PATRICK ALMEIDA: Dr. Cottet, na sua opinião, quais são os problemas contemporâneos
a respeito dos quais os especialistas devem interrogar-se em relação
ao crime?
SERGE COTTET: Este é um problema que cabe aos peritos da psiquiatria. E, entretanto,
os psiquiatras do domínio da criminologia estão cada vez menos
preparados para fazer do ato criminoso uma conseqüência do delírio
e da psicose. E, cada vez mais, observa-se uma dissociação entre
ato criminoso e delírio, tanto mais que são os crimes sexuais
que parecem os menos ligados à psicose e que dão, ao contrário,
todo um novo campo ao conceito de perversão. Por exemplo, para alguns
especialistas, como o sr. Zagury1
(do qual você verá uma entrevista no próximo número
de Mental2), o ato criminoso
é uma defesa contra a psicose: é para evitar o desencadeamento
psicótico que ele passa ao ato, como se o ato não fosse a conseqüência
mais lógica da perseguição, por exemplo.
P.A.: No seu curso “Clínica do ato ou comportamentalismo?3”,
o senhor chamou a atenção para o fato de que Freud, infelizmente,
pouco se interessou pelo ato criminoso real. Para ele o crime é o crime
literário, o crime mítico (seria o Édipo, os irmãos
Karamazov4, Totem e tabu5).
Lacan, entretanto, começou a sua carreira de psiquiatra pela criminologia,
uma vez que sua tese de medicina6
é sobre o ato criminoso7.
Em quê a psicanálise lacaniana pode contribuir para o estudo da
criminologia hoje?
S.C.: Para Freud,
não é somente o crime literário: é o crime universal,
mítico, mas real mesmo assim – o assassinato do pai é o
fundamento da sociedade. Logo, isto quer dizer que para Freud a possibilidade
do criminoso está presente em cada um de nós. É necessário,
por conseguinte, a normatividade edipiana, de alguma maneira, que canalize ou
que apague o criminoso em nós. De que maneira a psicanálise lacaniana
pode contribuir para o estudo da criminologia atualmente? Primeiro aprofundando
a teoria da psicose e aplicando-a ao crime do qual Lacan não fala. A
especialidade de Lacan é o crime paranóico – não
é o crime perverso, não é o crime de massa. Mas podem ser
encontrados, em outros momentos do ensino de Lacan, conceitos diferentes desses
dos anos 30, como o conceito de objeto a, de extração do objeto
a, de passagem ao ato etc8. O
conceito essencial, porém, dos anos 30 era o de “autopunição”9:
o criminoso atinge ele mesmo10em todo desconhecimento11.
Imediatamente, deixa-se de lado todo um setor da criminologia, como crimes perversos,
crimes de massa, crimes imotivados, ou esquizofrênicos de Guiraud12
(já presente na época). Devem-se descobrir na obra de Lacan conceitos
novos que permitam pensar estes atos para-além do narcisismo suicida,
além de uma concepção do crime como estádio do espelho13.
Exemplo: o livro de Francesca Biagi-Chai14
sobre Landru15.
P.A.: A clínica
psicanalítica se opõe ao “perfil psicopatológico”
(ao caráter, traços do futuro criminoso), quer dizer, a uma definição
de uma personalidade ou de distúrbios da personalidade a partir dos indicadores
objetivos a partir dos quais se poderia prever o ato. De que modo, então,
a psicanálise operaria em relação à criminologia?
S.C.: No primeiro
Lacan, efetivamente, o crime é deduzido da personalidade; esta é
estruturada como defesa contra a pulsão criminosa; esta tensão
mesma e os modos de resistência fazem com que personalidade e paranóia
terminem por ser equivalentes. Para Lacan, é esta tensão que permite
prever o crime. E isso são os anos 3016.
