De Freud a Lacan: as idéias sobre a feminilidade e a sexualidade feminina
From Freud to Lacan: the ideas about femininity and feminine sexuality


Denise Quaresma da SilvaI,*
Maria Nestovsky FolbergII,
**

ICírculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
ICentro Universitário Feevale
IIAssociação Psicanalítica de Porto Alegre
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
Endereço para correspondência

RESUMO

Neste texto, expomos as idéias freudianas sobre a feminilidade, passando em revista os principais estudos de sua obra sobre o assunto, abordando algumas idéias deste autor sobre a sexualidade feminina e, a seguir, uma releitura lacaniana sobre o mesmo tema. Consideramos oportunos estes esclarecimentos, bem como nosso olhar evolutivo/histórico sobre a obra freudiana, pois encontramos na literatura e no senso comum diversos equívocos quanto ao aproveitamento dos entendimentos freudianos em relação à questão do Édipo feminino, quando autores fazem recortes teóricos pontuais da perspectiva freudiana, sem levar em consideração esta evolução histórica.

Palavras-chave: Feminilidade, Sexualidade feminina, Estruturação da feminilidade.

ABSTRACT

In this text, we expound the Freudian ideas on the femininity, covering the journal´s main studies of his workmanship on the subject, poring over some ideas of this author on feminine sexuality and following a Lacanian comprehension about this same subject.Taking as opportune these clarifications, as well as our historical and evolutive look on the Freudian workmanship as it is able to find in literature and in the common sense several mistakes considering the Freudian interpretation about the feminine Edipo once authors assume as true some theoretical fragments about the Freudian perspective without taking into consideration the historical evolution, which is here proposed to study.

Keywords: Femininity, Feminine sexuality, Sexuality structure.

Podemos inferir que as descobertas de Freud no campo da feminilidade são importantíssimas, definitivas (uma vez que os demais autores as utilizam como base) e recobrem a problemática; Freud sempre hesitou em face do problema da feminilidade, este “continente obscuro”, como ele mesmo o chama, salientando assim o caráter inacabado das suas explorações sobre a questão. Em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade”, de 1905, Freud escreveu que a vida sexual dos homens “somente, se tornou acessível à pesquisa. A das mulheres, ainda se encontra mergulhada em impenetrável obscuridade” (1972, p. 152).

Muitíssimo mais tarde, em seu opúsculo sobre análise leiga, Freud ([1923-25], p. 212) observa que a vida sexual das mulheres adultas constitui um “continente obscuro” para a psicologia e diz claramente que nunca encerrou a questão sobre a sexualidade feminina. Na XXXIII Conferência sobre feminilidade, ressalta que “através da história, as pessoas têm quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade” ( [1932-33], p. 140), e vai além: “[...] aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia” ([1932-33], p. 141).

Nos “Três ensaios” [1905], Freud propõe as bases essenciais de sua concepção de feminilidade, ou seja, a existência, até a puberdade, de um monismo sexual nos dois sexos. O conteúdo desta obra foi constantemente revisto pelo autor, tendo-o feito nas seguintes edições: 1910, 1915, 1920, 1922 e em 1924, conforme veremos a seguir.

O monismo sexual, ou seja, a hipótese de um só e mesmo aparelho genital é a primeira das teorias sexuais freudianas e tem em sua concepção a importância da particularidade e do determinismo, para a feminilidade, que o único órgão sexual reconhecido pela criança nos dois sexos é o órgão masculino, ou seja: o pênis no menino e seu correspondente na menina, o clitóris. Aponta, nos seus ensaios, a existência do complexo de castração nos dois sexos e da inveja do pênis pela menina. No início do século, nesse período de sua obra, para Freud não existe diferença real entre os dois sexos até a puberdade, não há ainda distinção entre o masculino e o feminino, e ele ainda não é muito preciso quanto à relação do complexo de Édipo (do qual havia falado na “Interpretação dos Sonhos”, em 1900) com o complexo de castração nos dois sexos. Somente em 1914, introduzirá o superego, no artigo intitulado “Uma introdução ao narcisismo”. De modo relevante, já indica a escolha do objeto materno na primeira infância e a prolongação do vínculo filial na mulher.

