Ressonâncias do romantismo no discurso freudiano sobre o amor
Romanticism’s
ressonance in the freudian speech about love
José Euclimar Xavier de MenezesI,*; Maria Josephina Silveira BarrosII,** IUniversidade Estadual de Campinas
IPontificia Università Lateranense IUniversidade Católica de Salvador IFaculdade
Ruy Barbosa IIUniversidade Católica do Salvador
IIFaculdade Ruy Barbosa IIUniversidade Federal da Bahia Endereço
para correspondência
RESUMO
O artigo caracteriza-se
como um ensaio cujo objetivo é investigar o amor na psicanálise
freudiana. Através de revisão de literatura o presente texto trabalha
com a hipótese de que em Freud o vínculo amoroso é marcado
por ressonâncias românticas, a saber, o amor como uma busca pela
unidade perdida.
This paper consist
of an essay which aim is to investigate the love on Freudian psychoanalysis.Through
a review of the existing the actual text works on the hypothesis that in Freud
the amorous link is marked by romantic resonances, namely, the love as a search
for the lost unit.
Keywords:
Love, Romanticism, Freudian psychoanalysis, Unit, Fantasy.
Wilhelm, que seria do nosso coração em um mundo inteiro sem
amor? O mesmo que uma lanterna mágica apagada! Assim que se põe
lá uma lâmpada, imagens de todas as cores surgem na tela branca...E
mesmo se fosse apenas isso – fantasmas –, ainda assim continuará
fazendo a nossa felicidade, sempre que nos postarmos diante deles, como crianças
extasiadas...
(GOETHE 1774 / 2005, p.127. Os sofrimentos do Jovem Werther).
Introdução
Em O mal-estar
na cultura [1930/1996], Freud afirma que embora os métodos para
obtenção da felicidade variem, a sua busca através do amor
talvez se constitua num dispositivo mais ou menos invariante ao qual recursam
os homens.
Em contrapartida,
colocar o vínculo amoroso como o componente crucial para a felicidade
humana tem sido fonte de frustrações e de sofrimento. O amor tornou-se
o problema do qual se fala à exaustão no divã, sobretudo
atualmente: “os males do amor, da impossibilidade de amar e ser amado
ou de construir relações amorosas estáveis tornaram-se
o pivô de boa parte dos estados depressivos atuais e das demandas de psicanálise”.
(Costa, 1998, p.48). Para alguns autores contemporâneos a presença
de resquícios dos ideais românticos nos relacionamentos amorosos
é umas das causas dos desencontros afetivos do século XXI (BAUMAN,
2004, COSTA, 1998; GIDDENS, 2004; JABLONSKI, 1995; LEJARRAGA, 2002). Assim como
Freud deparou-se na clínica com exigências amorosas impossíveis
de se satisfazer, ou seja, as imposições românticas de felicidade
ligada a uma completude no amor, também hoje essa questão faz-se
presente: o encontro da dita “alma gêmea” como, se não
o único, o mais importante meio de se encontrar a felicidade.
É nesse
cenário que aqui são retomados os ideais românticos de completude
no âmbito das relações amorosas, com o escopo de problematizar
o amor no referencial da psicanálise. Buscamos isolar, no uso que Freud
faz do literato romântico Goethe (1749-1832), possíveis ressonâncias
do Romantismo na elaboração do conceito psicanalítico de
amor. Para tal fim, tomamos como pedra de toque a obra de Goethe, Os sofrimentos
do jovem Werther, considerado como um dos mais célebres romances
de Goethe e, tanto quanto o autor, reconhecidamente um dos ícones do
Romantismo, um elemento legítimo deste movimento (LOUREIRO, 2002; HONIGSZTEJN,
1996; DOIN, 1996). Podemos justificar ainda esta opção pela escolha
da visão romântica de amor expressa em Goethe apontando que, para
alguns autores, o romantismo é um movimento genuinamente germânico,
visto que se desenvolveu de forma intensa na Alemanha, tendo Goethe como um
dos seus principais expoentes, a cuja obra Freud se remete 112 vezes (LEJARRAGA,
2002; PERESTRELLO, 1996; LOUREIRO, 2002). Aliás, sobre a relação
de Freud com Goethe, Kon (1996) nos lembra que no ano de 1927, Freud recebeu
um prêmio com o nome do literato, instituído pela cidade de Frankfurt,
a ser concedido “a uma personalidade de realizações já
firmadas, cuja obra criadora fosse digna de uma honra dedicada à memória
de Goethe” (FREUD, [1930],p.47).
