Este ensaio parte
do conceito lacaniano de traço unário, como marca primordial da
constituição do sujeito, para discutir as marcas do sujeito no
caso das psicoses. A partir da reflexão suscitada por dois documentários
brasileiros – Moacir, arte bruta e Estamira – levanta-se a hipótese
de que a arte em Moacir e a significação delirante em Estamira,
ambas acolhidas pela arte do cinema, revelam um savoir faire com o real que
dá notícias das marcas da singularidade do sujeito em sua diferença
absoluta.
Palavras-chave:
Traço Unário, Sujeito, Psicose, Arte.
ABSTRACT
This essay parts
from the Lacanian concept of unary trait, as a mark of the primary constitution
of the subject, to discuss the marks of the subject in the case of psychoses.
From the discussion raised by two Brazilians documentaries: Moacir, crude art
and Estamira, there is a chance that art in Moacir and meaning in delirious
Estamira, both treated by film art, show a savoir faire with the real which
give news of the marks of the uniqueness of the subject in its absolute difference.
Keywords:
Unary trait, Subject, Psychosis, Art.
Tomei o traço
como ponto de partida deste trabalho por duas razões: a primeira delas
inspirada em um dos exemplos que apresento para falar de um savoir faire1
que a criação artística evidencia. A segunda diz respeito
às formulações de Lacan sobre o traço unário,
marca primeira do surgimento do sujeito a partir do significante. No Seminário
sobre A Identificação2,
Lacan afirma que todo significante é constituído pelo traço,
isto é, tem o traço como suporte. Ele parte da noção
de traço único, apresentada por Freud na teoria da identificação,
como identificação parcial a um traço do objeto, transformando
o único freudiano em unário, termo através
do qual introduz sua concepção do um, fundamento da diferença
que demarca o conceito de identificação pela via simbólica,
afastando-se da idéia de unificação que perpassa as identificações
imaginárias.
O traço
unário surge no lugar do apagamento do objeto, sendo antes um traço
distintivo, de pura diferença, que marca a divisão do sujeito
pela própria linguagem, onde algo, que diz respeito ao objeto, se perde.
Por isso, como um nome, marca um a um, na sua singularidade. O nome
próprio seria um exemplo de traço unário, na medida em
que se situa como marca distintiva e não se traduz. Na constituição
do sujeito, o traço unário tem função de bastão,
como traço distintivo, tanto mais distintivo quanto mais está
apagado, pois é na medida em que se reduz ao traço sem qualidades,
isto é, quanto mais ele é semelhante, puro bastão, mais
ele funciona como suporte da diferença. É o traço unário
que inscreve no real do ser falante a diferença como tal, já que
no real não há nada. Se o traço apaga a Coisa (das
Ding), dela restando apenas rastros, a passagem ao significante se dá
a partir dos diversos apagamentos que farão surgir o que Lacan chama
de modos capitais de manifestação do sujeito. O traço unário
é, portanto, significante não de uma presença, mas de uma
ausência apagada que, a cada volta, a cada repetição presentifica-se
como ausência. É aí que Lacan localiza o ponto radical,
arcaico, suposto na origem do inconsciente. Ele aproxima a função
do traço unário do que Freud chama de narcisismo das pequenas
diferenças, dizendo que é a partir de uma pequena diferença
– que é uma diferença absoluta, incomparável –
que se constitui o grande I, do Ideal do eu, que acomoda o propósito
narcísico. Nesta direção, o sujeito se constitui como portador
ou não deste traço unário.
Esta última
formulação nos coloca uma indagação: como pensar
a emergência de sujeito não marcado pelo traço unário,
não marcado pelo significante? Como ela se articula ao que Lacan se refere
como modos capitais de manifestação do sujeito, a partir dos diversos
apagamentos da Coisa através dos quais o significante vem à luz?
Como pensar a marca do sujeito no caso das psicoses?