Ao falar da “Organização genital infantil da libido”, Freud faz um suplemento à teoria da sexualidade, desejando completar as idéias sobre a sexualidade infantil lançada nos “Três Ensaios”. Ele conclui, após anos de estudos, observação psicanalítica e experiência, que há diferença na organização da sexualidade infantil e da adulta: a organização genital adulta é genital, enquanto a infantil é fálica. Ainda somente um órgão sexual é conhecido: o órgão masculino; na menina, os processos que ocorrem são pouco conhecidos. Para a teoria freudiana nesses tempos, somente na puberdade se desenvolverá a fase genital; até lá a vagina não será descoberta. A masculinidade é equiparada a sujeito, atividade e pênis; a feminilidade é objeto e passividade.

Em 1924, escreve “A dissolução do complexo de Édipo” e se propõe a estudar os motivos e as modalidades do complexo de Édipo nos dois sexos, dando ênfase, pela primeira vez, ao curso diferente no desenvolvimento da sexualidade tomado por meninos e meninas. No entanto, a concepção de que a verdadeira organização genital está ausente até a puberdade é mantida. Para o menino, o declínio do complexo de Édipo se realizará sob ação do complexo de castração, vivendo um conflito entre seus desejos libidinosos que dirige à mãe (num Édipo positivo) e o interesse narcísico que dirige para o pênis, prevalecendo normalmente o segundo caso.

Na menina, o complexo de castração despertado pela visão do pênis nos meninos a levará a um sentimento de inferioridade e a querer compensar sua falta pela inveja do pênis. No menino, o complexo de castração o faz abandonar os desejos edipianos; já na menina, ao invés disto, o complexo de castração a faz voltar-se para o pai para tentar substituir a falta do pênis: o desejo de ter um filho do pai, como substituto do pênis é, portanto, o promotor do Édipo feminino. Freud discutiu muito mais plenamente esta citação em seus trabalhos sobre a distinção anatômica dos sexos em 1925 e em 1931, quando falou da sexualidade feminina. Em ambos, fornece informações muito diferentes sobre o complexo de Édipo na menina, o que mostra o quanto ele refazia constantemente suas considerações a respeito da questão.

Conclui Freud ([1924] que a menina afasta-se do pai por não ter seu desejo de ter um filho realizado. A menina não teme a castração, por já ser castrada. Enquanto no menino o Superego se forma pela introjeção da autoridade paterna, na menina são fatores externos que agirão, como a Educação, a intimidação, o temor de não ser mais amada.

Escreve em 1925: “Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos” e postula que não acredita que a masturbação dos meninos esteja, já desde o início, relacionada aos seus desejos edipianos. No que diz respeito à pré-história do complexo de Édipo, não há clareza absoluta; acredita que o menino tenha uma fase terna com o pai, identificando-se com este, não tendo nenhum sentimento de rivalidade em relação à mãe. Já, na menina, o complexo de Édipo levanta uma suposição extra: como a menina elege o pai como objeto de investimento amoroso e abandona a mãe? Antes de a menina desejar ter um filho com o pai, precede uma longa pré-história. Freud questiona: a descoberta da zona genital (clitóris ou pênis) não estaria ligada à perda do seio materno, como se trocassem uma fonte de prazer por outra?

Em 1925, ele postula que este desapontamento gerado pela ausência do pênis, na menina, acaba culminando num afastamento da mãe; acusa-a de amar mais os outros filhos (que têm um pênis) e pára de se masturbar, decepcionada com seu clitóris. A masturbação é tida na obra freudiana como algo ligado à virilidade; ele postula que o reconhecimento da diferença sexual obriga a menina a renunciar à masculinidade e a dirigir-se à feminilidade. Agora, a menina renuncia ao pênis, substituindo-o pelo desejo de ter um filho e, para isto, volta-se ao seu pai: a mãe passa a ser uma rival, a menina tornou-se uma mulher.