O problema é que existem criminosos que não têm, de forma
alguma, a personalidade de um psicopata – em que o estabelecimento de
um perfil é impossível – e na qual o ato parece estar completamente
separado da personalidade: seja em momentos de ação passional
(como o crime passional, embora o sujeito não seja de forma alguma paranóico),
seja um fenômeno elementar, uma alucinação, divida suficientemente
o sujeito para que ele passe ao ato, apesar de que nada na sua personalidade,
precisamente, tivesse permitido prevê-lo. Há uma distorção
nisto, entre o fenômeno delirante e a personalidade. Por exemplo, Francesca
Biagi mostra que, antes da guerra, Landru não apresentava nenhum traço
de criminoso. Era um pequeno trapaceiro que continuava preocupado com o bem-estar
da sua família, um pequeno burguês que cometia transgressões,
mas nada fazia supor que ele pudesse ser um criminoso – ele não
tinha uma personalidade criminosa. Lacan tinha livrado da psiquiatria francesa
o conceito de “criminoso nato”17
de Lombroso18, mas isto tem uma
tendência a retornar hoje.
P.A.: Poderíamos
compreender o ato criminoso a partir da primeira tese de Lacan relativa à
aplicação do estádio do espelho à agressividade
narcísica: “é a ti mesmo que atinges?”19.
S.C.: Evidentemente,
existem crimes paranóicos que têm exatamente esta estrutura. O
sujeito não sabe que, golpeando um rival, ele golpeia o seu ideal. Esta
é a primeira tese freudo-lacaniana que vale sobretudo para a paranóia,
para o ciúme delirante onde o que prima é o interesse para com
o rival – e que é o que Freud chamou “a homossexualidade
na paranóia” e, em Lacan, o interesse para com o rival não
se confunde com o gozo homossexual; é a paixão mortal do narcisismo
que domina.
Embora a agressividade
não seja forçosamente narcísica, pois ela pode visar um
ponto de gozo no outro, por exemplo, o olhar (um traço de gozo expresso
pelo olhar), a perseguição. Neste momento, não é
a imagem do outro que é perseguidora, mas um traço do sujeito,
por exemplo, que não seja imaginário – como uma identidade
de situação social, como nos crimes de massa nos colégios
americanos. Não se pode dizer que, neste caso, o sujeito visa exatamente
a imagem dele mesmo, mas, enfim, é toda a humanidade sofredor que é
visada no desencadeamento da carnificina. É a infelicidade, a desgraça
mesmo de estar vivo que é insuportável.
P.A.: O que a “criminologia
lacaniana” poderia dizer sobre o ato criminoso a partir da estrutura da
passagem ao ato?
S.C.: São
necessários exemplos. Quais são as conjunturas de desencadeamento
da passagem ao ato? Conhecemos as conjunturas de desencadeamento da psicose.
Enfim, existem standards de desencadeamento da psicose que Lacan articulou
em torno do Um-pai real. É certo que, se há uma estrutura da passagem
ao ato ou se há um ou diversos standards de desencadeamento, o instante
do olhar, da voz joga aí um papel em primeiro plano; é o que faz
aparecer o assassino em série Fourniret20
que, por exemplo, forçava suas vítimas a falarem de sua virgindade
e, de acordo com a maneira como a garota falava, ele a matava ou não.
Portanto, é a intrusão de um significante particular que pode
favorecer a passagem ao ato.
P.A.: Lacan fala
de crimes do eu e do isso21,
enquanto Jacques-Alain Miller, prefaciando o livro de Francesca Biagi-Chai –
O caso Landru à luz da psicanálise – fala de crime
de gozo e crime de utilidade. Estes dois blocos de categorias são
equivalentes?
S.C.: Não
exatamente. O crime de gozo coloca evidentemente o acento sobre a pulsão,
enquanto Lacan coloca o acento sobre o eu e sobre o narcisismo. Com
certeza, Lacan fala pouco de crime de utilidade salvo em alusão
a Landru, justamente. Mas ele não fala dos registros dos crimes políticos,
dos crimes ideológicos, do crime de romance policial, dos crimes mafiosos.