Mas o que é
essa configuração amorosa que denominamos romântica e que
alguns autores caracterizam como um desejo nostálgico de totalidade?
E como esse desejo de completude é demonstrado na letra freudiana?
Segundo Abbagnano
(2002), Romantismo é:
O movimento
filosófico, literário e artístico que começou
nos últimos anos do século XVIII, floresceu nos primeiros anos
do séc. XIX e constituiu a marca característica desse século.
O significado comum do termo “romântico”, que significa
“sentimental”, deriva de um dos aspectos mais evidentes desse
movimento, que é a valorização do sentimento [...]
Nos costumes, o amor romântico busca a unidade absoluta entre os amantes
[grifo nosso] (ABBAGNANO, 2002, P. 862).
Desta definição
extraímos a idéia do amor romântico como caracterizado pela
busca da “unidade absoluta entre os amantes”. Idéia que também
é destacada na obra de Loureiro quando caracteriza o romantismo não
por suas definições, mas apontando para um estilo romântico.
O subtítulo de um dos seus capítulos, “Em busca da unidade
perdida”, nos permite entender qual a idéia norteadora deste estilo,
qual seja, “um modo de formar característico de um dado contexto
histórico-cultural, embora produções semelhantes persistam
até os dias de hoje[...], cujo fim último seria a restituição
da unidade e da harmonia perdidas (LOUREIRO, 2002, p.161). É a partir
desta nostalgia que os românticos se movem em direção ao
passado, em busca da plenitude perdida no “mundo da infância, na
‘autenticidade’ da vida rural, nas culturas ditas primitivas ou
orientais (exotismo), na antiguidade greco-romana etc (LOUREIRO,2002, p.132).
Mas podemos perceber,
em Freud, esse desejo nostálgico por uma unidade perdida no passado?
Divisamos no texto da carta que Freud escreveu em agradecimento à recepção
do prêmio Goethe a pista que vai nos levar da seara da psicanálise
ao Romantismo. Vejamos a primeira parte deste fragmento: “Este escritor
não apenas não teria rejeitado a psicanálise [...]
como dela se aproximou numa série de pontos” (FREUD, [1930]
1996, p.214).
Aqui cabe perguntar:
que pontos são esses nos quais, segundo nos diz Freud, Goethe aproximar-se-ia
da psicanálise? Principalmente, o que Freud vê em Goethe sobre
o amor?
Uso do
amor romântico no texto freudiano: Ressonâncias?
Iniciemos a nossa
investigação a partir da única citação que
Freud faz à obra Os sofrimentos do Jovem Werther no Manuscrito N.
Começamos por Werther para introduzir o que entende Freud sobre o amor,
bem como para indicar de que forma suas problematizações sobre
esta temática deixam entrever ideais românticos.
O mecanismo
da poesia [criação literária] é o mesmo
das fantasias histéricas. Para compor seu Werther, Goethe combinou algo
que havia experimentado (seu amor por Lotte Kästner) e algo que tinha ouvido
(o destino do jovem Jerusalém, que se suicidou). Provavelmente, Goethe
estava brincando com a idéia de se matar; encontrou nisso um ponto de
contato e identificou-se com Jerusalém, de quem tomou emprestado o motivo
para sua própria história de amor. Por meio dessa fantasia, protegeu-se
das conseqüências de sua experiência.