Para Freud [1925], o complexo de Édipo na menina é uma formação secundária, pois enquanto nos meninos o complexo de Édipo sucumbe ao complexo de castração, nas meninas ele torna-se possível e é promovido por este, e o complexo de castração, nos dois casos, inibe a masculinidade e encoraja a feminilidade, sendo que a diferença entre o complexo de castração nos dois sexos deve-se às diferenças anatômicas. A menina não teme a castração, pois já é anatomicamente castrada. O menino teme a castração, ela é uma ameaça. Do complexo de castração resulta não somente uma repressão aos desejos edipianos, mas um abandono total aos investimentos libidinais, sublimando-os. Os objetos serão incorporados ao Ego, no qual formarão o núcleo do Superego. O Superego é herdeiro do complexo de Édipo, sendo que, em casos “normais ou ideais”, o Édipo em meninos não existe nem mesmo no inconsciente, sendo que isto é, para Freud [1925], uma “vitória da raça sobre o indivíduo”.

Em 1931, apresenta um estudo intitulado “Sexualidade feminina”, em que renuncia às descobertas sobre as conseqüências das diferenças sexuais anatômicas anunciadas em 1925 e dá nova ênfase à intensidade e longa duração da ligação pré-edipiana da menina à mãe. Faz um longo exame do elemento ativo na atitude da menina com a mãe e na feminilidade em geral.

Observa que, antes de surgir a ligação da menina com o pai, existia uma forte ligação desta com a mãe, sendo que, em muitos casos, esta persiste para além dos quatro ou cinco anos: “Tínhamos de levar em conta a possibilidade de um certo número de mulheres permanecerem detidas em sua ligação original à mãe e nunca alcançarem uma verdadeira mudança em direção aos homens” ([1931], p. 260). Salienta que existem mulheres que estacionam em sua ligação materna e jamais completam a mudança de objeto. Ressalta que a fase pré-edipiana na mulher é muito mais importante do que havia suposto e aponta que a universalidade do Édipo precisa ser repensada, levando-se em conta o princípio do Édipo negativo nas meninas; durante a fase de ligação com a mãe (Édipo negativo), o pai é considerado um rival, mesmo que não o hostilize tanto quanto os meninos.

Freud [1931] recusa-se a dar o nome de complexo de Eletra ao Édipo feminino, pois não há analogia entre o Édipo feminino e o Édipo masculino. No menino, a visão dos órgãos femininos introduz o complexo de castração, tendo como conseqüências a destruição do Édipo, o desinvestimento da mãe e a criação do superego, sendo que um dos resíduos do complexo de castração será sua depreciação da mulher enquanto ser castrado. A menina reconhece sua castração e a superioridade do menino, mas protesta contra este estado, restando-lhe três saídas: renunciar à sexualidade, reivindicar o pênis ou aceitar a feminilidade.

No terceiro capítulo desse artigo sobre a feminilidade, Freud questiona: “O que exige a menina da mãe?” ([1931], p. 270). Aponta para a passividade e a atividade e pergunta-se: quais os objetivos sexuais da menina em relação à mãe? Identifica “atividade-passividade” com masculinidade e feminilidade, observando que as primeiras vivências sexuais da criança são passivas em relação à mãe. Mas uma parte da libido manifestar-se-á rapidamente de modo ativo: “mamar” substituirá o “ser alimentado”; a criança tentará fazer da mãe um objeto e a si mesma atribuirá um papel de sujeito ativo: a mãe é, com efeito, o primeiro sedutor na vida da criança, pois executa nela os cuidados corporais. Lembra-nos, no entanto, que existe apenas uma libido, sejam os objetivos ativos ou passivos.

Em 1932, Freud escreve seu último artigo sobre a feminilidade, retomando seus escritos anteriores: “Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” [1925] e “Sexualidade feminina” [1931]. Revê suas posições anteriores sobre o desenvolvimento psicossexual da mulher, salientando ainda mais o papel do complexo de castração. Nesse texto, levanta o problema da bissexualidade, pois anatomicamente um indivíduo não é totalmente macho nem totalmente fêmea, somente os produtos sexuais são unívocos: espermatozóide e óvulo.