Mas ele sempre se inscreve no campo da paranóia onde o crime do eu
é sobretudo colocado em evidência. Quanto ao que ele chama de crime
do isso, que está alhures na sua tese, é muito mais dos
crimes do Si. Quanto ao que ele chama de crimes do isso, estes
são os crimes cuja brutalidade e impulsividade assinalam a esquizofrenia,
como os crimes imotivados de Guiraud; mas são sobretudo as estruturas
passionais que interessam a Lacan; a erotomania, ou os delírios de reivindicação,
logo os crimes do eu.
P.A.: O senhor falou que ato perverso, criminoso, seria um tipo
de separação do inconsciente. Poderia desenvolver aqui esta idéia?
S.C.: O ato perverso não é um ato criminoso.
Um exibicionista, que mostra seu falo diante de um trem que passa – é
o exemplo que toma Lacan para dizer que ele solicita o campo do outro, que impõe
uma cena a um outro impotente que não pode intervir, pois está
em um trem. E ele o faz num contexto onde o registro simbólico da paternidade
não está subjetivado pelo sujeito. Há uma impossibilidade
de subjetivar o acesso à paternidade. Ele tornou-se pai quando estava
num casamento difícil com sua mulher. Quando ele soube que se havia tornado
pai, é que ele vai mostrar seu pênis no campo diante de um trem
que passa. Isto é o protótipo do ato perverso para Lacan –
não tem nada a ver com o crime. Mas hoje o termo “perverso”
é utilizado no sentido do século XIX: no sentido de perversidade
psicossocial, no sentido dos psicopatas. Então, é o malfeitor,
o canalha. O perverso é, ao mesmo tempo, o sádico. Estão,
desta forma, colocados sobre a mesma linha: perversos, manipuladores, sádicos,
criminosos. Isto se encadeia metonimicamente, mas não tem nada a ver
com a clínica. Os supostos “criminosos perversos” são
constantemente paranóicos, pura e simplesmente.
P.A.: Por que Lacan recusa o conceito de “instinto criminoso”?
S.C.: Antes de tudo, o instinto é característico
do animal; o crime, pelo seu horror mesmo, é humano e passa pelos desfiles
do significante22; veja o
infanticídio! Estamos longe do suposto instinto materno! Além
disso, nos anos 30, existia uma crítica da degenerescência em psiquiatria.
E, sobretudo, uma crítica do atavismo de Lombroso, que é definitivo.
Quase mais ninguém adere à tese de Lombroso, favorável
à existência do “criminoso nato”, que traz, nos seus
atos, condutas atávicas; e o campo da psicopatologia e, logo, o campo
da psicanálise iriam recobrir inteiramente esta tese em nome de uma psicogênese.
P.A.: De que maneira poderíamos reinterpretar o simbolismo
edipiano do ato no Lacan de 1950: “a psicanálise desrealizando
o crime não desumaniza o criminoso”?
S.C.: É de Lévy-Strauss. Lacan emprega todas
as suas expressões do prefácio do livro de Mauss23
– Sociologia e antropologia –, publicado no mesmo ano,
em 1950. Bom, você lerá a página XX deste prefácio
e poderá dar você mesmo resposta a esta questão.
P.A.: Atualmente, o discurso da psiquiatria faz uma redução
do criminoso a um doente mental devido a uma causa genética, quer dizer,
uma criminalidade fundada sobre a degenerescência cerebral. Segundo o
senhor, em um dado momento, com Basaglia houve um movimento da psiquiatria humanista,
mas que escamoteava a questão da responsabilidade do sujeito, do gozo
no seu ato. Quais são os limites da responsabilidade do criminoso para
o psicanalista? De que maneira o senhor vê o conceito de responsabilidade
do sujeito hoje, que é diferente da responsabilidade do código
civil?