De modo que Shakespeare tinha razão ao justapor a poesia e a loucura
(FREUD, 1897/1996, p.309).
“O mecanismo
da poesia [criação literária], parece simétrico
àquele que constitui as fantasias histéricas”.O que Freud
quis dizer com isso? Qual o ponto de contato que podemos detectar entre a história
amorosa de Goethe, reproduzida até certo ponto no Werther, e o discurso
das histéricas, prenhe de fantasias? Para responder a esta questão,
vejamos primeiro o que é a fantasia histérica. Laplanche e Pontalis
(1998) definem a fantasia histérica como ”um roteiro imaginário
em que o sujeito está presente, e que figura, de maneira mais ou menos
deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo
e, em última análise, de um desejo inconsciente” (LAPLANCHE
e PONTALIS, 1998, p.169).
Se, segundo Laplanche
e Pontalis (1998), a fantasia histérica é um roteiro imaginário
que busca a realização de um desejo, então nos cabe perguntar:
de que desejo se trata? Vamos cruzar agora a citação freudiana
citada anteriormente, que coloca em paralelo as fantasias histéricas
e a produção literária, com outra do próprio Freud,
ainda citando Goethe, para daí entrarmos no que nos interessa neste texto:
algo que não aparece logo à vista, mas que podemos inferir.
[Goethe]...estava
familiarizado com a força incomparável dos primeiros laços
afetivos das criaturas humanas” [...].[Ele] explicou a
si mesmo o impulso mais forte do amor que experimentou como homem maduro, apostrofando
sua bem-amada:’ Ah, vós fostes, numa vida passada, minha irmã
ou minha esposa’ De um poema a Charlotte Von Stein. Assim, não
negou que essas primeiras inclinações perenes assumem figuras
de nosso próprio círculo familiar [os amores edipianos].
Goethe sempre teve Eros em alta consideração (FREUD, [1930]1996,
p.214).
Destaquemos alguns
dados importantes: Charlotte, grande amor de Goethe, foi comparada por este
autor a sua irmã “– ah, vós fostes, numa vida passada,
minha irmã”. Freud percebe nesta fala de Goethe a presença
de uma repetição, uma reedição dos amores edipianos
e afirma: “Assim, [Goethe] não negou que essas primeiras
inclinações perenes assumem figuras de nosso próprio círculo
familiar”. E a partir daí conclui: “Goethe sempre teve Eros
em alta consideração”.
Goethe confessou
que via em Lotte a figura de sua irmã. Disso podemos suspeitar que, em
última análise, é de um desejo incestuoso, ainda que inconsciente,
que estamos nos acercando, seja no romance goethiano quanto no “romance
histérico”? Freud estaria se utilizando da elaboração
literária para configurar com maior nitidez a sua hipótese de
incesto fundante do modo funcional do psiquismo? Uma busca prospectiva por amores
da infância? Vejamos o que nos diz Freud sobre os romances fantasísticos
das histéricas para depois confrontarmos as nossas suposições
com uma breve incursão sobre o romance de Goethe Os Sofrimentos do
Jovem Werther.
Nos Estudos sobre
a histeria [1893], Freud nos aponta que a histérica busca o seu
amor em fantasia. O sintoma aparece no lugar da interdição de
uma relação amorosa e conta, no corpo histérico, a história
desse amor proibido. Desta forma, tanto no caso de Lucy R., a governanta que
padecia de rinite e sofria de amores por seu patrão, como no caso de
Elizabeth Von R., a paciente que sofria de dores nas pernas e estava apaixonada
pelo cunhado, encontramos histórias de amores frustrados e proibidos.
Freud estabelece aí uma correspondência direta entre os sintomas
histéricos e estes amores interditados. Por exemplo, ele teoriza sobre
os sintomas de Elizabeth falando de sentimentos eróticos “inaceitáveis”:
Mais uma vez, foi um círculo de representações de
natureza erótica que entrou em conflito com todas as suas representações
morais, pois suas inclinações centralizaram-se no cunhado e,
tanto durante a vida da irmã como depois da sua morte, a representação
de ser atraída precisamente por esse homem lhe era totalmente inaceitável
(FREUD, [1893]1996, p. 124).