Já a psicologia mostra-nos que os comportamentos são qualificados como sendo “viris” ou “femininos”, em relação à anatomia ou à convenção social: “viril” é dado como “ativo”, e “feminino”, o que for “passivo”. Assim, teremos que a agressividade é relacionada ao masculino. Mas, na natureza, defrontamo-nos com espécies que não atestam esta hipótese, como nas aranhas (conforme exemplifica Freud, [1932], e a vida humana também não a comprova, tanto é que, na dupla mãe-filho, a mãe é o elemento ativo. Confundir feminilidade com passividade e masculinidade com atividade constitui, segundo esse autor, é um grave erro. As regras sociais e sua própria constituição forçaram as mulheres a reprimir seus instintos agressivos, daí as formações de tendências fortemente masoquistas voltadas para dirigir para si mesma as erotizações: o masoquismo é, portanto, essencialmente feminino.

Apresenta-se para esse autor um problema: como este ser bissexual que é menina torna-se mulher? No início da fase fálica, devemos admitir que a menina é um homenzinho, não há diferença entre a menina e o menino, inexiste a vagina, e a masturbação fálica é a mesma para ambos, sendo o clitóris comparado a um pequeno pênis ([1932], p. 146). A mudança de zona erógena faz-se necessária para a masturbação feminina: do clitóris, a masturbação tem que passar à vagina. Mas esta mudança de zona erógena acompanha uma mudança objetal: a menina abandona sua ligação primária com a mãe e toma o pai como objeto, sempre levando em conta que a fase pré-edipiana desempenha um importante papel para o desenvolvimento da menina, nas fases que ela atravessa: oral, anal, fálica, ativa, passiva. Este período caracteriza-se por forte ambivalência.

Na fase fálica, a menina deseja fazer um filho na mãe e ter um dela, é aí que se situa o ponto de fixação da paranóia na menina. A partir desta fase, desenvolve-se na menina um ódio intenso pela mãe, que a fez castrada como ela o é. A menina reprova a mãe por não lhe ter dado um pênis: nasce a inveja do pênis, que persistirá por toda a vida, podendo ser sublimado, como na escolha de uma profissão que lhe permita satisfazer, mesmo que parcialmente, este desejo reprimido.

A descoberta da castração, para Freud, é determinante na menina: seja em direção à neurose, seja em direção a um problema de complexo de virilidade ou em direção à sexualidade normal. Determinará também seu afastamento da mãe, pois seu amor era dirigido a uma mãe fálica, não a uma castrada. Esta descoberta leva a menina à renúncia da masturbação clitoriana e à atividade fálica; liga-se então ao pai, primeiro desejando um pênis daquele que o possui; depois se estabelece a situação edipiana normal, passando a desejar um filho substituto do pênis. No brincar, a menina brinca de bonecas, identificando-se inicialmente com a mãe ativa, mas logo esta boneca representa o filho do pai. Depois, a inveja do pênis é satisfeita pelo nascimento de uma criança, sobretudo se for do sexo masculino. O complexo de castração, longe de destruir o complexo de Édipo, o mantém.

Deparamo-nos, portanto, com um dos elementos precursores do que indicaremos, posteriormente, como concernente ao enigma do feminino, e que se constitui na dissolução apenas parcial do complexo edípico na mulher e o conseqüente prejuízo que daí advém para a formação do superego, algo que será ainda explorado por André (1998), indagando-se a partir do trabalho de 1986, intitulado “O que quer uma mulher?”

Freud observa que, após o nascimento do primeiro filho, podem ocorrer transformações na mulher de caráter identificatório. Desta forma, começa a se desenhar o extenso caminho que aponta para as especificidades da estruturação feminina e a importância que a primeira relação com a figura materna representa para este processo, bem como o próprio “pai da Psicanálise”, advertindo para a incompletude da sua obra, abre a possibilidade de novos postulados e construções a partir de sua teoria.

