Presente do passado: o trabalho analítico
Present of the past: analytical work


Maria Beatriz Jacques Ramos*

Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Endereço para correspondência

RESUMO

O texto revisa conceitos kleinianos sobre os processos constituintes do psiquismo, do complexo de Édipo e do superego precoces, na análise da angústia, culpa e depressão. O trabalho analítico motiva o estudo e a pesquisa das novas configurações clínicas, voltados para a compreensão do sofrimento de pacientes que vivem frustrações provocadas por movimentos internos, incapazes de encontrar alento, pois mostram que algo se perdeu, ou parece perdido no mundo interior. Cabe ao psicanalista contribuir para o resgate da fonte que dá vida, dos laços com o presente do passado e com o passado do presente.

Palavras-chave: Angústia, Depressão, Espaço analítico.

ABSTRACT

This text intends to review the kleinians concepts on the constituents processes of the psyche, the Oedipus complex, and precocious superego, in the analysis of the anguish, the blame and the depression. The analytical work motivates the study and research of new clinical settings, and aim at understanding the suffering of patients with frustrations, caused by internal movements, because they are unable to find courage, and they show that something is lost, or seem lost in the world inside. The psychoanalyst needs to contribute for the recuperation of the source that gives life, of the bonds with the present of the past and with the past of the present.

Keywords: Anguish, Depression, Aanalytical space.

 

 

Avião sem asa
Fogueira sem brasa
Sou eu assim, sem você...
Futebol sem bola
Piu-piu sem Frajola...
Claudinho sem Buchecha...
Sou eu assim sem você...
Porque é que tem que ser assim?
Se o meu desejo não tem fim...
Tô louco pra te ver chegar
Tô louco pra te ter nas mãos
Deitar no teu abraço
Retomar o pedaço
Que falta no meu coração...
(MORAES; ABDULLAH, 2004)

 

Por que tem que ser assim?

Essa letra traz como tema a separação, a perda e o desejo de reparação. Um amor perdido, uma partida, uma despedida, um sentimento que não tem fim, a esperança, a ânsia de amar e ser amado.

Esses sentimentos lembram as narrativas, as experiências de alguns pacientes, as histórias de encontros e desencontros, fantasias, perdas e separações. Evocam as deusas do destino, as Parcas, da mitologia grega, temidas por Zeus, porque elas determinavam o quanto cada mortal poderia viver; a primeira tecia o fio da vida, a segunda enrolava o fio no fuso e a terceira cortava os laços. Este mito sugere a medida do amor próprio e do amor pelo outro, pois é vivido sob a égide da repetição. Trabalhamos com o inconsciente fantasioso, metafórico, intersubjetivo, com as lembranças do que passou e com os relacionamentos do presente.

O setting analítico propicia uma interlocução com muitos personagens. As fantasias estruturam o mundo interno, detêm-se na sexualidade do paciente e das outras pessoas que representam a sexualidade dos pais.

No ensaio sobre Primeiras fases do complexo de Édipo (1928), Klein faz uma apresentação das diferenças entre seu pensamento e o de Freud, pois, desde o início, o ser humano constrói fantasias relacionadas às pessoas que o atendem e desenvolve o âmago da vida psíquica em torno das primeiras relações objetais. O efeito das pulsões sexuais e agressivas nas percepções e vínculos precoces é um processo ativo, que se desencadeia desde cedo e provoca a culpa.

Na concepção kleiniana, há uma prontidão para capturar a sexualidade dos pais, pois a fantasia infantil está associada à concepção, pela possibilidade de terem novos bebês. É uma união provocativa, ameaçadora, invejada, pois os pais podem expulsar a criança de sua posição, o que desperta ódio e rivalidade. É no corpo da mãe que reside o prazer, o alimento, a provisão e o cuidado.

