Ateísmo,
materialismo e crítica à religião na obra de Freud. A importância
destas idéias para conceitos-chave como: pulsão, sexualidade infantil,
eu ideal e recalque. O método psicanalítico, continuação
da maiêutica socrática, antagônico de dogma e texto sagrado.
O método fundamentado numa ética ateísta: da falta, finitude
e diferença. Psicanálise e simbólico; religião e
imaginário. Uso da hipnose e do eu ideal pela religião.
Palavras-chave:
Ateísmo de Freud, Ética psicanalítica, Imaginário,
Figura paterna, Eu ideal.
ABSTRACT
Freud’s
atheism, materialism and criticism of religion. The importance of these ideas
to understand key concepts as: instinct, infantile sexuality, ego ideal and
repression. The psychoanalytical method as extension of socratical maieutics,
opposite to dogma and sacred text. The method as based on an atheist ethic:
lack, finitude and difference. Pscyhoanalysis and the symbolical, religion and
the imaginary. Religious uses of hypnosis and ego ideal.
[...]
e junto com a crença em um único deus, inevitavelmente nasceu
a intolerância religiosa [...] Este imperialismo se refletiu na
religião, como universalismo e monoteísmo.
Sigmund Freud (Moisés e Monoteísmo)
Mas afinal, por que falha o significante da religião?
Maria Angelina Khalil Aidé
Começo:
Freud versus Pfister
A relação
entre psicanálise e religião foi estabelecida e levada ao paroxismo
pelo próprio Freud. Concorrendo com o pensamento de Marx, o nascimento
da psicanálise dotou o século XX de uma segunda grande corrente
de crítica à religião. Freud era declaradamente: ateu,
materialista, tinha toda psyché como resultante de neurônios,
rotulou a religião de grande neurose da humanidade e que o diabo nada
mais é que a personificação da vida pulsional inconsciente
recalcada. Suas idéias quanto à questão eram tão
claras e seus textos tão contundentes que todas as tentativas posteriores
de conciliação ficam entre o patético e a traição
de suas idéias.
Mas, e quanto
à correspondência entre Freud e o pastor Pfister (FREUD;
PFISTER, 1963)? Tal pergunta sempre é feita quando se esboça alguma
tentativa de conciliação. Amizade e respeito às diferenças
lhes eram mais fortes do que a imposição das crenças. A
leitura cuidadosa da correspondência entre ambos, não apenas revela
a tolerância das idiossincrasias pessoais entre dois bons amigos, mas
também que Freud não abre mão um milímetro de sua
posição atéia e materialista. A amizade perdurou, apesar
da estocada dada por Freud na carta de 25 de novembro de 1928: “Não
sei se você percebeu a ligação secreta entre a “Análise
Leiga” e a “Ilusão”1.
Na primeira desejei proteger a análise dos médicos e na segunda
dos sacerdotes”. E, em seguida, Freud delimita o campo da prática
psicanalítica: [...] “uma profissão que ainda não
existe, a profissão de curadores de alma laicos, que não necessitam
serem médicos e não devem ser sacerdotes” (FREUD; PFISTER,
1963, p.126). A elegância e civilidade do diálogo Freud/Pfister
pertenceria à história da psicanálise européia,
não tivesse sido um diálogo freqüentemente utilizado no Brasil
atual para justificar o injustificável.
Dissequemos a
questão por partes: desde o cerne da trama teórica freudiana,
passando pela confusão ocorrida no Brasil entre psicanálise e
religião e, desta questão, como parte de outra, mais ampla, ressurgida
na era da globalização. Este percurso conduz a localizar e conceituar,
em diferentes campos, o discurso da psicanálise e o da religião.
Por fim, o mais importante: o que podemos por meio desta grande confusão
aprender para a clínica psicanalítica e a ética que lhe
é indissociável?
Uma psicanálise
sem Freud?!
As opiniões
de Freud sobre a religião poderiam permanecer neste domínio mesmo,
o das opiniões: pessoais, particulares, direito de todo cidadão.
Contudo não o fazem por não serem apenas preferências individuais,
mas parte central do arcabouço freudiano. Os textos críticos sobre
religião, indo desde Totem e Tabu até Moisés
e o Monoteísmo, são mais do que especulações
sobre a cultura, mas integrantes de reflexões que partiram da clínica
e retornaram à clínica. Textos cuja contestação
nega a psicanálise como um todo. Foram escritos a partir de idéias
que necessariamente derivam de conceitos como: pulsão, recalque, eu ideal
e sexualidade infantil.