Lacan, relendo Freud, mostar ser possível entender o discurso freudiano, livrando-o das aderências biológicas, compreendendo as “fases” ou “etapas” como “estruturas” mais complexas, atemporais, organizadas a partir da relação com o Outro na dialética da demanda de amor e da experiência do desejo (Lacan, 1958).

No sentido de enveredar nos meandros desta relação, retomamos os textos freudianos, nos quais o autor relaciona a importância da mãe a uma problemática de ordem fálica, ou seja, dependente exclusivamente da concepção que a criança tem acerca da distinção sexual anatômica, algo que pode ser exemplificado pelo fato de ser a mãe uma das últimas mulheres a ser reconhecida como destituída de um pênis. Esta questão da dialética fálica, do ter ou não ter o falo, permanece mesmo após a dissolução do complexo de Édipo, como pivô de toda articulação da sexualidade, deixando suas marcas principalmente sobre a menina, podendo desembocar numa atitude reivindicatória desta em relação à mãe – dinâmica que Freud discutiu melhor em “A Sexualidade feminina” de 1931 e “A feminilidade” de 1933, conforme expôs anteriormente, mas cujo prenúncio já se encontra descrito em textos como “A dissolução do complexo de Édipo”, de 1924.

Nesse último, Freud [1924] afirma que, se, por um lado, a ausência de um pênis coloca a questão da castração para a menina como um fato consumado ao passo que para o menino se apresenta a constante ameaça ante a perda do órgão, por outro, não é sem resistências que a menina se defronta com a falta de um pênis.

Num trecho seguinte, Freud escreve que esses “dois desejos – possuir um pênis e um filho – permanecem fortemente catexizados no inconsciente e ajudam a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior” ([1924] 1972, p. 223-224). No entanto, se o pai aparece como figura central no desejo feminino nesse momento de sua constituição, o mesmo não se deu por ocasião do início desse processo, denominado por Freud de fase pré-edípica, o qual será discutido em suas conferências de 1931 e 1933. Em ambos os textos, a mãe é descrita como o primeiro objeto de amor da menina, e essa primeira relação, como responsável por lançar seus reflexos sobre toda a vida sexual da mulher, sendo que o endereçamento ao pai nada mais seria que o primeiro deslocamento da figura materna, guardando, por isso mesmo, suas características primordiais, o que poderá se estender inclusive para o relacionamento com os parceiros amorosos escolhidos na vida adulta.

É esta presença marcante da relação da filha com a mãe que faz com que autores como André (1998) questionem a existência de uma metáfora paterna em funcionamento na estrutura feminina, levantando, em seu lugar, a hipótese de haver em jogo, na verdade, apenas um deslocamento metonímico associado à figura materna, e não uma nova significação que substitua precisamente uma relação anterior, justificando sua dúvida ao colocar que “tudo se passa na realidade como se, para a menina, o pai nunca substituísse completamente a mãe, como se fosse sempre esta última que continuasse a agir através da figura do primeiro” (André, 1998, p. 179).

André (1998) esclarece que não se trata, no caso da menina, de um não-assujeitamento ao Nome-do-pai (o que equivaleria a classificar todas as mulheres como psicóticas), mas marca ao mesmo tempo a impossibilidade de a mulher inscrever-se totalmente na ordem fálica, fazendo vislumbrar aquilo que, em termos freudianos, foi denominado como insuficiência do superego feminino e que, futuramente, Lacan ([1972-73]1985) descreverá como sendo característico da feminilidade, qual seja, o fato de a mulher ser não toda castrada.

Em seu texto Uma menina e sua mãe, no final, André (1998, p. 186) resume a relação pré-edípica com a figura materna dizendo que “o destino da menina aparece, assim, como o de uma metáfora impossível ou de uma luta permanente para se elevar do registro metonímico para o da metáfora”. Diferencia ainda esta relação primária de uma fusão ou comunhão, ressaltando tratar-se antes “de uma luta ferrenha cujo objetivo, em última instância, é o de determinar quem vai devorar o outro” (1998, p.186-187).Trata-se, dessa forma, de uma relação marcada pela ambigüidade amor-ódio, ambigüidade esta referida por Freud ([1923], p. 153) e esta é mais uma dificuldade a ser enfrentada pela menina: se, por um lado, para que ela possa se endereçar a um homem, faz-se necessário esta ruptura analisada por Freud com relação à figura materna, por outro, ela deverá identificar-se a esta figura “odiosa”, a fim de construir sua feminilidade.