Segundo Freud,
a fantasia das histéricas sempre gira em torno do tema dos pais (FREUD,
1900), o que significa que ela circula em torno de um desejo proibido, ou seja,
um anseio vinculado aos amores edípicos e, como tal, interditado pela
barreira do incesto. Confere-se na letra de Freud que a fantasia de sedução
das histéricas nada mais era do que um desejo mascarado de união
erótica com os genitores. Assim, pode-se afirmar que neste “roteiro
imaginário”, que Freud batizou de fantasia, o desejo incestuoso
está como pano de fundo e mote para a narrativa dos dramas histéricos.
Constatação que nos remete a uma outra questão: porventura,
é de deparar-se com a barreira do incesto como obstáculo e fomentador
do desejo que encontramos o eco do romantismo na obra freudiana? Qual a relação
que podemos inferir entre os romances histéricos e o Werther de Goethe,
citado por Freud no Manuscrito N?
Segundo Lejarraga
(2002), encontramos no romance de Goethe Os Sofrimentos do Jovem Werther
as características do amor romântico. Tentemos, então, identificá-las:
o Romance narra a história do jovem Werther e sua paixão por Carlota
ou Lotte, moça que ele conhece quando vai morar perto da sua casa, numa
pequena aldeia rodeada por uma exuberante paisagem. Paixão inviável
e infeliz, interditada por obstáculos sociais e morais desde o início:
não apenas a adorada de Werther se encontrava comprometida com outro,
como ela não pertencia a sua classe social. Na corte, torna-se ainda
mais clara a desigualdade e inferioridade da sua condição social:
Werther é expulso dos salões da aristocracia por não pertencer
à nobreza. Assim, desnorteado e ferido, retorna à aldeia e às
visitas a sua querida Lotte. Tarde demais: esta já havia se casado com
Alberto e deixa evidente a sua fidelidade ao marido, pedindo a Werther que se
afaste. As rejeições da amada, as frustrações contínuas
aos seus sonhos de tomá-la nos braços vão, num crescendo,
tomando todo o romance com os lamentos desesperados deste apaixonado, preparando
para o desfecho final, bem ao gosto dos românticos: Werther se suicida
por amor: “Quero morrer!... Não é o desespero;
é a convicção de que suportei quanto pude e de que eu me
sacrificarei por você. Sim, Lotte, por que esconder? É preciso
que um de nós três desapareça, e sou eu quem deve desaparecer.
Oh, minha adorada....Tão perto da sepultura, vejo tudo mais claramente.
Continuaremos a existir e tornaremos a nos ver!” (GOETHE, 2005, p.102-109).
O anelo, a unidade,
a nostalgia romântica, é claramente evidenciada nesta fala do Jovem
Werther. E, concomitantemente, nesta obra de ficção, vemos repetir-se
uma escolha de objeto que a psicanálise já identificou como incestuosa:
a mulher desejada já pertence a outrem (FREUD, [1910]1996). Werther
desejava uma mulher comprometida: “[Diz Lotte a Werther:] Por
que eu, Werther, eu, que pertenço a outro? Justamente eu? Temo, temo
que seja apenas a impossibilidade de me possuir que faz com que você me
deseje com tanto ardor!” (GOETHE, 2005, p.100).