O conceito de
pulsão (ou de seu representante), como intermediário entre o psíquico
e o somático, deriva do materialismo ateísta de Freud, para quem
não há mente sem cérebro e corpo, muito menos há
alma ou espírito desencarnados. A sexualidade infantil, com sua perversão
polimorfa, coloca a agressividade humana como constitutiva e não um desvio,
assim como sendo universal a atopia do desejo, numa visão oposta à
normatização do Velho e do Novo Testamento. Eu ideal, supereu
e recalque: Freud sempre buscou compreender a culpa através da psicologia
e da antropologia, não como meras auxiliares de alguma possível
teologia, mas como explicações que desmontassem todo pensamento
mágico e religioso. Tudo isto passando por texto cujo título dispensa
comentários, Rituais Religiosos e Práticas Obsessivas,
sem falar na adesão incondicional de Freud ao darwinismo.
Assim como a correspondência
entre Freud e Pfister foi desvirtuada, tentar uma psicanálise, tanto
em extensão quanto em intenção, negando os conceitos acima
constitui mais que uma fraude, uma profunda ignorância do texto freudiano.
Embuste que só pode ser praticado por meio de um ensino superficial,
por apostilas, e sem o mais importante da prática clínica: a análise
pessoal. E não apenas o texto de Freud tem de ser escondido, mas os de
todos seus seguidores importantes: Abraham, Klein, Lacan, Winnicott, Bion e
quantos mais sejam nomeados2, pois
todos lhe seguiram em ateísmo e crítica à religião.
Este engodo, um ensino de Freud sem seus textos, teria apenas feito parte da
história das vigarices. História que sempre acompanhou a história
da psicanálise e das várias correntes da psicologia, e que ficaria
no baú das curiosidades, se em nosso país não tivesse se
travestido da arrogância de tentar monopolizar a prática psicanalítica.
Um problema
bem brasileiro
Nos últimos
vinte anos vimos no Brasil o surgimento de instituições supostamente
psicanalíticas fundadas por religiosos. Durante muito tempo, o fato não
chamou muito a atenção da comunidade psicanalítica tradicional,
cuja tradição é congregar um ruidoso saco de gatos. Foi
quando, no início do atual século, surgiram no Congresso Nacional,
para eventual apoio de parlamentares do lobby evangélico, tentativas
de regulamentação da psicanálise beneficiando as instituições
de origem religiosa. Mais além, aproveitando a não regulamentação
da psicanálise no Brasil, e em antagonismo ao que fora escrito na carta
de Freud a Pfister, os projetos de lei procuravam monopolizar a prática
psicanalítica. Esta tentativa de monopolização, em detrimento
de todo o saco de gatos que há décadas tradicionalmente compõe
a psicanálise no Brasil, fez com que os gatos - por mais que rosnem entre
si, pertencem a uma genealogia de comum de felinos3
- se unirem diante de um mesmo inimigo.
A apresentação
dos projetos de lei mencionados foi uma curiosa imagem espelhada dos projetos
anteriores de regulamentação, apresentados em décadas anteriores,
nos quais também sempre advinha uma tentativa de exclusão: ou
monopolizar a prática psicanalítica pelos médicos, ou um
grupo de instituições igualmente tentava desqualificar aquelas
julgadas menos ortodoxas ou heréticas. Mas em todos os casos, aplica-se
o escrito de Lacan sobre o que chamou de três pontos de fuga da psicanálise,
sendo aqui o terceiro ponto de fuga, no real, e que nos aparece através
do fantasma de se fazer segregar (LACAN, 2003). Por ora fica o registro de que
a reação dos psicanalistas tradicionais, sua luta para o arquivamento
destes projetos, até o momento bem-sucedida, já pertence à
história da psicanálise no Brasil.
Atenhamo-nos,
portanto, ao que a tentativa concreta de usurpação da psicanálise
implica para a prática psicanalítica. Mesmo porque, se os projetos
de lei, por ora, foram arquivados, e se as supostas instituições
psicanalíticas de orientação religiosa sofreram um efeito
bumerangue, outro movimento surgiu. No caso de sociedades psicanalíticas
que aceitam como candidatos à formação não médicos
e não psicólogos, é crescente a procura de ensino por religiosos
de diferentes denominações4.
Pessoas bem intencionadas, muitas vezes críticas da precariedade do ensino
nas instituições religiosas, que pretendiam o monopólio
da psicanálise, mas não menos equivocadas.
Resgatando tal
equívoco, chega-se aos dois outros pontos de fuga mencionados por Lacan:
no imaginário e no simbólico. Refletir sobre a crise surgida pela
tentativa de usurpação da psicanálise torna-se muito útil,
obrigando a refletir sobre a especificidade do discurso e da prática
psicanalíticas. Discurso e prática também sob a constante
ameaça do festival de práticas: esotéricas, de auto-ajuda
e pseudo científicas. Práticas exercidas muitas vezes por psicanalistas
que são médicos ou psicólogos, constituindo práticas
ilegítimas e ilegais diante dos olhos de seus próprios conselhos
profissionais.