Constitui-se, assim, um processo identificatório em duas vertentes: uma marcada pela fase pré-edípica, na qual a mãe é tomada como primeiro objeto de amor, e outra, advinda do complexo de Édipo, em que a mesma mãe será vista como uma rival a ser eliminada para que a menina possa ocupar-lhe o lugar junto ao pai. Diante dessa relação conflitiva e de acordo com o modo pelo qual a menina significa sua castração, restam-lhe três saídas possíveis do complexo de Édipo: a inibição sexual ou a neurose, o complexo de masculinidade e a feminilidade normal propriamente dita. O primeiro caso é caracterizado sobretudo por uma atitude de desvalorização da menina em relação à mãe, à medida que constata sua falta de pênis, o que a leva ainda a relegar sua atividade masturbatória a um plano secundário, já que seu clitóris também perde seu valor diante da impossibilidade de ostentá-lo como objeto fálico na mesma proporção que o pênis ocupa para o menino. Assim, como conseqüência última, ocorre o recalque, por parte da menina, de grande parte de suas inclinações sexuais. Já o complexo de masculinidade será definido como um momento no qual a menina se recusa a reconhecer a falta de pênis materno e, conseqüentemente, sua própria falta, rebelando-se de modo a acentuar sua masculinidade prévia, apegando-se a uma atividade clitoridiana e refugiando-se numa identificação com sua mãe fálica ou com seu pai, permanecendo, desta maneira, vítima da esperança de um dia ainda vir a ter um pênis e conserva, desse modo, uma relação intrínseca com a inveja do pênis – emergente do momento em que a menina vê o traço identificatório do sexo do pai. Traz como conseqüências o sentimento de inferioridade, o modo particular pelo qual se constitui o ciúme feminino, o afrouxamento da ligação da mãe enquanto objeto, além da intensa reação contra a masturbação clitoridiana.

Nesse sentido, esse complexo surge não só sob as influências e particularidades das vivências pré-edípicas, como ainda se associa à imagem que a menina guardará de seu próprio corpo a partir da relação primordial com a mãe. A mãe é, num primeiro momento, os dois: o outro (pequeno outro) e o Outro (grande Outro) da filha, ou seja, o pequeno outro da amamentação é também o primeiro grande Outro da transmissão de valores, de gostos, de apropriação do corpo, através de quem vai chegar à menina o pai da sua lei. Ambas as mães, que coexistem em uma só, são portadoras da mensagem, pois o pai chega à filha pela mãe. Como conseqüência, o sujeito fixado nesse ponto da constituição subjetiva cai vítima de um abismo profundo entre o que se coloca como impotência e impossibilidade. Não sabe, ou não pode saber, da não-existência da relação sexual e, como tal, acredita estar sempre em defasagem, semelhante à mulher descrita por Freud [1923] em relação à inveja do pênis e ao complexo de inferioridade.

Por fim, somos colocados diante da terceira possibilidade levantada por Freud [1933] – uma saída pela feminilidade – que pode ser explicada pela capacidade da mulher em proceder a um deslizamento simbólico, abrindo mão do objeto materno e se dirigindo ao pai, figura á qual endereçará seu desejo por um filho, como representante do estabelecimento de um desejo feminino por excelência.

Segundo Freud, “sua felicidade é grande se, depois disso, esse desejo de ter um bebê se concretiza na realidade; e muito especialmente assim se dá, se o bebê é um menininho que traz consigo o pênis tão profundamente desejado” ([1933] p. 128). São conhecidas as objeções à equivalência, traçada por Freud, entre ser mulher e ser mãe: objeções que se sustentam principalmente se nos ativermos ao trecho seguinte de suas observações, quando o autor nos diz ser muito freqüente que, “em seu quadro combinado de ter ‘um bebê de seu pai’, a ênfase seja colocada no bebê, ficando o pai em segundo plano”.