O destino humano está entrelaçado com essa figura desejada e temida, invejada e poderosa desde a primeira infância. Quando a relação com a mãe possui um matiz que conduz à capacidade de integrar, reparar os sentimentos sádicos de ataque ao seu corpo e aos conteúdos que supostamente detém, a presença do pai pode ser percebida numa posição depressiva, não persecutória, sem o perigo de que um seja idealizado e o outro denegrido.

A análise de adultos nos tem familiarizado com o fato de que os impulsos pré-genitais são acompanhados por sentimentos de culpa. O sentimento de culpa associado às fixações pré-genitais já é efeito direto do complexo edípico. Isto parece explicar a origem de tal sentimento, pois o sentimento de culpa é resultado da introjeção dos objetos de amor edípico, isto é, o sentimento de culpa é o produto da formação do superego. Na criança de mais ou menos um ano, a ansiedade causada pelo início do complexo edípico, toma a forma de um temor de ser devorada e destruída. A própria criança deseja destruir seu objeto libidinoso, mordendo-o, cortando-o e devorando-o, o que provoca ansiedade, já que o despertar das tendências edípicas é seguido pela introjeção do objeto, que se transforma em alguém de quem se deve esperar um castigo. A criança teme um castigo que corresponda à sua ofensa: o superego se transforma em algo que morde, corta, devora. (KLEIN, 1981, p. 254).

A capacidade de pensar e criar depende da forma como a dupla parental é internalizada para que a lei de talião não predomine, pedaço por pedaço, vingança e retaliação.

Nessa perspectiva, as origens do superego são estabelecidas na posição esquizo-paranóide, na relação com o seio que abastece ou priva, gratifica ou frustra. A fonte do sofrimento é a angústia persecutória, o medo do aniquilamento; fantasiar torna-se um meio de defesa, uma maneira de inibir e controlar as pressões internas e expressar os desejos. A fantasia é o conteúdo primário dos processos mentais.

A princípio as tendências edípicas se expressam sob a forma de impulsos orais e anais, a questão de quais fixações irão predominar será determinada pelo grau de recalque que tem lugar neste estágio precoce. As frustrações orais e anais, protótipos de todas as frustrações posteriores na vida, significam ao mesmo tempo castigo e produzem ansiedade. (KLEIN, 1981, p. 255).

A oralidade está em todos os lugares. O desamparo é a fonte mais profunda da angústia humana, é a fonte da melancolia, da depressão.

O passado se expressa no sintoma, mostra-se nos atos, emoções e relacionamentos. O traumático é carregado de afeto, a pulsão de morte afasta o outro, tira-lhe o significado, produz desligamento. Nisto, reside a severidade do superego kleiniano, a hostilidade voltada contra si mesmo e o outro. Amor, ódio e agressão constituem a vida mental; os estados mentais, as defesas conservadoras.

Os estágios mais recuados do conflito edípico estão tão dominados pelas fases pré-genitais que a fase genital, quando começa a ser ativa, está a princípio bastante oculta e só mais tarde, entre três e cinco anos de idade torna-se mais claramente reconhecível. Mas o fato de que as tendências edípicas começam muito mais cedo, assim como a pressão do sentimento de culpa na formação do superego parece ter importância muito grande até agora não reconhecida. (KLEIN, 1981, p. 267).

Existe uma ligação entre a severidade do superego e os estágios precoces do conflito edípico já que sua formação inicia muito cedo e remete a criança à triangulação, ao ciúme, à exclusão. O medo da castração é uma ameaça que vem do exterior e atinge em fantasia a interioridade, por isso o superego age de forma ameaçadora no interior do ego.

Klein situou a formação dessa instância nas origens da vida psíquica, no estágio sádico-oral. A pulsão destrutiva é uma noção central nos estudos que realizou. A oposição entre pulsão de destruição e pulsão sexual é o fundamento de seu sistema conceitual. A severidade do superego contrasta com a dos pais, o que supera a idéia de um superego herdeiro das interdições parentais. É importante destacar, no entanto, que não se trata dos pais reais, mas de imagos que se constituem internamente. O mundo inconsciente é um “mundo de imagos primitivas”, que não podem ser consideradas como lembranças das experiências reais.