S.C.: Não é devido à causa genética,
mas com uma concepção genética da causalidade. Mais ninguém
crê na teoria da degenerescência. Tem-se a tendência, entretanto,
de reabilitar o “perverso constitutivo”, que é uma entidade
do século XIX, no objetivo utópico de “predizer” a
delinqüência das jovens crianças. Não se pode falar
de degenerescência nem de epilepsia como o fazia Lombroso, pois os sujeitos
são frios, inteligentes e calculadores. Não são crises
de loucura. Eu respondo simplesmente que é necessário articular
a noção de inconsciente com a de responsabilidade. É preciso
tornar compatíveis inconsciente e responsabilidade. De uma parte, para
Lacan, o ato é fora do inconsciente, mas isto não desresponsabiliza
forçosamente o sujeito – pois Lacan mantém a noção
de “escolha forçada”. A noção de “escolha
forçada” é uma noção híbrida: isto
implica o sujeito e implica uma sujeição, mas os dois. E, então,
caso a caso é que se pode avaliar a parte que retorna ao sujeito em cada
ato. Não se pode dizer que, se um ato participa do inconsciente, isto
desresponsabilizaria o sujeito. Você comete uma agressão, você
o faz voluntariamente, e a análise psicológica poderá encontrar
motivações infantis, por exemplo, um traço de caráter
– mas isso não o desresponsabiliza forçosamente. Por quê?
Porque há uma mobilização de gozo no ato que concerne à
pulsão, logo quem diz pulsão diz sujeito, senão retornaríamos
ao instinto; quem diz pulsão diz vontade de gozo, não é?
Se há uma vontade de gozo no seu ato, você está forçosamente
implicado. Então, Lacan não desresponsabilizava inteiramente o
criminoso, mas se devia ver caso a caso. Isto não quer dizer que a opinião
dele era de que se colocasse, como hoje, o louco na prisão. Mas ele pensava
que talvez a ação da justiça sobre o criminoso pudesse
ter efeitos de remanejamento subjetivo, pudesse dar-lhe o sentimento après-coup,
só-depois, de uma certa responsabilidade, e caberia eventualmente ao
psicanalista faze-lo reencontrar este sentimento.
P.A.: Em sua opinião, por que o discurso da psiquiatria
contemporânea fala sempre de ato criminoso no sentido da monstruosidade,
como o predador designado pelo seu comportamento animal?
S.C.: A psiquiatria contemporânea não pode mesmo
mais imputar o ato criminoso à loucura ou à psicose ou ao delírio.
Ela não vê mais relação entre o ato e a paranóia
de hoje, por exemplo. E, por conseguinte, eles acabaram de autorizar as categorias
da Idade Média, tais como “monstro” ou “predador”,
pois eles não podem mais ver o que há de humano na loucura. A
dialética entre o humano e a psicose escapa-lhes completamente. E, então,
eles verão nas formas horríveis de crimes, sem dúvida,
um franqueamento das leis da humanidade, mas mesmo assim eles não vêem
senão que lá está o limite da humanidade. Não se
está na animalidade, está-se ainda no delírio.
P.A.: O senhor havia dito que o conceito de “perverso
narcísico” é uma entidade mal construída, pois são
dois termos híbridos da epistemologia psicanalítica. Poderia precisar
isto? Como o senhor vê a utilização deste novo conceito
para tentar dar conta da criminologia?
S.C.: O “perverso narcísico” substituiu
o psicopata. É uma entidade formada de dois termos: “perversão
sexual”, entendida como sádica, e “narcisismo”, entendido
como toda-potência do ego ou “ego superdimensionado”, como
se diz no jornalismo. São os franceses que inventaram isto, provavelmente
Paul-Claude Racamier24, e é
amplamente utilizado pelos peritos em criminologia, como Zagury25.
O narcisismo para Lacan não está, de maneira alguma, do lado da
toda-potência, mas, ao contrário, da pulsão de morte e do
suicídio. E, como eu havia dito, para Lacan a perversão coloca
o sujeito do lado do objeto e não do lado do mestre, do todo-potente.
