Este texto comenta
as três formas de comicidade: chiste, cômico e humor, ressaltando
que o humor possui “qualquer coisa de grandeza e elevação”,
que falta às demais formas de buscar o prazer pela atividade intelectual.
Aborda ainda suas implicações na clínica psicanalítica,
mostrando as características do superego do analisando, assim como a
invulnerabilidade do ego e o triunfo do narcisismo diante dos sofrimentos inevitáveis
da vida, e como o sujeito pode transformar seu drama individual no simples trágico
existencial.
Palavras-chave:
Humor, Chiste, Cômico, Masoquismo, Narcisismo, Pulsão de morte,
Invulnerabilidade do ego, Superego.
ABSTRACT
This text coments
the three forms of comicity: wit, comedy and humour, showing that humour gets
“something of greatness and elevation” that is missing in the other
forms of getting pleasure from intellectual activity. The author discusses the
implications of humour in the psychoanalytic clinic, focusing upon the characteristics
of the patient’s superego, as well as, the invulnerability of the ego
and the triumph of narcissism in dealing with the sufferings of life, and ways
used by people to transform individual drama into simple existential tragedy.
Keywords:
Humour, Wit, Comedy, Masochism, Narcissism, Death impulse, Invulnerability of
the ego, Superego.
Autorretrato
Por mi parte,
soy o creo ser duro de nariz, mínimo de ojos, escaso de pelos en la cabeza,
creciente de abdomen, largo de piernas, ancho de suelas, amarillo de tez,
generoso de amores, imposible de cálculos, confuso de palabras, tierno
de manos,
lento de andar, inoxidable de corazón, aficionado a estrellas, mareas,
terremotos,
admirador de escarabajos, caminante de arenas, torpe de instituciones,
chileno a perpetuidad, amigo de mis amigos, mudo para enemigos,
entrometido entre pájaros, mal educado en casa, tímido en los
salones,
audaz en la soledad, arrepentido sin objeto, horrendo administrador, navegante
de boca, yerbatero de la tinta, discreto entre animales, afortunado en nubarrones,
investigador en mercados, oscuro en las bibliotecas, melancólico en las
cordilleras,
incansable en los bosques, lentísimo de contestaciones, ocurrente años
después,
vulgar durante todo el año, resplandeciente con cuaderno, monumental
de apetito,
tigre para dormir, sosegado en la alegría, inspector de cielo nocturno,
trabajador invisible, desordenado, persistente, valiente por necesidad,
cobarde sin pecado, soñoliento de vocación, amable de mujeres,
activo por padecimiento, poeta por maldición y tonto de capirote.
Pablo Neruda
Auto-retrato
De minha parte,
sou ou creio ser de nariz grande, de olhos pequenos, com poucos cabelos na cabeça,
de abdômen volumoso, de pernas compridas, de pés grandes, amarelo
de pele,
generoso nos amores, impossível com cálculos, confuso com as palavras,
terno com as mãos,
lento ao andar, de coração inoxidável, adorador das estrelas,
marés, terremotos,
admirador de besouros, caminhante das areias, ignorante das instituições,
chileno perpétuo, amigo dos meus amigos, mudo com inimigos,
intrometido entre os pássaros, mal-educado em casa, tímido nos
salões,
audaz na solidão, arrependido sem objeto, horrendo administrador, navegante
de boca,
curandeiro da tinta, discreto entre animais, afortunado nas nuvens densas,
pesquisador de mercados, obscuro nas bibliotecas, melancólico nas cordilheiras,
incansável nas florestas, lentíssimo nas respostas, ocorrente
anos depois,
vulgar durante todo o ano, resplandecente com meu caderno, de apetite monumental,
tigre para dormir, sossegado na alegria, inspetor do céu noturno,
trabalhador invisível, desordenado, persistente, valente por necessidade,
covarde sem pecado, sonolento por vocação, amável com mulheres,
ativo por padecimento, poeta por maldição e tonto dos tontos.
Pablo Neruda - (Chile, 1904-1973) Prêmio Nobel de Literatura em 1971.
A leveza de atitude
é um privilégio de algumas pessoas, quando, diante do real que
as assola, têm a capacidade de rir de si mesmas ou do outro, ao fazer
uma anedota suprimindo, in statu nascendi, um afeto doloroso.
O humor, como
tema psicanalítico, foi pouco estudado pelos clínicos. Temos vários
ensaios sobre o riso, mas quase todos enfocam a vertente do cômico que
é significativamente diferente do humor. Autores como Henri Bergson (1899),
Mikhail Bakhtin (1996) e Vladimir Propp (1992) têm interessantes obras
sobre os bastidores do riso e os procedimentos para produção da
comicidade. Freud foi um grande leitor de Theodor Lipps cuja obra Komik
und Humor (1898) muito o influenciou.
Como palavra,
ele é empregado em vários sentidos. Humor como elemento líquido
de toda espécie: água, vinho, lágrimas, sangue. Da teoria
de Hipócrates, temos os humores do corpo: sangue, fleuma, bile amarela
e bile negra, que, em concentrações diferentes, corresponderiam
aos temperamentos: sanguíneo, fleumático, melancólico e
colérico. Depois se desenvolveram as teorias de Galeno, Paracelso, Kraepelin,
chegando ao conceito de timia e de distúrbios do humor na psiquiatria,
hoje em dia muito em voga com a multiplicação dos diagnósticos
de casos de bipolaridade. E, ainda, humor como umidade. Estaria aqui o germe
do riso úmido, o riso entre lágrimas, uma evidência da contraposição
entre vida e morte?