O superego está alicerçado numa visão endogenética, num modelo pulsional em sua formação. Ainda que numa visão biologizante, a singularidade é subjacente, pois ele é percebido como um sinal fantasístico da constituição psíquica.

Portanto, não existe, necessariamente, uma relação entre o superego e as características dos cuidadores, devendo-se considerar a distinção entre os objetos internalizados e os objetos reais. Esta instância advém das forças pulsionais ligadas aos primeiros objetos introjetados e, em parte, fantasiados.

Sua concepção resulta na singularidade do mundo interno. As fantasias sádicas constituem a primeira relação com o mundo externo e a realidade; uma realidade irreal, na qual está fundada a gênese do superego. No texto O desenvolvimento inicial da consciência da criança (1938), Klein pontua que o medo de sofrer e o medo do aniquilamento são produtos das fantasias, frustrações, e podem transformar-se em ódio.

A formação do superego começa no exato momento em que a criança realiza a primeira introjeção oral de seus objetos. Como as primeiras imagos constituídas desta maneira são dotadas de todos os atributos do sadismo violento que distingue este estágio do desenvolvimento, e como devem ser projetadas de novo sobre os objetos do mundo externo, a criança é dominada pelo medo de sofrer, por parte de seus objetos reais e por parte de seu superego, ataques de uma crueldade inimaginável. Sua angústia servirá para reforçar suas tendências sádicas levando-a a destruir os objetos hostis para escapar da agressão deles. (KLEIN, 1981, p. 339).

Essa imagem dos “pais combinados” leva a pensar na alteridade e na sexualidade.

Chasseguet-Smirguel (1976) salientou os efeitos da experiência de mulheres e de homens em relação à dependência original da mãe, que dá a vida e que pode sustentá-la em termos de sexualidade. O perigo é que homens e mulheres, ao tentar anular este domínio, podem enfatizar em demasia o poder (pênis) do pai. A criança precisa aceitar sua posição na situação edípica, na qual tem relações com ambos os pais e, ao mesmo tempo, ocupa uma posição exterior à sexualidade deles.

Mesmo que não existam correlações diretas com as características dos cuidadores e as manifestações do superego sádico ou benevolente, continua a interdependência destes. Por outro lado, o superego não é um adversário das pulsões, pois sua severidade advém das forças pulsionais e das identificações que formam a matéria-prima das fantasias do ego rudimentar contra o interior do corpo materno e o do pai imaginado dentro da mãe (BURGOYNE, 2001).

No inconsciente, alojam-se as representações primitivas, as lembranças das experiências reais, as fantasias.

A fantasia é a primeira realidade, mesmo que rodeada de angústias. As fantasias sádicas constituem as primeiras trocas com o mundo externo, uma realidade que pode ser considerada assustadora, mas fundadora do superego e da culpa. Assim, o superego aparece como um perseguidor, não como um legislador.

A angústia persecutória pode levar à destruição de si mesmo e do outro, pois nesse circuito explicam-se as tendências anti-sociais e depressivas encontradas na clínica contemporânea.

Na situação analítica, deparamos com pacientes pressionados pela excessiva severidade do superego, não por uma ausência desta instância no interjogo das introjeções e projeções. Eles mostram na auto-recriminação, na desvalorização pessoal e dos outros a força da pulsão de morte; o ódio precedendo o amor. A libido não satisfeita se transforma em angústia, em masoquismo primário, um beco sem saída, um retorno da pulsão destrutiva para o ego.

As privações de ordem interna e externa perturbam o equilíbrio psíquico e reforçam a agressividade. Disto advém a voracidade, a fome de ter, a inveja, a incapacidade de esvaziar ou esvaziar demais o mundo interior, que fica sob a ação do desamparo e da dor. O desejo de punição tem um matiz afetivo que, sob a ação do superego, transforma o sofrimento em prazer.