“Perverso narcísico” vem no lugar do paranóico –
que tende a desaparecer da nomenclatura psiquiátrica. Vem para suprir
a ausência e o esquecimento do paranóico. Estes conceitos são
feitos para descrever os tipos de personalidade. O tipo clínico desaparece
em proveito da entidade sindrômica – como no DSM-IV. Não
se fala mais de paranóia, fala-se de personalidade paranóica ou
se falará de personalidade criminosa. Mas isto evita fazer uma clínica
da passagem ao ato e da anterioridade do delírio em relação
à passagem ao ato.
P.A.: Qual seria a tendência dos psiquiatras/analistas
lacanianos para estabelecer a existência do crime psicótico?
S.C.: A tendência dos lacanianos continua clássica,
quer dizer, efetivamente estabelecer a existência de uma relação
entre a passagem ao ato criminoso e um fenômeno elementar ou delirante.
E, em seguida, procurar outros tipos de crimes além do crime paranóico,
que era o crime lacaniano por excelência, para explicar os crimes de massa
e os crimes ditos26 perversos
por formas modernas da psicose, muito mais das formas modernas da esquizofrenia.
P.A.: Em artigos recentes dos peritos em criminologia, a perversão
é vista como um modo de defesa contra a fratura do eu, quer dizer, o
crime do “perverso narcísico” seria um tipo de defesa que
salvaria o criminoso da loucura. O senhor havia falado do estado atual da decomposição
da psiquiatria atual, da “forclusão da psicose no campo da psiquiatria”.
Que conseqüências o senhor vê neste caso?
S.C.: Colocar-se-á cada vez mais o louco na prisão.
O risco é que haverá cada vez menos “non-lieux”27
e declarações dos julgamentos de irresponsabilidade, e existirão
efeitos “perversos” da nova lei do código civil francês,
que se chama 122-1 e que diz respeito ao grau de responsabilidade e, mais exatamente,
à avaliação da “alteração do discernimento”.
É uma lei que deveria ser utilizada pelos peritos para beneficiar o acusado:
o sujeito, ainda que estando consciente, e não em um “estado de
demência” como se dizia antigamente, pode estar, contudo, em um
estado em que seu discernimento está alterado ou modificado pela sua
patologia, que é necessário colocar em evidência em vez
de tomar por responsável todo sujeito consciente de seu ato. Retorno
ainda à posição de Lacan no que diz respeito ao julgamento
dos doentes mentais: “coloca-se o louco na prisão”; a posição
de Lacan não era para pôr o louco na prisão, sejamos claros.
Simplesmente, no caso a caso, ele não estava forçosamente em oposição
na medida em que a punição, o encarceramento, poderia, eventualmente,
produzir um efeito subjetivo, como é o caso de Aimée, que toma
consciência na prisão de que, ao golpear a atriz, ela golpeava
a si mesma e, neste momento, isto cessa o delírio. Mas, em nenhum caso,
Lacan pensava que a prisão em si mesma seria curativa para o doente mental,
certamente. Simplesmente, no que ele chamou de paranóia de autopunição,
pode-se observar que, uma vez que a punição cai, o delírio
desaparece. O problema é que hoje existem outras formas de psicose que
não são psicoses paranóicas e que não são
sujeitas à ação da justiça – e mesmo da análise
– que não tem a ver com autopunição.
P.A.: Como interpretar a afirmação de Lacan de
que o louco é o homem livre?28
S.C.: Essa afirmação de Lacan é relacionada
ao conceito de alienação. O louco é livre porque ele não
crê na lei ou ele identifica a lei ao seu próprio desejo ou ainda
ele está liberado do Outro; ele ironiza sobre a estrutura do simbólico,
que justamente é alienante. Ele é de tal modo emancipado da estrutura
do simbólico que ele não é mais alienado a ela. É
o normal que é alienado pelo significante, pela lei, pelo Nome-do-pai,
etc., e o psicótico o é muito menos.