Um problema
não tão brasileiro
O recrudescimento
do fenômeno religioso, a nova capa dos nazi-fascismos, hoje rotulada de
fundamentalismos, e o retorno da reação neo-iluminista, nada disso
é exclusivo ao Brasil. Nos últimos dois anos, surgiram vários
livros contendo ferozes críticas à religião, tendo por
autores: pensadores anglo-americanos, biólogos darwinistas adeptos ou
não da psicologia evolutiva, filósofos franceses da nova geração.
Grande parte dos títulos foi publicada no Brasil, principalmente nos
últimos meses de 2007 e, de modo surpreendente, à semelhança
de outros países, alguns títulos permaneceram semanas ou meses
na lista dos mais vendidos: Carta a uma nação cristã
(HARRIS, 2007) e The end of faith (HARRIS, 2005), Deus, um delírio
(DAWKINS, 2007), Deus não é grande (HITCHENS, 2007), Quebrando
o encanto (DENNETT, 2006), Tratado de ateologia (ONFRAY, 2007), O
Espírito do ateísmo (COMTE-SPONVILLE, 2007)5.
Os títulos
mencionados, de autores estrangeiros, são predominantemente jornalísticos,
elencando e relembrando os usos e abusos da religião através dos
séculos. Constituem exceções os títulos de: Dennett,
Onfray e Comte-Sponville. Estes se aventuraram, mais que os outros autores citados,
a formular teses – psicológicas, darwinistas, antropológicas,
filosóficas – sobre as origens humanas e o recrudescimento contemporâneo
da religião. Não nos cabe competência ou tempo para traçar
aqui semelhanças e diferenças entre as idéias de todos
esses autores e as de Freud, ou com as dos grandes críticos e estudiosos
do fenômeno religioso, o poder e o totalitarismo: Bertrand Russel, Michel
Foucault, Hannah Arendt. Apenas pinçamos algumas observações
sobre o livro de Dennett que julgamos úteis para nossa breve súmula.
Embora Dennett
(2006) cite Freud em uma de suas epígrafes, a psicanálise parece
causar-lhe horror, o que torna mais interessante seu texto. Através de
explicações da psicologia evolucionista e de experimentos estatisticamente
controlados, Dennett chega a várias hipóteses sobre a origem e
o poder da religião: surgimento a partir do animismo e do xamanismo,
hipertrofia de características do pensamento e linguagem primitivos,
uma forma de hipnose coletiva utilizando o carisma da figura de um pai. Essas
são algumas das hipóteses de Dennett que, apesar de defendidas
de modo completamente diverso, cheiram muito - até em excesso - familiares
às de Freud. O filósofo darwinista também se pergunta:
qual a relação entre imperialismo e religião?
Mais do que as
outras hipóteses abordadas, a questão do pai faz com que coce
a orelha de um psicanalista. Deixemos de lado os usos e abusos sociopolíticos
do fenômeno religioso, para permanecer no experimento mais próximo,
e não muito bem controlado, o do divâ. Os psicanalistas estão
familiarizados com esta história, que parte da hipnose e a metamorfoseia
em técnica psicanalítica, tanto quanto dos motivos pelos quais,
ao trilhar este percurso, tivesse Freud escrito tanto sobre sua descoberta da
busca universal por um hiperpai ultra-idealizado. Ele também nos transmitiu
o alerta sobre como este anseio humano comum deixa a todos vulneráveis
aos abusos possíveis da transferência, e como é fácil
desvirtuar-se o rumo da prática psicanalítica.
Reflexões
sobre a ética da Psicanálise
A psicanálise
fundamenta-se no princípio socrático de que somente cada qual
pode saber o que é melhor para si mesmo. Trabalha a partir do desvelamento
da verdade que, cada um, sem saber, possui dentro de si. Trata-se do renascimento
da maiêutica socrática: a arte do parto das idéias. Sócrates
passou à história por ter formulado o princípio de que
a verdade, que cada um traz dentro de si, à semelhança do bebê,
seria naturalmente parida. Mas, para a maioria, há tantas idéias
vindas de fora, assimiladas como se fossem próprias e esquecidas de sua
origem externa, que o parto natural fica impedido. Para Sócrates, o trabalho
do filósofo não era o de pontificar suas próprias idéias,
mas apenas o de remover os empecilhos para que se dê o nascimento espontâneo
da verdade de cada um. À semelhança de sua mãe, que era
parteira de bebês, Sócrates era parteiro de idéias. Se o
parto natural corre bem, o parteiro apenas contempla, é um inútil.