Na letra da canção, é preciso retomar o pedaço que falta no coração, ver e tocar o outro mais uma vez. “Por que tem que ser assim?” Por que a tristeza não tem fim?

Há uma falta que retorna na dúvida, na incerteza de recuperar o olhar, o carinho, o amor...

Na dúvida, ou na dívida?

Talvez, na impossibilidade de reencontrar o que foi perdido, ou no empobrecimento da identidade destituída, alijada, difusa, sem lugar...

 

Angústia, culpa e depressão

Porque tem que ser assim?
Se o meu desejo não tem fim.
Eu te quero a todo instante
Nem mil auto-falantes
Vão poder falar por mim...
Eu não existo longe de você
E a solidão é meu maior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas meu relógio tá de mal comigo...
(MORAES; ABDULLAH, 2004)

Angústia é o termo original usado por Klein: angst = angústia. O termo foi traduzido para o inglês como anxiety e determina a natureza da constelação de defesas estruturantes do ego. As frustrações orais e anais são protótipos de todas as frustrações posteriores. A angústia nasce da agressividade.

A angústia persecutória é vivida como uma ameaça à sobrevivência e à integridade do ego, medo de aniquilamento, ameaça de destruição. É predominante nos primeiros meses de vida cujo protótipo é o trauma do nascimento. A sobrevivência do objeto não está em jogo, pois ele é fonte de ameaça.

A angústia depressiva é gerada pelo temor de que o objeto amado tenha sido ou venha a ser destruído, danificado pelo ódio. Mostra a tendência de integrar as imagens do “seio bom” e do “seio mau”. O objeto amado e odiado que o bebê quis destruir (em fantasia) é um só objeto: o objeto total, o outro. Marca o surgimento da ambivalência responsável pelas contradições e complexidades nos relacionamentos, forjada nas frustrações e insegurança. A ambivalência está vinculada à culpa e à tendência de reparação.

A angústia e a culpa estão fora do campo da linguagem, estão organizadas como fantasias inconscientes. A comunicação é por vias pré-verbais, por afetos e representações que são colocados para fora por identificação projetiva.

Para Klein, a identificação projetiva revela que não é possível projetar impulsos sem projetar parte do ego, o que implica cisão. Uma parte do que é excindido vai para o objeto, distorcendo a percepção deste pelo sujeito. O objeto é um prolongamento do ego pelo uso da identificação. O que incomoda é colocado no outro.

Na culpa, há uma polaridade entre atacar e reparar o dano provocado. Há uma angústia que persegue e outra que deprime. A angústia da perda representa um retorno do mal, uma síntese na qual o ego unifica a pulsão destrutiva e o sentimento de amor pelo outro. Verifica-se, por um lado, um superego cruel e, por outro, um superego benevolente, um conflito entre Eros e Tanatos. Com a diminuição do sadismo o superego pode-se modificar, pois o sadismo alojado no superego satisfaz o masoquismo do ego.

Nos casos de fixação no estágio sádico-anal, os mecanismos paranóicos, maníacos e depressivos tendem a dominar a vida mental. O medo do superego fica face a face com a angústia, criam-se inimigos, um mundo externo, temido e persecutório. O que não pode ser traduzido é repetido na autotortura, na punição, no retorno sobre si mesmo da força de desligamento. As auto-acusações são queixas direcionadas ao outro que retornam ao próprio ego. São queixas para alguém que se ama, amou, ou deveria ser amado.

Como na música, a ausência do outro cria um vazio, um desejo sem fim, uma existência sem sentido, porque Cronos, o deus do tempo, não permite o reencontro do passado com o presente. Mas o inconsciente é atemporal e a criança retorna e retoma seu lugar nas emoções do adulto. De um adulto sem rumo, castigado pela solidão entre a presença e ausência do amor que não podem ser resgatadas.