Dois documentários
brasileiros recentes chamaram-me a atenção, ao trazerem de forma
bastante contundente as marcas da singularidade do sujeito: Moacir, arte
bruta, de Walter Carvalho, e Estamira, de Marcos Prado. São personagens
que se caracterizam pela singularidade e pela diferença, não são
comuns.
Moacir é
um homem de cerca de 40 anos, que vive com sua família em uma área
rural do país, na Chapada dos Veadeiros, onde desenha e pinta desde os
sete anos de idade. O que mais impressiona em Moacir é o seu traço
que percorre o filme, não apenas através da exibição
de desenhos já acabados ou de imagens que povoam as paredes de sua pequena
casa, mas que se movimenta ao longo do filme, já que o diretor optou
por acompanhar o seu processo de criação durante uma semana. O
traço de Moacir invade o filme, através de demônios, mulheres
nuas, animais, plantas, em imagens de rara beleza.
Homem franzino,
com problemas de audição, fala e formação óssea,
vive num ambiente extremamente humilde, tirando seu sustento da lavoura e de
outros trabalhos e, mesmo hoje, após ter sido ‘descoberto’
como artista e reconhecido até internacionalmente, mantém o mesmo
modo de vida. Pouco fala e podemos acompanhar sua história pelos depoimentos
dos familiares e vizinhos, que atestam seu lugar sui-generis na comunidade.
Segundo sua mãe, foi aos sete anos que pediu lápis e papel para
desenhar. De início, traçava seus desenhos com a cabeça
coberta por uma manta, isolado da família e do mundo. Aos poucos passou
a se comunicar com as pessoas e hoje demonstra satisfação em mostrar
seus trabalhos, levando-os de bicicleta para a pequena vila próxima.
Ter aceitado fazer o filme é uma evidência disto.
Sua esquisitice
e principalmente as figuras de capetas e de mulheres nuas com que enfeita as
paredes da casa já provocaram incômodo entre os vizinhos e atraíram
a ira dos evangélicos do lugar. Os temas de seus desenhos vêm-se
modificando ao longo do tempo, com o contato com a televisão e com aqueles
que vêm de fora para apreciá-los, mas, como diz um vizinho, o
traço é sempre o mesmo. No depoimento de sua irmã,
vemos a surpresa pelo fato de pintar figuras eróticas, desenhar mulheres
nuas, apesar de nunca ter tido vida sexual ativa nem visto mulheres –“nem
mesmo nós”, diz ela – sem roupa. Seus desenhos não
derivam da visão de algo externo, tanto que ele desenhava inicialmente
no escuro, podendo ser tomados como expressão bruta do inconsciente,
como diz Antonio Quinet, em um pequeno comentário sobre o filme,
[....]
o que Moacir desenha são imagens oníricas – fortes, sensuais,
violentas – que parecem virem à luz sem disfarce diretamente
das obscuridades do ser. Moacir nos entrega, na sua particularidade, a brutalidade
e pureza das pulsões sexuais, as fantasias escabrosas e exuberantes
que não estão coladas na realidade chapada de um cotidiano banal.3
Moacir é
analfabeto, mas assina seu nome em todos os trabalhos. A assinatura é
a marca do sujeito, sua identidade, inscrição do nome próprio,
como tal única, não precisando ser sequer entendida, apenas atestada
ou reconhecida. A assinatura vem nomear a singularidade de Moacir, que se evidencia
pelo traço que inventa a partir da coisa apagada, em um processo de criação
que faz dele Moacir. O longo depoimento de seu pai emociona pelo modo como reconhece
o filho e sua diferença, ao dizer, entre muitas falas tranqüilas
e cheias de sabedoria, que Moacir faz coisas que ele (pai) não sabe fazer,
ao mesmo tempo em que ele (pai) faz coisas que Moacir não sabe fazer.
Quanto à loucura, diz sabiamente a Moacir: não repita ou não
se importe com isso, porque é algo que já fez sua mãe sofrer
muito.