Mas Sócrates,
através de sua dialética, ativamente questionava o interlocutor,
ao passo que o analista deve ser um parteiro mais discreto: “o senhor
cujo oráculo está em Delfos, não fala nem esconde: ele
indica” (fragmento 93 de Heráclito de Éfeso, apud BORNHEIM,
1999, p.41). Como dizia Freud, enquanto o paciente está associando livremente,
o melhor que o psicanalista pode fazer é ficar calado. Foi uma paciente
– Emmy von N. – quem por sua vez indicou a Freud que se calasse,
que não interrompesse a fala que emergia. Em seu primeiro relato de caso
clínico, revela Freud: “Então ela disse de um modo decididamente
irritado, que eu não ficasse lhe perguntando de onde isto ou aquilo tinha
vindo, mas a deixasse contar o que ela precisava falar” (Studies on hysteria,
FREUD, 1978, p.63, tradução do autor).
A mesma denúncia
feita contra Sócrates é produzida contra vários discursos
contemporâneos, incluso o da psicanálise: a negação
de A Verdade conduz ao relativismo ético. Acusação típica
de quem parte da existência de normas ditadas pelo divino, do qual o acusador
é guardião. Podemos refutar esta acusação subscrevendo
que:
No centro da discussão
ética situa-se a questão da verdade, e a psicanálise não
se furta a ela, entendendo-a, entretanto como verdade do desejo, imperioso e
irredutível. Como tal é sempre parcial, não-toda, vinculada
que está à metonímia do desejo, e, principalmente, particular,
apresentando-se para cada um em sua especificidade íntima. [...]
O que é universal é a diferença (RINALDI, 1996, p.68).
Afirmar a verdade
como sempre parcial difere de uma defesa do relativismo ético. Freud
e Lacan partem do princípio de que o ser humano é mortal e limitado,
e o desejo impossível de ser satisfeito plena e permanentemente. A filosofia
que embasa a ambos é a da finitude, do limite e da falta. Ambos compartilham
de uma concepção trágica do homem, e da inalienável
responsabilidade de todos os nossos atos, concepção em oposta
à noção de que se não há deus, então
tudo é permitido. Como somos portadores deste furo interno –
dê-se-lhe vários nomes: falta, ferida narcísica, castração,
não-ser, objeto a, a coisa, por exemplo -, também somos circunscritos
externamente por uma linha em que o desejo alheio é o limite para o meu
desejo. Não apenas Freud e Lacan, mas todos os nomes mais conhecidos
da psicanálise – Abraham, Ferenczi, Klein, Winnicott, dentre muitos
- partilharam desta compreensão trágica, pois sem ela não
seriam psicanalistas. Freud, ele mesmo, defendeu a idéia de que sem a
falta não haveria palavra. Tanto em Lacan quanto em Freud, o desejo está
indissoluvelmente vinculado à lei que institui o simbólico, “ainda
que para o primeiro esta lei indique, mais que uma proibição,
a presença de impossibilidade” (RINALDI, 1996, p.69).
A maiêutica
socrática buscava, por meio de um único diálogo, que o
interlocutor reconhecesse a incoerência de seu discurso, e isto lhe permitiria
construir um discurso próprio. À diferença de Sócrates,
Freud procurava, por meio de pequenas intervenções, desobstruir
a livre associação do paciente. Então, espontaneamente,
é retomada a construção do discurso. Uma produção
por meio de várias narrativas, que não são ouvidas como
se fossem dotadas de um sentido unívoco, mas com vários sentidos.
Isto pressupõe não apenas a existência de um sujeito desejante,
mas sua multiplicidade. Mesmo que se tente reduzir toda fala à univocidade,
a malha de significantes, mesmo sob uma aparência de totalidade, revela:
suas falhas, seus duplos sentidos, suas antíteses, outros caminhos além
daquele que aparenta. Se a psicanálise fosse perfeita, estaríamos
quase inteiramente no registro do simbólico. Mas não apenas por
fugir de um sentido unívoco, por fugir da idéia de que a psyché
saudável seria um bloco compacto e, mais ainda, por não ser perfeita
e por não ter um ideal por meta, a psicanálise foge de um simbólico
puro e do discurso totalitário.
Se a psicanálise
busca o registro do simbólico e de sua própria impossibilidade
de absolutização, pergunta-se qual o objetivo da religião.
Segundo Freud, a religião sempre busca o pai idealizado da infância:
todo poderoso, onipresente e onipotente, infalível, garantia de completa
segurança. Pai de um registro herdeiro de uma época do predomínio
do narcisismo infantil e suas imagens, época de intensa ambivalência.
