estético. O nascimento do teatro comemoraria miticamente o próprio nascimento da palavra, permanecendo a arte no terreno comum entre o imaginário e o simbólico.
A linha de pensamento estabelecida por Didier-Weill corre paralela a este trilho. Sua grande contribuição é desenvolver a questão da pulsão invocante, que fora apenas esboçada por Lacan. Por que se esta pulsão, que é quem traz à tona o sujeito, é o traço unário, ele é inscrito primeiramente como uma forma musical. A voz materna não é invocante pelo que diz, mas pelo tom – diga-se afeto – do que diz. E o invocado não permanece como uma mera resposta – informação ou reflexo –, que fosse apenas uma voz, um som, um movimento labial mã (que em todos os idiomas assemelha-se a palavra que designa mãe), mas como toda uma abertura à existência. O que é invocado, também é gesto, que com o crescer do infans torna-se dança, o prazer de comemorar pelo ritmo a leveza do corpo. Ou mesmo a embriaguez dionisíaca, prazer que todas as crianças obtêm girando até perderem o equilíbrio. Do som original invocado, que com o crescer do infans é decomposto em fonemas e repetido em sílabas, originar-se-ia a linguagem. A mesma trilha nietzschiana, da música até a palavra. Palavra que pode colocar-se no extremo de uma mera informação ou de um não-dizer – a palavra vazia, sem afeto, sem transferência –, ou ir até o outro extremo, a leitura literária, cujo núcleo é a poesia – a palavra plena, que reúne imagem e sentido, catarse e insight.
Há um substrato do mito judaico no pensamento de Didier-Weill. No princípio era o Verbo (ou o Logos, como foi traduzido na Septuaginta), não foi uma palavra, muito menos um significado, mas o significante o mais puro de todos, capaz de inscrever um traço no Nada, dele invocar a luz e todo movimento que nela se mostra. O verbo (com minúscula mesmo) só veio muito depois, com a divisão do sujeito, já assediado pelo verbal, que encobre tanto quanto desvela. Embora Didier-Weill deixe bem claro as raízes de suas idéias quanto ao judaísmo, sua intervenção num dos últimos seminários de Lacan (L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre) produziu resultados aparentemente opostos aos princípios do mestre (teria sido propósito de Lacan, ou criou um monstro à semelhança de Frankenstein?): o inconsciente se estrutura como linguagem, não a saussurianamente verbal, a linguagem nietzschianamente musical.
Que a música seja uma linguagem, não há dúvida (6). Altamente sofisticada, representada por um número finito de sinais gráficos cuja combinatória é infinita, a música verdadeira não é aquela da canção da dor de cotovelo (embora para isso seja muito útil), nem a cria uma historinha na cabeça do ouvinte. Da canção popular ao mais abstruso dodecafonismo, a música verdadeira é a mais abstrata das linguagens: matemática e da lógica dos sentimentos e das paixões. Os pitagóricos há mais de dois mil anos trabalharam a relação entre música e matemática. No século XX Susanne Langer (7), filósofa neokantiana especialista em lógica moderna, trabalhou sobre a relação entre lógica e música. Foi Langer também, e não algum freudiano, quem formulou a hipótese de na pré-história da humanidade (ainda em uma pré-humanidade) terem sido o canto e a dança origem da linguagem verbal. As expressões coletivas da sexualidade e a agressividade, originalmente desagregadoras, tornaram-se instrumentos a serviço da coesão do grupo. Com os séculos (quantos milênios?) a música foi decomposta em sons, os sons viraram fonemas e começaram a ser repetidos com a finalidade de designarem objetos e ações. As ações motoras da dança diminuíram de intensidade e foram transformadas em gesto e mímica. A laringe humana com sua infinita possibilidade de emitir sons, sofisticação de laringe que primo primata algum possui sequer vestígio, corresponde à gigantesca área cortical, que junto com as áreas de controle das mãos e do rosto tornam grotesco o homúnculo de Penfield, figura que é uma representação gráfica de nossa humanidade, extensas áreas corticais utilizadas para: o canto, o gesto e a mímica facial.
Logo, a ontogênese apenas recupera a filogênese.