Assim, ao contrário de significar um posicionamento feminino marcado pelo amor por um homem, tratar-se-ia, mais uma vez, de uma busca pelo falo1 e, como tal, podendo ser designada como uma tentativa de se colocar sob a inscrição masculina, e esta é, a nosso ver, a grande contribuição da teorização lacaniana: descola definitivamente a posição da feminilidade como sendo derivada da posição diante do amor de um homem (o pai), ressignificando esta pela posição em relação ao falo.

Para Lacan (1956-57), o fato de a criança ser o falo para a mãe é o que “constitui uma discordância imaginária” que produz como fruto da frustração o que ele chamou de “dano imaginário”; essa discordância é apreendida pela constatação de que a criança nunca se reduz perfeitamente ao falo, existindo “sempre para a mãe algo que permanece irredutível no que está em questão”. Em resumo, não é a criança que é amada, mas uma certa imagem materna que a reveste e à qual busca se conformar, consistindo nisso o que subsiste de narcísico na relação.

Além disso, Lacan (1956-57) ressalta que, ao mesmo tempo em que as experiências pré-edípicas serviriam de preparação para a conflitiva edipiana, elas só seriam significadas na conclusão do complexo de Édipo, introduzindo dessa maneira a noção de aprés-coup em seu ensino, o que posteriormente permitirá discutir a questão feminina para além da teoria freudiana, não só por referência à figura materna, mas também por referência ao posicionamento paterno.

Lacan(1972-73)define como espe-cificidade no processo de estruturação feminina, a conseqüente falta de um significante capaz de nomear a mulher, a partir desse posicionamento. Ao longo de seu estudo, vai definir a sexualidade em termos de posições – feminina e masculina –, restando a todo ser falante ocupar uma dessas duas posições, as quais não se encontram necessariamente vinculadas ao sexo biológico.

Através da leitura lacaniana da feminilidade, torna-se ainda possível voltarmos ao texto de 1933, a fim de compreendermos melhor o que Freud tentou significar ao dizer que “o desejo que leva a menina a voltar-se para o seu pai é, sem dúvida, originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e que agora espera obter do seu pai” ([1933] p. 124).

A partir desta releitura, vemos que a posição feminina se caracteriza basicamente por sua capacidade de se dirigir a um Outro inominável, presentificado pelo que há de divino ou de demoníaco no universo feminino, e que possibilita à mulher se satisfazer com um gozo suplementar, ao voltar-se para si mesma ou para o místico, ao mesmo tempo em que pode lançar seu olhar para o campo masculino, à procura do falo. Desse modo, não é o pai o objeto de amor em si, mas aquilo que ele possa lhe dar. A procura feminina continua na direção de conquistar um objeto que lhe sustente a idéia de possuir um pênis, o que, por extensão, permite que, no encontro enganoso com esse objeto, a relação com o pai possa ser colocada em segundo plano.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Denise Quaresma da silva
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Maria Nestrovsky Folberg
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Recebido em 01/05/ 2008

 

 

* Psicóloga. Psicanalista. Membro do Instituto de Psicanálise do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação pela UFRGS, linha de Pesquisa Psicanálise e Educação. Professora do Centro Universitário Feevale dos cursos de graduação de Psicologia e Psicopedagogia, do Pós-Graduação e Especialização em Processos de Aquisição e Desenvolvimento da Linguagem e do Pós-Graduação em Arteterapia; Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Trabalho.
** Psicanalista. Analista membro da Associação psicanalítica de Porto Alegre. Professora do PPG de Educação da UFRGS, orientadora de Mestrado e Doutorado. Autora dos livros Desfazendo o Feitiço: a tentativa de reconstituição do sujeito (POA: Editora Evangraf, 2006) e Crianças Psicóticas e Autistas: a construção de uma escola (2ª ed. POA: Editora Mediação, 2008).
1 Ver O Seminário livro 3, “As psicoses”, Aula 18, 09/04/58, “O desejo e sua interpretação” e “A significação do falo”.