Praz, materializa
esta idéia ao dizer que “o incesto [é] um tema caro
aos românticos” (PRAZ, 1996, p.114). Segundo Gay, esse amor incestuoso
era disfarçado nos poemas e textos da época pelo anelo apaixonado
pela natureza “no século vitoriano [...] a natureza é
a mulher amada...a mãe”(GAY, 2000, p.237), e Honigztejn levanta
uma questão que, embora não seja a nossa, nos traz uma pista instigante
sobre a presença subliminar do desejo incestuoso no romance de Goethe:
Goethe e Freud. Influências do primeiro sobre o segundo? Como? Freud
teria tido o insight sobre atos falhos ao ler, em Afinidades Eletivas, o trecho
em que Chartlotte derrama tinta sobre uma carta que não deseja, mas
é obrigada a escrever? Ou a compreensão da permanência
da mãe como objeto desejado ao ler, em Werther, como este se apaixonou
agudamente por Charlotte ao ver, num relance, que ela amassava o pão
exatamente como a sua mãe? (HONIGSZTEJN, 1996, p.257).
Diz Freud que
o escritor valendo-se de sua sensibilidade pode perceber e descrever “as
condições necessárias ao amor que determinam a escolha
de um objeto”. Ou seja, na letra freudiana encontramos a razão
da preferência de certos homens, nesse caso o Jovem Werther, por mulheres
comprometidas:
A escolha de objeto, que é tão estranhamente condicionada
[deriva] da fixação infantil de seus sentimentos de
ternura pela mãe e representam uma das conseqüências dessa
fixação [...] É, de imediato, evidente que, para
a criança que está crescendo no círculo familiar, o fato
de que a mãe, ao pertencer ao pai, torna-se parte inseparável
da essência da mãe, e que a terceira pessoa injuriada não
é outra senão o próprio pai. (FREUD, [1910]1996,
p.174).
Goethe conseguiu
expressar algo que cala fundo à psicanálise e que podemos identificar
também nos casos de histeria: os objetos incestuosos permanecem no horizonte
da busca amorosa dos neuróticos e dos ditos normais, quer seja representado
nas fantasias e romances, quer seja determinando as escolhas afetivas de todos
os tempos, mas sempre sobre o índice da interdição como
atesta o surgi-mento dos diques morais contra o incesto, canalizando a libido
para um outro lugar mais aceitável (FREUD, [1905] 1996), e os
diversos obstáculos que afastam os amantes na literatura romântica
citada. Mas quando afirmamos que no texto freudiano o fenômeno amoroso
possui um caráter de nostalgia do objeto, o que aproximaria suas concepções
sobre o amor, até certo ponto, do Romantismo, e localizamos nesses objetos
as figuras parentais, algo não ficou claro: o que move o homo psicanaliticus
a essa busca retrospectiva e incestuosa?
É o próprio
Freud que nos oferece uma pista do itinerário que devemos empreender
para encaminhar essa problematização: “As inúmeras
peculiaridades da vida amorosa dos seres humanos, bem como o caráter
compulsivo do próprio apaixonamento, só se tornam inteligíveis
numa referência retrospectiva à infância” (FREUD, [1905]1996,
p.105). Vejamos, então, o que nos diz Freud sobre o erotismo infantil,
lembrando, também, que para os românticos – como já
foi sublinhado aqui – a unidade perdida se encontra na infância.
O amor
como nostalgia: o (re)encontro do objeto perdido
Na Metamorfose
da Puberdade, título do terceiro ensaio da obra freudiana de 1905, os
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, vemos Freud preocupado
em fazer uma espécie de revisão do auto-erotismo infantil em torno
da idéia do amor como um reencontro de um objeto de amor originário,
a mãe. No dizer de Freud:
Quando a primeira satisfação sexual estava ainda vinculada
com a nutrição, a pulsão sexual tinha um objeto fora
do próprio corpo: o seio materno. Somente mais tarde, a pulsão
perde esse objeto, bem na época, talvez, em que a criança pode
formar a representação global da pessoa a quem pertence o órgão
que lhe dava satisfação. Depois a pulsão sexual se torna,
regularmente, auto-erótica, e só após superado o período
de latência que se restabelece a relação originária.
Há, portanto, bons motivos para que o fato de uma criança sugar
o seio da mãe se torne paradigmático para toda relação
de amor. O encontro de objeto é propriamente um reencontro [grifo
nosso] (FREUD, [1905]1996, p.178).