Para Abraham (1970), a depressão se origina quando a pessoa abandona seu objetivo sexual sem ter obtido satisfação. A frustração, o sentimento de não ser amado, de ser incapaz para o amor evoca o desespero, a negação da vida. Há um constante choque entre o amor e o ódio e uma semelhança estrutural entre a psicose depressiva e a neurose obsessiva, pois o predomínio da tendência hostil reduz a capacidade de amar. A dificuldade de decidir e a incerteza produzem o sentimento de inadequação e desamparo.

Quanto mais intenso o sentimento de ódio, maior a culpa e a depressão. O deprimido mostra uma inclinação auto-erótica em sua inibição de sentimentos e um empobrecimento do amor.

Klein, em 1945, citando Abraham, afirma que o ego se torna identificado com o objeto e não abandona seus primeiros mecanismos de defesa.

De acordo com a hipótese de Abraham, a destruição e expulsão do objeto – processos característicos do nível anal mais recuado – dão início ao mecanismo depressivo. Se isto for exato, confirma minha opinião acerca da conexão genética entre paranóia e melancolia. (KLEIN, 1981, p 359)

Prossegue Klein (p.360) afirmando que:

Assim se esclarece porque, nesta fase do desenvolvimento, o ego sente-se constantemente ameaçado em sua posse dos objetos bons interiorizados. Está cheio de ansiedade, de medo que tais objetos pereçam.

Nesse contexto, ela descreve que, tanto em crianças quanto em adultos que sofrem de depressão, existe o medo de abrigar os objetos danificados, especialmente os pais, dentro de si mesmos, bem como uma identificação do ego com os objetos nesta situação.

O temor da perda internalizada do objeto bom transforma-se em permanente fonte de angústia. Quanto maior a angústia, mais intensa é a luta do ego para salvar o objeto amado e mais difícil é a reparação, em função das exigências do superego.

Há uma espécie de dívida, mas uma dívida que parece impagável. Remorso, ressentimento e desejo de perfeição estão arraigados na angústia depressiva de ter atacado o objeto amado, despertando dor, tristeza e culpa.

Existe a dúvida do próprio amor, da bondade do objeto amado. A culpa incurável e insubordinável, pois em sua origem está o medo de perder o amor ou o seu equivalente, o medo da agressão do outro.

Os sofrimentos relacionados com a posição depressiva lançam a pessoa na posição paranóica. Isto explica, segundo Klein, porque a depressão é encontrada freqüentemente com a paranóia.

Parece-me ser característico do paranóico que, embora desenvolva um forte e agudo poder de observação do mundo externo e dos objetos reais, por causa de sua intensa ansiedade de perseguição e de suas suspeitas, – esta observação e o seu sentido de realidade estão falseados, uma vez que a angústia de perseguição faz com que olhe as outras pessoas principalmente do ponto de vista de que sejam perseguidores ou não. [...]
Se compararmos os sentimentos do paranóico com os do depressivo no que respeita à desintegração, podemos ver que, caracteristicamente, o depressivo está cheio de dor e de ansiedade pelo objeto e lutará para uni-lo de novo num todo, enquanto para o paranóico o objeto desintegrado é principalmente uma multidão de perseguidores, uma vez que cada pedaço cresce de novo e se torna perseguidor.
(KLEIN, 1981, p 367).

Na clínica, os sintomas paranóicos aparecem nos pacientes que buscam o que está atrás dos fatos com uma hipertrofia do ego, com falhas de autocrítica e nuances de arrogância. Parece que toda linguagem é interpretada como uma cilada. A hipocondria também é uma forma de paranóia.

Os sintomas depressivos desvelam o masoquismo primário, a pessoa permite para os outros, mas não para si mesma. O lamento é contra alguém, os comportamentos são engendrados por acusações e agressividade, mostrando uma identificação com o objeto perdido.