O Ovo ou a Galinha? – No Princípio Era o Verbo
Na Estética de Hegel a poesia é descrita como ápice da arte romântica a qual, por sua vez, após a arte simbólica e a arte clássica, constrói o cume de mais uma das tríades características de sua filosofia. Para Hegel a poesia está ontologicamente acima da música. Insistimos neste ponto: o que caracteriza mais particularmente a poesia é o poder de submeter ao espírito e às suas representações o elemento sensível de que a arte já tinha começado a ser libertada pela pintura e pela música (8). Deste modo a poesia é a arte mais despojada de um elemento material, a música ainda se utiliza do som, assim como tendo sua origem na arte romântica, a música assume a ênfase cristã no valor infinito do indivíduo e do livre-arbítrio. A arte da poesia é a arte universal do espírito que se tornou livre e cuja interioridade pretende realizar-se completamente, confundindo assim dizer com o pensamento, tal como se forma na fantasia (...) de modo que a realidade exterior dê lugar à realidade interior e que a objetividade exista apenas na própria consciência (...) (9).
É patente a influência da leitura das obras de Hegel na obra de Martin Heidegger, e de ambos sobre as idéias de Lacan, o qual, inclusive, foi um dos primeiros tradutores do filósofo existencial alemão para o francês. Apesar de Heidegger ter procurado ao máximo distanciar-se da força de atração que suas idéias – assim como as da fenomenologia e do existencialismo – tiveram sobre a psicologia do século XX, o destino foi-lhe ingrato. Heidegger sempre teve por meta o Ser, o ontológico em distinção ao ôntico. Mas até terapia existencial-humanista (apesar desta ter muito mais é de gestaltista) virou estágio básico de currículo mínimo de curso de graduação em Psicologia no Brasil. Um dos motes principais de Heidegger é o de que a linguagem verbal é que estrutura o ato de pensar e não o ato de pensar que origina a linguagem verbal. Usualmente acreditamos que, quando a criança mais grandinha já pensaria bem direitinho, então começaria a balbuciar as primeiras palavras. Trata-se de uma idéia ingenuamente naturalista, como a idéia trazida pela observação empírica mais óbvia, de que o sol é que gira em torno da Terra. Para Heidegger é a palavra que origina o pensamento e não ao contrário, como ainda pensa a velha metafísica (10). Palavra que em seu fundamento ontológico é palavra poética (poesis=criação).
Dito em psicologês, nascemos imersos em um mundo de linguagem verbal. Talvez até antes, uma vez que cada vez mais a Psicanálise dirige-se ao pré-natal. O infans intui que se trata de um universo de sons repetidos, articulados ao longo do tempo e capazes de comunicar quase tudo. Noam Chomsky e seus seguidores, notadamente Steven Pinker (1995), embasaram pelo biologismo americano, que as estruturas cerebrais da linguagem, apesar de todo o inatismo que possam ter, conduzindo até a certas estruturas universais da linguagem, necessitam deste universo circundante da palavra para não se atrofiarem: a palavra como alimento básico para o crescimento dos neurônios.
Lacan, dentre suas formulações, colocou inicialmente o Simbólico como o único capaz de domar as invasões permanentes do Real e também furar o narcisismo primário. O Simbólico como lugar do verbal, sabe-se das conseqüências desastrosas se é danificado em sua formação primordial: a forclusão. Dano de dentro ou de fora? É uma dopamina demais, como quer a velha psiquiatria, ou o Nome-do-pai “de menos”, que a experiência clínica com psicóticos, com suas famílias e com seu meio social nos leva a deduzir? Um buraco na teia do Simbólico produzido por um buraco na linguagem, a qual já antes de nascer está imerso o pequeno ente, buraco em que: nem sujeito, nem barra, nem outro, nem Outro podem se configurar. Diria Didier-Weill, em continuação ao último Lacan, que também pode não ter ocorrido o chamamento da pulsão invocante.