Esse parágrafo
condensa várias idéias que, pelo caráter de um ensaio,
somos forçados a deixar de lado para centrar nossos esforços em
um único ponto: o que nos interessa neste fragmento é a afirmativa
freudiana de que “o encontro do objeto é um reencontro”.
Duas perguntas se impõem de imediato: se para Freud o futuro amoroso
está para trás, para a infância, por que este movimento
retrospectivo é vinculado à imagem da amamentação?
E, por outro lado, o que o impulsiona em direção ao passado amoroso
infantil? O que justifica esta dinâmica conservadora? Por que a libido
deste exilado se prendeu às figuras infantis e este “passado”
é sempre revivido de forma plástica e atemporal?
Analisando com
mais vagar o trecho que selecionamos, vemos que Freud se refere a uma primeira
satisfação sexual “ainda vinculada com a nutrição”,
cujo objeto de satisfação se encontra “fora do próprio
corpo, o seio materno. Falamos aqui de um passado cronológico, ainda.
E aqui nos cabe perguntar sobre esta primeira vivência de satisfação:
o que é este evento inaugural, cuja marca de chegada é o mesmo
ponto de partida, o (re)encontro com o objeto?
Para Laplanche
e Pontalis (1998), a vivência de satisfação consiste:
No apaziguamento,
no lactente, e graças a uma intervenção exterior, de uma
tensão interna criada pela necessidade. A imagem do objeto satisfatório
assume então um valor eletivo na constituição do desejo
do sujeito. Ela poderá ser reinvestida na ausência do objeto real
(satisfação alucinatória do desejo) e irá guiar
sempre a busca ulterior do objeto satisfatório (LAPLANCHE; PONTALIS,
1998, p. 530).
Isto é,
quando a mãe oferece o seio ao bebê, suprindo uma necessidade e,
conseqüentemente, provocando uma vivência de satisfação,
estabelece-se aí uma facilitação, ou seja, uma preferência
pelo caminho utilizado pela excitação entre duas imagens mnêmicas:
a do objeto de satisfação e a da descarga pela ação
específica. Assim, na ocorrência de outras situações
futuras de carência, os registros na memória relativos a esta vivência
de satisfação serão novamente evocados no afã de
repetir o alívio da tensão experimentado. No dizer de Freud, “um
impulso psíquico [o desejo] procurará recatexizar a imagem
mnêmica da percepção e reevocar a própria percepção,
isto é, restabelecer a situação de satisfação
original” (FREUD, [1900]1996, p. 601). Em outras palavras, retornar
pelas vias da memória e do desejo a signos do passado infantil: a mãe
“como o primeiro e mais forte objeto amoroso e como protótipo de
todas as relações amorosas posteriores – para ambos os sexos”
(FREUD, [1938]1996, p.202).
Podemos explicar
a busca nostálgica pelo passado utilizando a teorização
freudiana sobre o desejo, a experiência de satisfação e
a conseqüente fixação da libido. E como aponta Martins (2002,
p.36), essa ligação primeira “realiza em fantasia
o ideal da completude, do reencontro com o paraíso perdido” (grifo
nosso). A fantasia de retorno ao seio nos traz de volta ao desejo nostálgico
dos românticos por uma completude vivenciada anteriormente. Aliás,
em 1930, Freud assinala que o corpo materno “é essa morada original
cuja nostalgia persiste sempre, provavelmente, onde estávamos em segurança
e onde nos sentíamos bem” (FREUD, [1930]1996, p.101), para
em 1932 concluir: “parece que a avidez da criança pelo primeiro
alimento é completamente insaciável, que a criança nunca
supera o sofrimento de perder o seio materno” (FREUD, [1932]1996,
p. 131).
Da mesma forma,
podemos dizer que o sujeito permanece ligado a signos do passado porque, como
nos diz Freud nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade,
esse também é o percurso mais fácil e (re)conhecido pela
libido: “sem dúvida, o caminho mais curto para a criança
seria escolher como objetos sexuais as mesmas pessoas a quem ama, desde a infância,
com uma libido, digamos, amortecida” (FREUD, [1905] 1996, p.234).