*
Entrevista concedida em 30 de junho de 2008, em seu apartamento em Paris. Dr.
Serge Cottet é analista, A.M.E., membro da École de la cause freudienne
(ECF), da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação
Mundial de Psicanálise (AMP). Professor-titular do Département
de Psychanalyse de l’Université de Paris 8 e professor da Section
Clinique de Paris-Saint-Denis. A tradução e as notas são
do entrevistador. ** Psicólogo, mestrando em
“Master de Psychanalyse” pelo Département de Psychanalyse
de l’Université de Paris VIII. Participante da Section Clinique
Paris-Saint-Denis. 1 Cf., por exemplo, ZAGURY, D. Les
serial killers sont-ils des tueurs sadiques? [Os serial killers são
assassinos sádicos? (NT)]. Revue française de psychanalyse,
v.66, n. 4, p.1.195-1.213, 2002. 2Mental [revista internacional
de saúde mental e psicanálise aplicada], Bruxelles, Éditeur
Nouvelle École Lacanienne – NSL. 3 COTTET, S. “Clinique de
l’acte ou comportementalisme?” Curso ministrado no Département
de Psychanalyse de l’Université de Paris VIII, 2007-2008. Inédito. 4 FREUD, S. Dostoievski e o parricídio.
[1928(1927)] In:_____ Edição standard brasileira das
obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio
de Janeiro: Imago, 1980. v. XXI. 5 FREUD, S. Totem e Tabu. [1913(1912)]
In: Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
v. XIII.. 6 LACAN, J. Da psicose paranóica
e suas relações com a personalidade [1932]. Rio de Janeiro:
Editora Forense Universitária, 1987. 7 Cf. o capitulo II da referida
tese: O caso “Aimée” ou a paranóia de auto-punição,
op. cit. 8 Embora já no escrito
sobre o crime das irmãs Papin (Cf. LACAN, J. Motivos do crime paranóico:
o crime das irmãs Papin. In:____ Da psicose paranóica e suas
relações com a personalidade, op. cit.), afirma sr. Cottet,
Lacan já tenha utilizado outro modelo que não é o do estádio
do espelho, já que se pode observar que o sujeito passa ao ato para extrair
no real o objeto olhar. 9 O leitor pode ler com proveito
os textos de Theodor Reik, que utiliza a segunda tópica freudiana para
tentar dar conta dos crimes de autopunição. Cf., por exemplo,
Le Besoin d’avouer: psychanalyse du crime et du châtiment
[A necessidade de confessar: psicanálise do crime e do castigo. NT].
Paris:Payot, 1997. 420 p. 10 Ao exemplo da tese lacaniana
de “paranóia de autopunição” a partir do caso
“Aimée”. 11 Em Posição
do inconsciente de 1964, Lacan afirma: “A única função
homogênea da consciência está na captura imaginária
do eu por seu reflexo especular e na função de desconhecimento
que lhe permanece ligada.”. In:___Escritos, Rio de Janeiro : Jorge Zahar,
1998, p. 846. 12 Cf., por exemplo, GUIRAUD,
P. Les meurtres immotivés [Os assassinatos imotivados. NT]. In:
L’évolution psychiatrique, março 1931. Republicado
em: Documents de la bibliothèque de l’ECF, n. 1, « Le
langage », fevereiro 1996. 13 Lembramos aqui a origem filosófica
hegeliana da tese lacaniana do estádio do espelho – para-além
da tese de Wallon. Muito mais do lado da dialética do mestre-escravo,
o estádio do espelho aplicado ao crime releva a pulsão agressiva
do lado do imaginário. Lacan nos diz: “A ferocidade do homem em
relação a seu semelhante ultrapassa tudo o que podem fazer os
animais [...] Mas essa própria crueldade implica a humanidade.
É um semelhante que ela visa, mesmo num ser de outra espécie.