Aranhas saudáveis podem construir teias de geometria e nodulação impecáveis, uma excelente metáfora para a noção de estrutura. Aranhas alimentadas experimentalmente com alucinógenos produzem teias sem qualquer rigor, ora muito densas, ora com buracos enormes. Constituído um buraco ou um ponto opaco numa teia caótica, tudo se continua de modo falho: o mundo externo (com a inserção de alucinações e delírios), corpo (com surgimento dos sintomas catatônicos, de transformações corporais schreberianas e kafkianas), pensamento abstrato (com a regressão ao pensamento concreto ou desagregado). Coisa alguma se estrutura de modo satisfatório, ou quando dá a aparência de ter se estruturado, basta um peteleco para se desfazer. Tal uma mosca, ora o Real é afugentado pelo nó opaco, ora passa pelo furo exagerado da teia.
Nesta direção da trilha a linguagem verbal é que seria o protótipo de qualquer linguagem, inclusive daquelas das diversas expressões artísticas, mesmo a música. Não existe uma música primordial que escutamos e, depois, muito depois, é que passamos a falar. Qualquer tipo de linguagem é constituído por um número finito de elementos, combinados de acordo com um número mínimo de regras, mas criando uma combinatória infinita. Para qualquer linguagem as regras podem ser acrescidas ou transgredidas, mas sempre dispõe os elementos ao longo do tempo. No caso da linguagem verbal, a sintaxe constitui a disposição das palavras na frase e das frases no discurso, bem como da relação lógica das frases entre si. Discurso, termo que provém do latim discurrere: percorrer, atravessar. Bem, leva-se algum tempo para percorrer ou atravessar o que quer que seja. Para Igor Stravinsky (1996): a música pressupõe, antes de tudo, certa organização no tempo, uma cronomia, se me permitem esse neologismo (11). Se o termo cronos é traduzido por tempo, nomos pode ser traduzido por: parte, divisão do território, lei, canto. Utilizar os conceitos de sintaxe e ou de cronomia é apenas dizer que, tudo o que não for apenas imagem e totalidade instantâneas, portanto constituindo uma linguagem, só pode ser construído por que há tempo. Heideggerianamente: tempo é Ser, instaurado pela palavra.
Sendo assim, é por que falamos que podemos escutar música, que podemos intuitivamente compreender a importância de uma linguagem que não sucumbe ou reforça um sujeito dividido - $ - mas sim o faz se sentir em casa sem estranheza. Nunca três minutos são tão aproveitados quanto através de uma música que nos atraia. É por que falamos, e todo discurso verbal constrói-se sobre uma sucessão temporal, que podemos sentir o efeito de sons cuja finalidade pode ser apenas a de fornecer novas disposições temporais, benignas (em oposição às malignas da depressão e do tédio, em que o tempo pára). A Bejahung inicial, re-comemorada pela música, é a da instauração deste tempo primordial, em que os signos instantâneos passaram a significantes deslizando ao longo do tempo. Que os significados sejam: o conceito concreto de cadeira, uma fria formalização matemática ou todo o potencial dos afetos e paixões; tudo isto é secundário à instauração do tempo e do Ser. Nesta trilha, apesar de a música possuir por Arché a palavra, torna-se invocadora da forma de todas as disposições afetivas, o que traz em si o bônus de não dividir o sujeito, vantagem que é aproveitada por todas as outras artes. Principalmente aquelas formas artísticas que a conjugam novamente com a palavra: o canto e a poesia. De modo mais genérico, a não divisão do sujeito justificaria que a música: o reconcilie e o integre com o trágico inerente ao mundo externo, que integre corpo e mente por meio da dança e do canto e que, embora perfeitamente abstrata, seja a mais íntima e sensual de todas as artes.
Conclusão: Contra Jacobus
Consideramos a trilha que parte de Hegel a mais consistente com o pensamento de Lacan. Quanto à trilha de Didier-Weill, fica patente que segue aquela oposta, a que se inicia por Schopenhauer. Como já foi mencionado, parece-nos curioso que tenha sido o próprio Lacan quem solicitou de Didier-Weill uma intervenção no seminário L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre (12). Assim como a questão de que o inconsciente estruturado como linguagem coloca a questão, qual linguagem? Uma linguagem saussurianamente verbal? A música como mãe de todas as linguagens? Uma matriz chomskyana biopsicossocial para todas as estruturas possíveis da mente?