Em Estamira, o
que é onipresente no filme, além das belas e fortes imagens de
Marcos Prado sobre o lixão de Gramacho, é a sua palavra. É
ela que faz o filme, construindo uma personagem que nos é apresentada
em sua verdade singular e brutal que, com sua veemência, nos toca no que
há de mais íntimo e ao mesmo tempo mais estranho em nós
mesmos. Impressiona como o diretor do filme pode captar o discurso de Estamira
com tamanha autenticidade, o que nos leva a concordar com Musso Greco, em um
dos inúmeros artigos escritos sobre o filme, ao dizer que Marcos Prado
realiza seu filme “sob o risco do real”4,
neste último limite, na “beira do mundo” como diz a própria
Estamira. Ele não a toma como objeto de seu filme. Simplesmente testemunha,
acompanha ou “secretaria”, como diz Jacques Lacan a respeito de
quem se dispõe a escutar um psicótico, o que faz de Estamira co-autora
do filme e, portanto, sujeito.
Estamira é
o resto, como são as mulheres pobres, negras e loucas. Estuprada, prostituída,
traída e abandonada, ela faz do resto outra coisa, ao trabalhar incessantemente
no lixão, onde identifica os “restos”, mas também
o “descuido”, assinalando a importância do cuidado para se
ter as coisas. Cuidado este que evidencia em sua pequena, frágil, mas
bem cuidada casa, onde encontra um lugar para viver de forma independente. É
através da linguagem, contudo, que afirma o seu lugar no mundo, a sua
existência: na maneira como usa as palavras, como questiona as suas significações,
inventando novas significações, no discurso que elabora a partir
de seus conflitos com Deus e com os homens, na luta com o “Trocadilo”
– modo como designa significativamente esta entidade com a qual se debate
– assim como com os “espertos ao contrário” através
dos quais denuncia a hipocrisia dos homens no mundo. Ela diz: “não
tem inocente, só esperto ao contrário”. Sua fala - em diversos
momentos extremamente lúcida - denuncia as práticas psiquiátricas
que tomam o sujeito como objeto, ao acusar os psiquiatras de “copiadores
de receitas. É através de seu nome Estamira, que pronuncia de
modo enfático como Esta-mira, que ela se sustenta como sujeito que “não
é comum”. Em seu delírio, diz: “Minha missão,
além de ser Estamira, é mostrar a verdade e capturar a mentira....
Você é comum. Eu não sou comum...Eu só a visão
de cada um. Ninguém pode viver sem mim, sem Estamira”.
Da beira do mundo,
do lixo, do manicômio, Estamira retorna em sua reconstrução,
ao afirmar, assumindo um lugar: “Eu sou a beira do mundo, estou em todo
lugar”. Está em todo lugar, porque é abstrata (“a
criação é toda abstrata. A água é abstrata
[...], o fogo é abstrato. A Estamira também é abstrata”).
Quanto ao homem, “é o único condicional”.
Nessa operação
discursiva, podemos pensar que ela se inscreve no real, como pura letra que
inventa a partir do apagamento ou da ausência de traço, lembrando
Lacan, ao se referir aos “modos capitais de manifestação
do sujeito”. Ao contrário de James Joyce, que faz da letra
lixo, Estamira faz do lixo letra. Não se pode esquecer
o papel do diretor do filme que, tal como um analista, a acompanhou durante
quatro anos, escutando e acolhendo o discurso delirante. Citando mais uma vez
o artigo de Greco, na montagem do filme, Marcos Prado acolhe o delírio,
[...]
sem tentar reduzi-lo, contestá-lo, explicá-lo, ou aderir a ele.