A religião, ao menos suas vertentes monoteístas e ocidentais,
está no registro do imaginário e na possibilidade do absoluto6.
Ilusões
da transferência e delírios religiosos
Portanto a psicanálise,
em qualquer de suas vertentes, encontra-se no pólo oposto ao da aplicação
do discurso religioso do monoteísmo. Não há verdade externa,
dogmática e atemporal. Não há livro sagrado ou revelação
divina. No máximo um ou outro presidente Schreber mais popularizado.
Encaixar alguém numa verdade que lhe é exterior constitui uma
violência tão grande quanto a violência da psicologia do
ego, ou de outras psicologias adaptativas. Carismaticamente persuadir alguém
de que esta verdade revelada também poderia ser sua, configura uma forma
de submissão, consiste em utilizar a transferência como arma em
uma relação sadomasoquista; a mesma sujeição, o
mesmo dispor aético do outro, que afastou Freud da hipnose. Além
disso, a hipnose fora desmascarada por Freud quanto à instabilidade de
seus efeitos terapêuticos, assim como da crônica dependência
do submisso ao seu algoz a fim de renovar tais efeitos, uma vez que, de tempos
em tempos, eles cessam. Muito útil se o propósito for extrair
uma renda permanente da vítima. E não foram poucos os que na história
da própria psicanálise rebaixaram-na a isto.
Com os Escritos
sobre técnica (Papers on technique, FREUD, 1978), Freud resguardou
que a transferência fosse reconhecida como um instrumento permanentemente
sob o controle da ética. Um poder sobre o outro a ser utilizado com o
máximo de cuidado, porque, a qualquer momento, pode converter-se em uma
arma perigosa. O uso da transferência é quase sempre para denunciá-la,
para desobstruir que ela mesma seja um dos principais obstáculos da livre
associação e do parto. E não para tornar o outro um meio,
um instrumento, para obter fins de satisfação pessoal do terapeuta.
Uso que é legal e legitimamente vedado, até pelos códigos
de ética profissionais.
E ao final de
uma análise, deve ocorrer a dissolução possível
desta névoa, desta turvação da realidade, que consiste
na própria transferência. A aceitação de um pai que
afinal foi o pai possível, mesmo que não tenha sido o rei dos
contos de fada, o maior dos super-heróis ou deus. Já foi antes
mencionada, a reiterada defesa de Freud da idéia de que a crença
em deus é a procura eterna por uma figura de um pai. Uma figura que nos
defendesse de todos os perigos e do acaso, das doenças e da morte, personagem
que existe apenas como fruto da permanente quimera do desamparo. Mas se, por
um lado, este pai superamado é apenas ilusão e idealização,
por outro, a queda na realidade também nos livra de um pai onipotente,
tirânico, distante. Se o amor ao pai que resulta do final de uma análise
é apenas humano, demasiadamente humano, também fura o balão
de um ódio de proporções divinas, de cóleras celestes
e punições dantescas.
Mesmo a gratidão
possível ao psicanalista, ao final de uma análise, tem de reconhecê-lo
como um profissional (como em outra profissão bem mais antiga, e que
também cobra afeto por hora) cujo trabalho deixou muito a desejar. Desidealização
da análise e do analista, necessária para mitigar o mais possível
identificações imaginárias. E para deixar uma sobra, este
resto de desejo de análise que faz permanecer no inconsciente um movimento,
após a alta, de manutenção do desvelamento, de continuidade
do processo analítico, para que seja sempre mais poroso o filtro e mais
fluido o desejar.
Aqui entra o abuso
da aplicação da técnica psicanalítica, quando desprovida
da ética que a transforma em psicanálise. Embora muitos religiosos,
e muitos adeptos de terapias esotéricas, ao procurarem o conhecimento
da técnica, estejam bem intencionados (apesar de, como diz o ditado popular,
deles o inferno está cheio), o uso contrário à ética
psicanalítica torna a técnica um instrumento totalitário.
Os ideais totalitários não toleram exceção, diferença,
falta. Os livros de filosofia de orientação católica, por
exemplo, desdobram-se em sofismas ao tentar conciliar a maiêutica com
a revelação divina, ou diretamente condenam o ideal socrático.
O triunfo da vontade vem do texto absoluto, seja originário da revelação
divina, seja daquele que sabe o que é melhor para todos, e dirige-se
ao todo coletivo, configura o oposto a uma modesta e pessoal verdade socrática.