Nenhuma experiência sondou mais que a do analista, na vivência,
a equivalência de que nos adverte o patético apelo do Amor –
é a ti mesmo que atinges – e a gélida dedução
do Espirito: é na luta mortal de puro prestigio que o homem se faz reconhecer
pelo homem” (LACAN, J. Introdução teórica às
funções da psicanálise em criminologia [1950].
In: ___Escritos, op. cit., p. 148-149. 14 BIAGI-CHAI, Francesca. Le
cas Landru à la lumière de la psychanalyse [O caso
Landru à luz da psicanálise. NT]. Prefácio de Jacques-Alain
Miller. Paris: Éditions Imago, 2007. 15 Henri Désiré
Landru foi um célebre criminoso e serial killer francês,
apelidado de “o Barba-azul de Gambais”. Durante o contexto da Primeira
Guerra Mundial, ele havia assassinado 10 mulheres, atraindo-as através
de anúncios deixados nos jornais parisienses, prometendo matrimônio,
para em seguida roubar suas economias, assassiná-las e esconder seus
corpos. Francesca Biagi, no seu livro, demonstra como é possível
identificar Landru como um esquizofrênico a partir do que ela denomina
de clínica do real. 16 Lembramos aqui um comentário
que o sr. Cottet havia feito durante seu curso: nos anos 30, Lacan se baseava
na psiquiatria compreensiva de Jaspers, uma vez que ele procurava dar um sentido
simbólico ao ato, como a idéia, por exemplo, de que certas passagens
ao ato são autopunitivas – o sujeito quer se condenar.
Neste momento, a posição de Lacan era humanista (na medida em
que sua preocupação era compreender o motivo do crime) e anti-mecanicista
(contra a tese de Lombroso do “criminoso nato”). 17 “criminel-né”
no original (NT). 18 LOMBROSO, Cesare. L’homme
criminel. Criminel-né, fou moral, épileptique [1895].
Paris: Félix Alcan, 1887. (O homem criminoso. Rio de Janeiro:
Novo Rio, 1983). 19 LACAN, J. Introdução
teórica às funções da psicanálise em criminologia
[1950]. In: ___Escritos,op. cit., p. 149. 20
Michel Fourniret, assassino em série francês. Apelidado de o “Ogro
das Ardennes”, confessou o assassinato de nove garotas na França
e na Bélgica, entre 1987 e 2001. Os especialistas que o avaliaram, diagnosticaram-no
como “perverso narcísico”, em recente julgamento na França.
Foi condenado à prisão perpétua. 21 Na sua tese, Lacan afirma que
a doutrina freudiana permite estabelecer uma distinção “entre
os crimes do Eu (em quê entrariam todos os crimes ditos de interesse)
e os crimes do Si (em quê entrariam os crimes puramente pulsionais,
tais como os encontramos tipicamente na demência precoce)”. Ele
acrescenta considerações logo em seguida sobre um tipo de crime:
os crimes dos delírios de querulência e os delírios
de autopunição, que são justamente os crimes
do Supereu (LACAN, J. Da psicose paranóica e suas relações
com a personalidade, op. cit., p. 302 [referência do texto
na sua versão francesa]). 22
Cottet utiliza aqui uma expressão que encontramos no Seminário
11 de Lacan. O título do capitulo XII em francês é “La
sexualité dans les défilés du signifiant”, que foi
traduzido por “A sexualidade nos desfiles do significante”. 23 MAUSS, Marcel. Sociologie
et anthropologie [1950]. Prefácio de Claude Lévy-Strauss.
Paris: PUF, 2004. p. XX (referência do texto em francês). Em português:
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naïf,
2003. 24
Cf., por exemplo, RACAMIER, P. Entre agonie psychique, déni psychotique
et perversion narcissique [Entre agonia psíquica, recusa psicótica
e perversão narcísica. NT]. Revue Française de
Psychanalyse, v. 50, n.5, 1986; e La perversion narcissique [A perversão
narcísica. NT]. Gruppo, n. 3, 1987. 25 ZAGURY, D. Les serial killers
sont-ils des tueurs sadiques?, op. cit., p. 1206. 26
Considero que Cottet refere-se aqui à tentativa de dar conta dos outros
tipos de crimes sem se limitar ao modelo do crime paranóico de autopunição.