Com isso, potencializa e amplifica a voz e o discurso de Estamira, permitindo
que o sujeito filmado/ “analisado” encontre, de fato, um lugar
no mundo: a inscrição do seu nome próprio, com uma significação
única e absoluta. Nessa parceria, este documentarista brilhante sabe
também se eclipsar (eclipsar, mas não desaparecer), para que
o discurso de Estamira se imponha, e conduza a narrativa.5
Esses dois exemplos
que trouxe para discutirmos o que chamei inicialmente de marca do sujeito, conduzem,
a meu ver, aos desenvolvimentos que Lacan fará, já no final de
sua obra, em especial no Seminário 23, O Sinthoma, quando dá
ao traço unário uma outra sustentação a partir do
nó borromeano. “O homem é um conjunto trinitário...
do que chamamos elemento. Um elemento é o que faz um –
dito de outro modo, o traço unário [...]. A característica
de um elemento é que instauramos a combinatória de elementos.
Real, imaginário, simbólico”6.
É a partir da articulação dos três registros no nó
borromeano, ao qual acrescenta um quarto elo que amarra estes registros, que
é possível repensar a questão do sujeito.
Ainda que a noção
freudiana de Verwerfung seja tomada por Lacan para caracterizar a psicose,
ao defini-la como mecanismo específico que determina esta estrutura clínica,
traduzindo-a como foraclusão do Nome-do-Pai, o próprio
Lacan indica a possibilidade de se pensar outros modos de amarração
dos três registros, para além do Nome-do-pai, que sustentem o sujeito
na sua diferença absoluta. A noção de Sinthoma,
desenvolvida por ele no seminário acima citado, abre caminho para pensarmos,
pela via do nó borromeano, um quarto elo que amarre os registros –
real, simbólico e imaginário –, que venha em suplência
à foraclusão do Nome-do-pai, como foi o caso de Joyce, com sua
arte. A arte, como savoir-faire com o real, faz surgir a letra como
litoral de gozo, marca que se situa não mais do lado do simbólico,
mas do real. Nos casos apresentados, podemos supor que, assim como Joyce, Moacir
com sua arte constrói um nome, articulando o traço, como letra,
ao gozo, no Sinthoma. Já Estamira, do alto de seu delírio,
evidencia o que Lacan enfatiza em “Lituraterra”7,
o caráter litoral da letra: Estamira é este próprio
litoral, quando diz – “eu sou a beira do mundo, estou em todo lugar”.
Em sua invenção, por meio do discurso delirante, ela mostra a
letra em sua face real, tal como Lacan a concebe, sendo um exemplo vivo do que
podemos elaborar a partir da teoria psicanalítica a respeito do que marca
um sujeito em sua mais primitiva origem. Sem esquecer que foi por meio da arte
cinematográfica que pudemos ter acesso a estes sujeitos.
*
Este trabalho foi apresentado no I Colóquio Psicanálise e Arte
– Saber Fazer com o Real, promovido pelo Programa de Pós-graduação
em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ em 29 e 30 de outubro
de 2007. ** Psicanalista; membro de Intersecção
Psicanalítica do Brasil; Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional
(UFRJ); Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UERJ; Coordenadora
do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise do Instituto
de Psicologia da UERJ; Procientista da UERJ; Pesquisadora do CNPq; autora do
livro A ética da diferença: um debate entre psicanálise
e antropologia ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996). 1 Essa expressão é
utilizada por Jacques Lacan no Seminário 23, O Sinthoma, 1975-1976.
(Jorge Zahar Ed., 2007). 2 LACAN, Jacques. Seminário
9: A Identificação (CEF, 2003). 3 QUINET. A. Comentários
sobre o filme In: Moacir, arte bruta. Disponível em: http://www.republicapureza.com.br/moacir/antonio.htm.
Acesso em: 2006. 4 GRECO, M. Na beira do mundo, a
visão da verdade. Disponível em: http: http://www.cinemaencena.com.br/estamira/blog.asp.
Acesso em: 30 set. 2006. 5
Id., ibid. 6 LACAN, J. O seminário,
livro 23. Op.cit., p.142. 7 LACAN, J. Lituraterra. In: ___.
Outros Escritos. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2003.