Nosso percurso
até aqui indica que no desejo de incesto e/ou na interdição
deste encontramos o obstáculo e a motivação oculta dos
amores proibidos das histéricas e dos personagens da literatura romântica,
a saber, as ressonâncias do romantismo na letra freudiana. Por outro lado,
uma antinomia se instala: enquanto no romantismo a morte possibilita e representa
um reencontro dos amantes – lembremos da certeza de Werther-, podemos
detectar no dizer de Freud uma posição totalmente avessa à
expectativa romântica de um encontro que proporcione a almejada completude
– a reconciliação das unidades, a satisfação
completa.
Exatamente aqui
a psicanálise estabelece uma descontinuidade epistêmica com o romantismo,
ao tempo em que marca a sua especificidade: “quando o objeto original
de um impulso desejoso se perde em conseqüência do recalque, ele
se representa, freqüentemente, por uma sucessão infindável
de objetos substitutos, nenhum dos quais proporciona satisfação
completa” [grifo nosso] (FREUD, [1910]1996, p.194).
Em outras palavras, há uma dissimetria irredutível entre o objeto
buscado e o objeto achado. O objeto achado pelo desejo não é aquele
que originou esse desejo: este permanecerá para sempre perdido. Lembremos
que possuir a mãe seria cometer um incesto. Por isso, a função
do princípio do prazer não é tornar possível o encontro
com este objeto incestuoso, mas justamente o contrário: tornar impossível
esse encontro é o que nos faz humanos e possibilita que continuemos desejando
para além dos objetos perdidos: “a barreira do incesto [exclui]
expressamente da escolha objetal, na qualidade de parentes consangüíneos,
as pessoas amadas da infância. O respeito a essa barreira é, acima
de tudo, uma exigência cultural da sociedade” (FREUD, [1905]1996,
p.23).
Desta forma, ao
contrário do que reza o romantismo, o desejo de completude – o
reencontro satisfatório das unidades em um TODO absoluto e monolítico
– é uma busca fantasiosa sem possibilidades de concretização:
a insatisfação está no cerne do próprio movimento
desiderativo humano. Nas palavras de Miller, “o desejo é sempre
um lamentar-se, um deplorar, uma nostalgia [...] O desejo é a
sua insatisfação” (MILLER, 1991, p.39).
Considerações
finais
O texto freudiano
aponta que esta dinâmica nostálgica de reencontro com este primeiro
amor do romance edípico reside no próprio caráter do amor.
De acordo com Freud, todo amor é um reencontro, vinculado ao pretérito;
é isso que ele deixa claro até mesmo quando se refere ao amor
surgido na clínica, ao indicar que o amor transferencial ou não
consiste numa nova edição de modelos e reações da
infância: “esta é a característica essencial de todo
estado amoroso [grifo nosso]. Não existe um só apaixonamento
que não reproduza protótipos infantis. É exatamente desta
determinação infantil que ele recebe seu caráter compulsivo”
(FREUD, [1915], p.153). Nas palavras de Monzani, encontramos a mesma
remissão aos amores edipianos na arquitetura amorosa do ser humano: “é
no e pelo desejo da mãe, da sua posse, que [a estruturação
genital da sexualidade] se explica. É por isso que as desventuras
da sexualidade humana sempre remetem ao episódio edipiano”(MONZANI,
1989, p.52).