O problema de que a música seja a origem da palavra, na trilha Schopenhauer-Nietzsche-Didier-Weill, ou de que a palavra seja a origem de todas as outras linguagens, na trilha Hegel-Heidegger-Lacan, pode muito bem ser um falso problema, uma antinomia. A primeira trilha pode seguir a linha do tempo cronológico, tanto no sentido da antropogênese, quanto de sua recuperação no tornar-se humano de qualquer infans. Neste caso conseguimos uma conciliação com a tão querida Lei de Haeckel: a ontogênese segue a filogênese. A segunda trilha, uma vez instaurada a linguagem, pode referir-se ao tempo lógico, descrevendo as etapas em que a compreensão de qualquer tipo de linguagem tanto pressupõe a linguagem verbal, como pode a ela retornar.
Uma questão aparentemente anedótica, que reduz o problema que a música formula para a Psicanálise apenas ao biográfico, também pode ser torcida de modo a nos dar uma pista importante. A ínfima escuta do apelo musical na obra de Lacan, em que pese a formulação nodal da pulsão invocante, parece seguir a não escuta do mestre Freud em sua incapacidade de experimentar algum sentimento oceânico. Refletindo sobre a origem da tragédia segundo Nietzsche, sobre o êxtase dionisíaco e o das bacantes, Didier-Weill aponta para o laço desse enraizamento primordial do sonoro com o feminino (13). Portanto estamos no continente negro de Freud – que diagnosticamos como “o racional” – um iluminista do século XVIII, atirado no caos do século XX, e tentando compreender a barbárie tecnológica.
Através de sua capacidade de atingir um gozo estético, seja a música origem da palavra ou o oposto, ovo ou galinha torna-se uma questão um tanto bizantina; importante é se perguntar em termos psicanalíticos: qual gozo? O termo gozo estético pertence à Filosofia da Arte há dois séculos, sendo seu estudo o objeto principal das doutrinas estéticas a partir de Kant, contudo podemos assimilá-lo ao de gozo feminino em Lacan, gozo mais-além do falo, aquém ou além da clivagem do sujeito, semelhante à experiência mística. Mas, apesar de existirem semelhanças, há um diferencial entre o gozo estético da música e o gozo feminino, a cronomia, a instauração do tempo, mesmo de um tempo primordial, conduz ao início de toda falta. Todo tempo instaura o momento seguinte, toda nota conduz à sua sucessora. Mesmo que houvesse uma música cronologicamente infinita, o tempo constrói o surgimento da expectativa e só se espera algo que falta, donde a música, mesmo que o sujeito e o Outro se identifiquem ou fundam, talvez não existisse se em si não contivesse também um objetinho a. Talvez o gozo conduzido pela música seja o único em que a e tempo estejam reconciliados, em que o gozo não fálico escape de sucumbir à pulsão de morte, à dor e à aniquilação a que o dionisíaco conduz em sua invocação do Uno Primordial.
Notas
** Trabalho parcialmente apresentado na IV Jornada Centro-Sul do Círculo Brasileiro de Psicanálise - XXIII Jornada do Fórum do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - I Jornada de Psicanálise e Arte do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção RJ, Belo Horizonte 22 a 24 de Setembro de 2005.
1- FREUD,Sigmund (2002), p.4.
2-KAUFFMANN,Pierre (1996), no Dicionário enciclopédico de psicanálise, verbete Psicanálise e Música, apresenta a melhor síntese que conhecemos.
3- SPHOPENHAVER, Arthur (2005), p. 338; o trecho em maiúsculas é do próprio autor.
4- DIDIER-WEILL, Alain Os três tempos da lei, 1997, p. 237.
5- LACAN, J, Les Quatres Concepts Fondementaux de la Psychanalyse citado por Alain Didier-Weill.In Os três tempos da lei, 1997, p. 238.
6- Apesar de nossa tese incondicional da música como linguagem, há controvérsias; consultar: S. R. de Oliveira, (2002)
7- LANGE, Suzanne K. (1981), p. 33-56.
8- HEGEL, G. W. F. (1997), p.169.
9- HEGEL, G. W. F. Curso de estética o sistema das artes (1997), p. 363-364.
10- Citação nossa de M. Heidegger.
11- STRAVINSKY, Igor (1996), p.35.
12- DIDIER-WEILL, Alain (A nota azul, 1997), p.85-104
13- DIDIER-WEILL, Alain (1999), p. 48.
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