Como tudo no pensamento
psicanalítico, entre os ideais totalitários e os culturais, a
questão é muito mais de quantidade que qualidade. E os ideais
culturais são embebidos de narcisismo, o que Freud já assinalava
em 1927, ao iniciar o texto dedicado à crítica da religião:
O Futuro de uma ilusão. Texto no qual Freud tenta salvar as aparências
diagnosticando a religião como ilusão, até perpetrar uma
escrita falha em que confessa: “ [...] minhas ilusões
não são, como as ilusões religiosas, incapazes de serem
corrigidas [...] não tem o caráter de delírios”
(The future of an illusion, FREUD, 1978; p.53, tradução do autor).
Mas em O mal estar na civilização, Freud abre o jogo: “As
religiões da humanidade devem de ser classificadas entre os delírios
de massa [...] desnecessário dizer que quem compartilha de um
delírio, nunca o reconhece como tal” (Civilization and it’s
discontents, FREUD, 1978; p.82, tradução do autor). Falando em
narcisismo e delírio, falamos de psicose e imaginário: Deus,
um delírio, título velho de gasto7.
Já descrevia
a velha psicopatologia psiquiátrica que o delírio se constitui
de juízos patologicamente falsificados: tais juízos trazem a marca
da certeza subjetiva absoluta, da convicção interior inamovível
e da incorrigibilidade, tanto por meio da persuasão lógica mais
irresistível, como da evidência esmagadora dos fatos em contrário
(NOBRE DE MELO, 1979). Desta definição depreendemos que fé
e delírio fundam-se no mesmo tipo de juízo interior, totalizante
e inquestionável: credo qui absurdum. Além do caráter
megalomaníaco de todo candidato a presidente Schreber. Já a verdade
socrática é sempre discreta e limitada, aberta pelas fendas entre
os significantes e no seio dos próprios significantes, deslizando sempre
para uma nova e provisória possível verdade, um simbólico
sempre com furo e furado.
Identificação
imaginária e Eu Ideal: Hipnose e Religião
Freud, no nascimento
do método psicanalítico, abandonou a hipnose, tanto pelo vislumbre
de uma percepção mais de vinte anos depois teorizada e escrita,
de como ela era a sujeição sadomasoquista do hipnotizado ao hipnotizador,
quanto pela percepção de que a própria hipnose era um obstáculo
ao autoconhecimento, a que a verdade se desvelasse. Caso admitamos o desconhecimento
de Dennett, sobre o papel da hipnose na história da origem da psicanalise,
mais interessante são as conseqüências. Ao imputar em seu
livro Quebrando o encanto (DENNETT, 2003) a importância da hipnose
e da figura de autoridade do pai na infância, para a compreensão
do fenômeno religioso, o filósofo do darwinismo contemporâneo
não apenas subscreveu Freud por meio de outra teoria e experimento, mas
também obrigou os analistas a repensarem, pela enésima vez, a
função da transferência. Substituindo a hipnose pela livre
associação e atenção flutuante, o predomínio
do simbólico sobre o imaginário, a transformação
do eu ideal em ideal de eu, Freud e Lacan deixaram a advertência de que,
por ser o analista herdeiro do xamã, é necessária uma autocrítica
permanente da prática psicanalítica.
Mas e o edifício
teórico da psicanálise? Bastante claro é o fato de, desde
o início, Freud ter escandalizado a moral e os bons costumes com suas
idéias sobre a sexualidade humana. O que o tornou anátema de todas
as religiões e totalitarismos ocidentais e orientais, e seus livros combustível
para alimentar as fogueiras nazistas. Os vários autores críticos
do fenômeno religioso, publicados no último ano, assinalam como
as religiões têm em seu fulcro cercear a sexualidade. Mas, que
resta à teoria psicanalítica sem os conceitos de: libido, pulsão,
sexualidade infantil, neurose como negativo da perversão, etc.? Quanto
à teoria, já dizia Lacan, no Seminário 22: R.S.I.,
que a consistência de todos os esquemas teóricos deriva do imaginário
(LACAN, 1974/1975). Retirando-se da teoria seu apoio na clínica, e desta
na questão da sexualidade, tendo Freud desde o início ancorado
a sexualidade no Édipo, também recorremos a Lacan, no que denominou
pontos de fuga da psicanálise, este aqui no simbólico,
quando fala de que “[...] retire-se o Édipo, e a psicanálise
em extensão, diria eu, torna-se inteiramente da alçada do delírio
do presidente Schereber” (LACAN, 2003, p. 262).
Já o uso
mais freqüente da hipnose e da transferência, pelo sacerdote carismático,
possui a função de reforçar cada vez mais a figura de um
pai imaginário hiperidealizado. Figura que, em primeiro movimento, brande
como não sendo a sua pessoalmente, propondo-se um exemplo de humildade
e devoção ao próximo, mas a de, por exemplo, um Jesus supertudo
de pensamento positivo. Em tudo a semelhança com a caricatura, parcialmente
verdadeira, do hipnotizador que distrai a atenção do paciente
com um relógio, enquanto pelas bordas da consciência penetra em
sua mente. Tal como um ventríloquo distrai a platéia de a voz
não pertencer a si próprio, mas a seu boneco.