O desejo, a culpa, a angústia se articulam no ego invadido por medo, perda e remorso. O ódio ocupa um espaço, o lugar do amor, aumenta a culpa de existir, de ser ou de ter.

A luta entre a pulsão de vida e de morte persiste a vida inteira. Parece que a fonte de angústia não tem como ser eliminada. Por isso, há uma exigência de punição, já que os desejos proibidos não podem ser escondidos. As pessoas ficam presas nas pulsões e nas fantasias, portanto, não é possível se libertarem.

Para Laplanche (1987), o objeto perdido, introjetado como mau, é clivado, produzindo a angústia que se estende ao desamparo, a condição originária diante do outro.

Como refugiar-se desses objetos amados e temidos? Que recursos são usados para sobreviver à melancolia, à depressão? Como sobreviver ao avião sem asa, à fogueira sem brasa, ao futebol sem bola, ao pior castigo...

Na mania encontra-se o refúgio. Na mania, o ego refugia-se da melancolia e da paranóia, da ambivalência dos sentimentos. Usa mecanismos como a onipotência, a negação da realidade psíquica e de parte da realidade externa, com uma hiperatividade. Nega a importância do que perdeu e dos perigos que ameaçam o mundo interior por parte do id, o medo de ser destruído pelo outro. Nega a dependência do outro para se proteger. A mania é uma forma de auto-engano, com as máscaras da auto-suficiência e da grandiosidade.

A pessoa defende-se do medo, tenta controlar e dominar os objetos internos como forma de livrar-se dos danos que “pode” ter provocado. As defesas maníacas assumem muitas formas, mas todas denotam a fome de alguém, a carência do colo, a supressão da responsabilidade, acompanhado do desprezo e do desejo do que foi desprezado.

 

>O presente do passado...

A psicanálise kleiniana remete à diferença entre a criança e o infantil. O infantil corresponde a uma dimensão atemporal, operando em todos os processos psíquicos. A criança é temporal, mas sempre há uma criança no adulto, algo do infantil permanece no mundo interno, pois o inconsciente não é autônomo. O inconsciente mostra-se voraz, por vezes onipotente em termos de desejo e grotesco em termos pulsionais.

Na análise nos guiamos pelas ansiedades e culpas do paciente, pois toda pulsão tem um correlato na fantasia inconsciente. Aprendemos a nomear e interpretar as defesas para acessar e mobilizar as angústias que as originam. Procuramos nos aproximar da linguagem do paciente, numa associação significante, pois tudo que é dito, relatado, precisa ser visto como endereçado ao analista.

Na transferência, o analista ocupa diferentes lugares e feições desde que focalize o aqui e agora da relação transferencial. O objeto da análise não é o passado, mas o presente complexo, sobredeterminado pela criança atuante com modos de defesa, resistências, vínculos com os objetos externos e internos.

É preciso movimentar as emoções inibidas que causam a pobreza afetiva. É preciso assinalar a idealização, pois não podemos aceitar a permanência no lugar idealizado, precisamos desmascarar as faces da voracidade, da inveja, do ciúme, do ódio que geram reações terapêuticas negativas.

A análise deve ajudar na elaboração das frustrações, aumentando a capacidade de sustentar laços complexos e ambivalentes, admitindo a autonomia do outro, superando o narcisismo e encontrando a alteridade.

Reconstruir, recordar e repetir, no modelo freudiano, representa uma condição de operar no tratamento analítico. É importante analisar o que se repete no espaço terapêutico para que o paciente recorde e torne consciente o inconsciente, a angústia, o percurso da sexualidade e a ligação com as pessoas do passado. Para Freud, a consciência representa a ponta de um iceberg, pois a maior parte do mundo afetivo permanece recalcada no inconsciente.