Isto não quer dizer que os lacanianos sempre tentem explicar o crime
pela via da psicose (paranóica, principalmente).
A partir do curso dele, posso dizer que o que ele pretende dizer é que
a preocupação dos analistas é, ou deveria ser, de não
ficarem limitados a modelos de explicação que, em alguns casos,
não seriam adequados como, por exemplo, dizer que todo crime que parte
de um psicótico corresponda a uma paranóia de autopunição.
Penso que a tendência dos lacanianos seria a de estar atento para crimes
psicóticos além da paranóia (como crimes de massa em colégios
americanos, por exemplo, feitos por um esquizofrênico).
Quando Cottet fala de crimes ditos perversos, ele se refere, provavelmente,
ao caso Fourniret (mencionado na entrevista) em que os peritos, no julgamento
do caso, fixaram um diagnóstico de “perverso narcisista”,
crime perverso, partindo da idéia de que ele matava para gozar.
Esse conceito é utilizado pela mídia francesa com espantosa freqüência
e a hipótese de que Fourniret é um perverso narcísico é
sustentada pela tese de que a escolha dele por moças novas e virgens
tem uma causa traumática: quando criança ele teria visto a irmã
mais velha no banheiro defecando, somado ao fato de que ele casou-se com uma
mulher que já não era virgem. Para não enlouquecer, ele
passa a matar moças virgens.
Entretanto, Cottet e Francesca Biagi duvidam desse diagnóstico e suspeitam
de uma psicose. Para eles, Fourniret seria um esquizofrênico que cometia
crimes para fazer uma extração selvagem do objeto a no real; o
que explicaria a questão dele com a virgindade das moças.
Cottet não nega a existência de crimes a partir de todas as estruturas,
mas faz uma crítica aos psiquiatras franceses e psicanalistas que, diante
de um crime como esses, rapidamente diagnosticam o sujeito como “perverso
narcísico”. Ele chama a atenção para a importância
de se fazer uma clínica fina e precisa ao invés de simplesmente
afirmar que todo criminoso é um perverso narcisista.
Por isso colocamos em itálico “os crimes ditos perversos”,
para sublinhar que a idéia não é de que os crimes perversos
devem ser interpretados como crimes psicóticos, mas de que o que se rotula
como crimes perversos, perversos narcísicos, podem ser crimes cometidos
por esquizofrênicos, por exemplo.
Existe atualmente, na França, um grupo de psicanalistas, do qual Cottet
participa, que está em constante diálogo com o magistrado francês
responsável pelo caso Fourniret, tentando, através de entrevistas
com o acusado, estabelecer mais precisamente o seu diagnóstico. 27 Na França, denomina-se
de “non-lieu” (“não-lugar”, NT) o abandono
de uma ação judicial em curso de procedimento, decidido pelo juiz
de instrução, que ocorre uma vez que os elementos reunidos pelo
inquérito não justificam o seguimento da ação –
por exemplo, quando o réu é considerado penalmente irresponsável. 28 LACAN, J. Petit discours aux
psychiatres [Pequeno discurso aos psiquiatras], Conferência no
“Cercle d’études psychiatrique”, dirigido por Henri
Ey, 1967, inédito: “[...]os homens livres, os verdadeiros,
são precisamente os loucos. Não há demanda do pequeno a,
seu pequeno a ele o tem, é o que ele chama suas vozes, por exemplo [...]
O louco, neste sentido, é de uma certa maneira esse ser de irrealidade,
esta coisa absurda [...] o bom Deus dos filósofos chamava-se
“causa sui”, causa de si, digamos que ele tem sua causa no seu bolso,
é por isso que ele é um louco”.