Freud demonstrou
em Psicologia das massas e análise do eu (Group psychology and
analysis of the ego, FREUD, 1978), como se formam os grupos, por meio de um
líder erigido em pai ideal e colocado na posição eu ideal.
Para Lacan, no imaginário está constituído o pai ideal,
da unidade expressa no modelo identificatório narcísico da Sociedade
Internacional, a da Igreja e do exército, ou seja, a estrutura de grupo,
configurando outro dos três pontos de fuga da psicanálise
(LACAN, 2003). Este eu ideal é a origem de uma identificação
imaginária, produtor de supereu e recalque contra a sexualidade infantil.
Como esta é indissociável do inconsciente, o movimento iniciado
pela identificação imaginária, resultante em seu recalque,
só permite que se extravase na forma de sintoma. Logo, o sexual em todo
sintoma. Já afirmara Freud: “[...] e o diabo seguramente
nada mais é que a personificação da vida instintual inconsciente
recalcada” ( Character and anal erotism, FREUD, 1978, tradução
do autor). E haja festivais de histeria coletiva para exorcizar sintomas.
Mas Freud vai
além, recalcando em excesso, o supereu será acusado de mais: “Pensem
no contraste deprimente entre a brilhante inteligência de uma criança
saudável e os fracos poderes intelectuais de um adulto médio.
Podemos ter certeza absoluta de que não é exatamente a educação
religiosa que arca com uma grande parcela desta relativa atrofia?” (The
future of an illusion, FREUD, 1978, p.47, tradução do autor).
Alem do dano ao intelecto, dentre os autores contemporâneos citados, Dawkins
(2007) é um dos que mais enfatiza a educação religiosa,
antes que a criança tenha capacidade de discernimento, como um molde
de preconceitos que serão carregados pela vida a fora. A ojeriza de Dawkins
à psicanálise talvez não tenha lhe deixado acrescentar
que os motivos dos piores preconceitos são inconscientes. Conclui
o pensador darwinista: “Crianças pequenas são jovens demais
para tomar decisões sobre suas opiniões a respeito da origem do
cosmos, da vida ou da moral. O simples termo ‘uma criança cristã’
ou ‘criança mulçumana’ deveria soar como unhas arranhando
uma louça” (DAWKINS, 2007).
O bom é
que o imaginário também tem seu furo, mesmo na maior parte das
psicoses, ou não funciona a contento sobre tudo, ou não funciona
o tempo todo. Aqui o significante da religião tenta pedir reforço
ao da psicanálise. Ao inverso do psicanalista, que tem por meta final
a dissolução possível da transferência, o religioso
tem por meta o contínuo reforço e manutenção da
transferência. Não por acaso, a experiência pessoal nos brindou
com o conhecimento de entidades supostamente psicanalíticas, que reduziam
a psicanálise a um conjunto de apostilas, mas liam diretamente um antigo
e extenso compêndio de técnica de autoria de um psicanalista de
gerações passadas da IPA. Assim como a sorte nos agraciou ter
várias vezes escutado, de religiosos de diferentes denominações,
a afirmação que desejavam fazer formação psicanalítica
“para entender melhor da transferência”. Escutamos aí
o pedido de reforço das identificações imaginárias
e de fortalecimento do eu ideal.
Finalmente:
Psicanálise – a Irreligião?
Ao início
de alguns tratamentos, em pacientes com sintomas muito graves, ou em situações
em que uma crise é muito intensa, costuma ser válido ao psicanalista
apelar para técnicas como: aconselhamento, apoio, reforço de ego
e, mesmo, em situações emergenciais, funcionar como figura carismática
propondo-se a identificações. Principalmente hoje em dia, quando
a antiga psicanálise de cinco vezes por semana tornou-se impraticável
financeiramente.
Mas deve-se ter
por meta que todas essas técnicas colocam o terapeuta na função
de eu ideal, e há vasta literatura contrária ao incentivo de identificações
imaginárias. Constituem técnicas válidas, se permanece
o desejo de análise e para colocar o paciente em condições
de realizar uma verdadeira análise. Não para criar uma dependência
crônica ou converter a vítima às crenças do terapeuta.
Claro que sabemos de muitos casos, principalmente quando o narcisismo do terapeuta
é que precisa de mais análise, nos quais o psicanalista não
está em sua função, mesmo em longo prazo, mas no papel
do sacerdote exatamente como foi descrito acima. E da vaidade, já foi
dito ser o mais grave de todos os pecados, aquele que conduz a todos os outros.