Todavia, ainda
que o fenômeno amoroso tenha sido caracterizado neste trabalho como fincado
sobre anseios de completude – o eco do romantismo na concepção
freudiana – o que a psicanálise pode proporcionar ao sujeito é
um reposicionamento das suas demandas ilimitadas de amor, acatando a castração,
o limite ao seu desejo imperativo: o que não o nega, mas remete o sujeito
a se confrontar com uma satisfação amorosa limitada, parcial,
finita, sem encontros transcendentais ou promessas de completude. Processo que
em nada é tão simples e rápido como possa nos parecer à
primeira vista. Afinal, os dilemas amorosos impostos pelos ideais românticos
ainda são tão presentes quanto nos tempos de Freud, e é
isso que destaca Lejarraga (2002). Para esta autora, os resquícios do
amor românico nos dias atuais deram origem a uma situação
paradoxal: “o suicídio do jovem Werther, que fez vibrar gerações
inteiras com seu heroísmo passional, não comove os corações
individualistas e narcísicos dos indivíduos contemporâneos”
(LEJARRAGA, 2002, p.177). Por outro lado, constata que o amor romântico
parece permanecer no imaginário como ideal - decadente - mas ainda tirânico,
tornando, desta forma, ilegítimas as demais formas de relacionamento
que se afastam do seu padrão restritivo: “embora o declínio
do ideal [romântico] amoroso gere desconcerto e mal estar, a sua
permanência é fonte de exclusões e sofrimento, para os que
não conseguem atingi-lo” (LEJARRAGA, 2002, p.178).
E que novo tipo
de amor poderia trazer aos relacionamentos atuais uma certa constância
e satisfação que redimensione a fantasia romântica de reencontro
das unidades perdidas? Como podemos reinventar o amor e dar-lhe moldes mais
possíveis?
Deixemos ao leitor
o debate, porque a psicanálise não se propõe a transmitir
padrões universais. Ela é uma teoria do singular, uma práxis
e um discurso acerca do pathos de cada um, e como tal aposta na capacidade
inventiva de cada sujeito para solucionar ou lidar com seus dilemas afetivos.
Assim, como dizia Freud ao início de cada sessão: “vamos
começar?”.
Se quisermos
conservá-lo [o amor] no que ele tem de bom, temos de reinventá-lo.
Dar-lhe medida humana. Sim, porque se trata de uma criação do
ser humano. Pode ser mantido, alterado, melhorado, piorado e até abolido
[...] porque amar é uma habilidade moldada pela cultura, segundo
os padrões da sociedade burguesa européia. E as invenções
humanas são alérgicas a normas fixas. O amor precisa de uma
nova ética que derrube os modelos irrealizáveis de relacionamento.
(COSTA, J. F. , 1998, p.39).
Referências
ABBAGNANO, N.
Dicionário de Filosofia. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
BAUMAN, Zygmunt.
Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.Tradução
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
COSTA, Jurandir
Freire. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico
- Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
DOIN, C. Literatos
e filósofos de língua alemã em Freud.In: PERESTRELLO, Marialzira
(org). A formação Cultural de Freud. Rio de Janeiro:
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Endereço
para correspondência:
José
Euclimar Xavier de Menezes - Rua Guadalajara, 129. Edifício Vivenda San
Thiago, apto 401.
Ondina. Salvador – BA. Cep: 40140460.
Tel: (71)9972-5626.
E-mail: menezesjex@uol.com.br
Maria Josephina
Silveira Barros
Av. Bahia, nº413, Cidade Nova.
Ilhéus- BA. Cep: 45652-050./
Tel: (71)9968-2727
E-mail: barrosjosephina@ig.com.br
Recebido em 13/01/2008
*Doutor
em Filosofia Moderna pela Unicamp, pós-doutor pela Pontificia Università
Lateranense/Roma e professor titular da Universidade Católica do Salvador/Mestrado
em Familia na Sociedade Contemporânea, bem como do curso de psicologia
da Faculdade Ruy Barbosa, instituição em que dirige a Revista
Cientefico. É autor de Máquina de deuses: a teoria freudiana
da cultura. **Mestra em Família na Sociedade
Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador com especialização
em Psicologia Conjugal e Familiar/Faculdade Ruy Barbosa, e Teoria da Clínica
Psicanalítica pela Universidade Federal da Bahia. Ex-aluna do Círculo
Psicanalítico da Bahia.