Melanie Klein concebeu um mundo interno repleto de objetos, alguns agrupados em torno do self, que propiciam identificações e modalidades de relacionamento com o que pensamos ser. Os estados mentais são ativos desde o nascimento, sob a pressão das necessidades de fome, de cuidado, de desejo e, portanto, pulsões de vida e de morte expressas em fantasias e atuações. Assim, cada pulsão desperta uma fantasia para satisfazê-la, o alimento bom que nutre ou o alimento mau que priva. Provisão, contato e, principalmente, a maneira como ficam impressas as percepções e emoções de ser olhado, tocado e desejado pelo outro.

No aspecto transferencial, as fantasias se expressam no contato entre analista e analisando. De forma deslocada, as experiências e conflitos com as pessoas do passado são revividos. O paciente mostra para o analista uma parte dos sentimentos, pensamentos e fantasias alojados em seu mundo interior. Transfere as defesas e as pessoas sob a ótica do passado. Seus relatos são dirigidos ao analista, que deve digeri-los, ainda que pareçam distantes do contexto atual, pois são os meios que tem para apresentar ou representar a repetição. Enxergar o bebê e a criança no adulto é o desafio do encontro analítico, compreendendo a angústia que precisa ser revivida, tolerada e decodificada.

Para Spillius (2006), o analista não pode fazer as conexões do passado, pois o que passou é vivenciado e deve ser trabalhado no setting entre analista e analisando. O trabalho analítico consiste em “sustentar” a angústia que está sendo transferida, projetada e introjetada pelo analista, nomeando-a para que possa ser transformada.

Os impactos e impasses surgem na dimensão simbólica, nas palavras e também na ação e reação, no comportamento que mostra a falha narcísica, o desespero, a onipotência, o triunfo ou o desprezo provocado por uma sensação de agonia, por uma angústia.

Como descobrir e entender o que está acontecendo? Este é o desafio de psicanalisar, de enfrentar o passado do presente ou o presente do passado, de compreender o significado do prazer sem fim, do desejo insatisfeito, porque o desejo não tem fim.

No livro Diálogos Klein-Lacan (BUR-GOYNE; SULLIVAN, 2001), os autores ressaltam que, segundo Lacan, as leis da intersubjetividade colocam a transferência como um fenômeno no qual analisando e analista estão incluídos por um inconsciente dinâmico repleto de significantes. Mas, quando falta significante no analista, surge uma contratransferência, um desvio na técnica, uma ausência que passa a ser preenchida pelo paciente com a fórmula do analista sujeito suposto saber, sujeito idealizado e portador da resposta da Esfinge, daquela que devora se não for decifrada. Esfinge em grego é sfinx e significa a que aperta e sufoca. Na angústia, não há calmaria, mas um mar agitado, no qual as ondas recuam e avançam com a força da verdade, da castração, do inevitável...

 

Referências

ABRAHAM, Karl. Teoria psicanalítica da libido: sobre o caráter e o desenvolvimento da libido. Rio de Janeiro: Imago, 1970.

BURGOYNE, Bernard; SULLIVAN, Mary. Diálogos Klein-Lacan. São Paulo: Via Lettera, 2001.

KLEIN, Melanie. Contribuições à Psicanálise. São Paulo: Mestre Jou, 1981.

KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

LAPLANCHE, Jean. Problemáticas I: a angústia. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

MORAES, Caca; ABDULLAH. Fico assim sem você. Intérprete: Adriana Calcanhoto. In: CALCANHOTO, Adriana. Adriana Partimpim. [s.l.]: Sony BMG, p 2004. 1 CD. Faixa 4 (2 min 28 s).

SPILLIUS, Elizabeth. Uma visão da evolução clínica kleiniana. Rio de Janeiro: Imago, 2006.

 

 

Endereço para correspondência:
Av. Protásio Alves, 1981/309
90410-002 - Porto Alegre - RS
E-mail: mbjramos@terra.com.br

Recebido em 01/05/2008

 

 

* Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora da Faculdade de Educação da PUCRS.