Em Psicologia
das massas e análise do eu (FREUD, 1978), fica muito claro como a
identificação do líder com o eu ideal, pelos seguidores,
também cria um vínculo entre eles. Vínculo proporcionalmente
mais forte quanto maior a identificação, levando a crescente exclusão
daqueles que não pertencem ao grupo. Sendo este liame intragrupal fortemente
narcísico, e teorizando-se sobre o eu como fonte de narcisismo de vida,
mas também de morte, explica-se por que, cada vez mais, os não
pertencentes ao grupo são considerados inferiores, e como a pulsão
de morte tem de ser defletida, para fora do eu e do grupo, por meio da agressividade.
O fantasma do se fazer segregar torna-se mais perigoso quando se pensa
sobre o narcisismo das pequenas diferenças, descrito por Freud, e sobre
os mecanismos esquizo-paranóides, descritos por Melanie Klein.
Um grupo que se
julga portador de algo excessivamente bom, possuidor de um seio idealizado,
necessariamente projeta toda sua agressividade, coloca para fora toda hostilidade
latente entre os membros do próprio grupo, e sente-se perseguido. Este
grupo constrói um mecanismo crescente de: identificações
imaginárias, fetichização de seu líder e de seus
ideais, e de intolerância à diferença. Até que, finalmente,
como o mecanismo esquizo-paranóide acaba, cedo ou tarde, falhando, o
grupo se cindirá em dois, ou mais, grupos rivais. Grupos que, por sua
origem comum na figura de um pai ultra-idealizado, não o aceitam partilhar
com ninguém mais. Esquizo (cisão) e paranóia, aí
se tem: Deus, um Delírio. Demais detalhes teológicos e
schreberianos apenas enfeitam. O outro grupo precisa ser destruído.
Estamos falando
da exacerbação contemporânea do conflito entre os monoteísmos,
ou das sociedades psicanalíticas?
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*
Médico e Bacharel em Filosofia, ambos pela UFRJ; Mestre em Medicina (Psiquiatria)
e Mestre em Filosofia, ambos pela UFRJ; Doutor em Filosofia pela UFRJ; Psicanalista
e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise –
Seção Rio de Janeiro; desde 1984 leciona em cursos de Graduação
em: Psicologia, Pedagogia e Letras; também leciona em cursos de Especialização
em Psicoterapia Psicanalítica e de Formação Psicanalítica.
1 Referência de Freud aos
textos A Questão da Análise Leiga e O Futuro de uma Ilusão. 2 Mesmo tendo aumentado ao longo
dos anos, das críticas e processos, o número de disciplinas com
títulos referentes à psicanálise e seus principais autores,
é interessante notar a ênfase no currículo de vários
destes cursos em disciplinas não psicanalíticas, indo desde o
discurso organicista da moda, até o pólo aparentemente oposto,
com a presença de disciplinas místicas, tais como: primeiros socorros,
parapsicologia, neurofisiologia, neurociência, anatomia, bioquímica,
hipnose, sexologia, mitologia. 3 As numerosíssimas instituições
psicanalíticas brasileiras, aqui rotuladas de tradicionais, originaram-se
ou da International Psychoanalytical Association, ou de dissidências
desta ocorridas no exterior ou no Brasil (notadamente a constelação
lacaniana) ou de dissidências destas dissidências, coletivas ou
individuais. 4 Há muitos anos, quando
do início da procura crescente de formação por religiosos,
nossa colega psicanalista do CBP-RJ, Maria Angelina Khalil Aidé, havia
invertido a direção da pergunta: ao invés de Por que
a religião quer invadir a psicanálise; devemos indagar: Mas
afinal, por que falha o significante da religião? 5 Em relação ao Brasil
indicamos a excelente coletânea, da área de antropologia: Intolerância
religiosa – impacto do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro
(SILVA, 2007), e O fim da religião – dilemas da liberdade religiosa
no Brasil e na França (GIUMBELLI, 2002). 6 Agradecemos a idéia sobre
a diferença entre psicanálise e religião, nos registros
do simbólico e imaginário, proposta e discutida nos seminários
do Corpo Freudiano do Rio de Janeiro, ao Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge. 7O Caso Schreber (The
Case History of Schreber, FREUD, 1978) apresenta-se como o texto de conexão
entre a primeira parte da obra de Freud, voltada mais para a clínica,
e conceitos como a pulsão e o inconsciente, e a segunda parte de sua
obra, onde surgem os textos sobre religião e sociedade. É possível
ler o Caso Schreber como fruto de Freud, o escritor, e perceber a discreta ironia
na qual os delírios místico-religiosos e soteriológicos
de Schreber servem de voz à crítica freudiana da religião.