Como descrição
de estados de espírito, as pessoas podem ser bem ou mal-humoradas, referindo
a um modo de ser diante da vida. Se tomada como um substantivo adjetivado, a
expressão adquire outro emprego: estar de bom humor ou de mau humor,
significando momentos pontuais, quando algo desconhecido, pelo observador ou
pelo próprio sujeito, está influenciando as relações
interpessoais da pessoa em questão.
Temos, ainda,
o humor na mídia: o humorismo como forma de provocar o riso e a graça
voluntariamente, ao abordar, com acentuado exagero, irreverência e crítica,
temas do cotidiano, evidenciando as contradições do humano.
Mas o humor de
que trata a psicanálise é de outra ordem. Apareceu pela primeira
vez em 1905, na seção 7 do último capítulo do livro
Os chistes e sua relação com o inconsciente, sendo retomado
vinte e dois anos depois no texto O humor (1927), para ser apresentado
na abertura do X Congresso Psicanalítico Internacional, em Innsbruck.
Nessa época, já havia o estudo da segunda tópica, mostrando
uma nova estruturação do aparelho psíquico, Id, Ego e Superego,
acrescentados às instâncias Ics, Pcs e Cs, acrescidas, agora, dos
conceitos sobre masoquismo, narcisismo e pulsão de morte. Este texto
trabalha a tese do triunfo do eu, que se recusa a ser afligido pelas provocações
da realidade e se recusa a permitir que seja compelido a sofrer diante das intempéries
da vida, e o faz de forma espirituosa e leve, sem ser arrogante nem niilista.
Assim como o chiste
e o cômico – e, dentro deste, a mímica, a pantomima, a caricatura,
o travestismo, a paródia, o disfarce, o desmascaramento, a imitação
etc. –, o humor é classificado como uma das formas de comicidade.
Todas “têm algo de liberador, mas só o humor é que
possui qualquer coisa de grandeza e elevação, que falta às
outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza
reside no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade
do ego”1.
Alguns autores
trataram o tema do prazer igualando chiste e humor, porém Freud foi muito
claro na distinção deles, inclusive quanto às suas origens
no psiquismo. O chiste é construído por uma idéia recalcada
no Inconsciente que, sob certa pressão, força passagem surgindo
pronto na Consciência. É uma formação do inconsciente,
assim como os sonhos, os atos falhos e os sintomas. Sua produção
exige o compartilhamento pelo público da mesma representação
recalcada, sofrer as mesmas pressões e ter experiência da situação
enfocada. Isto é o que Freud chamou de “serem da mesma paróquia”.
Sua construção requer três lugares: quem faz, o assunto
e quem o confirma com uma gargalhada. Temos o chiste do FAMILIONÁRIO,
contado pelo poeta alemão Heinrich Heine, que é o chiste por excelência,
trabalhado no texto de Freud, de 1905. Já o humor tem sua origem no Pré-consciente,
por atuação do Superego, na evitação de um sentimento
doloroso iminente. Não tem a mesma explosão de prazer e riso encontrados
no chiste, porém, é mais sublime e enobrecedor. Ambos estão
a serviço do princípio do prazer, mas de formas diferentes, e
é bem verdade que o estudo do humor tem suas raízes nos chistes.
Podemos conferir o humor, por exemplo, nos filmes de Charles Chaplin e Wood
Allen. O cômico é uma relação dual: quem constata
e o que é constatado. O riso surge da diferença na comparação
entre a expectativa de uma idéia e sua constatação. Geralmente
põe em evidência uma despesa maior que a necessária. Exemplos
clássicos temos nos filmes: Os Três Patetas, O Gordo e o Magro,
Os Trapalhões, etc.
Essas três
modalidades da comicidade podem ser estudadas segundo o entrelaçamento
dos três registros psíquicos: simbólico, real e imaginário.
O chiste privilegia o simbólico, o cômico é atravessado
pelo imaginário, ficando o humor no enfrentamento com o real.
O humor “não
é resignado, mas rebelde”, disse Freud, chamando a atenção
para a determinação da mente em rejeitar as reivindicações
da realidade e sustentar o princípio do prazer. Para Alberto Goldin,
o humor “denuncia os disfarces com os quais a civilização
oculta a precária realidade humana”2.
Para Henri Bergson, ele nos poupa da fadiga de viver.
É dito
que as mulheres fazem ou têm menos humor. A explicação se
pauta na força das restrições impostas a elas pela cultura
falocêntrica, que abafa o riso das mulheres, e pela constatação
da castração, elas não têm do que rir. Só
o fazem quando se sentem liberadas da dor que esta falta lhes imprime, e em
companhia de outras mulheres, que também admitem, sem drama, sua insuficiência
fálica. Outro ponto que corrobora esta idéia é a questão
da elasticidade do superego feminino, que as distanciaria da produção
do humor.
D. Kupermann relata,
em seu livro Seria trágico... se não fosse cômico,
uma pesquisa divulgada em 2005, realizada por Eric Bressler, do Departamento
de Psicologia da McMaster University do Canadá, que constatou que 62%
das mulheres preferem homens que as fazem rir; 65% dos homens preferem mulheres,
para os relacionamentos sexuais, que apreciem seu humor; e, para as amizades,
preferem ficar perto de mulheres que produzam humor. Dados curiosos, mas confirmam
as bases da nossa cultura ocidental.
A mente humana
possui vários métodos que possibilitam escapar da realidade incômoda,
evitando o sofrimento. Vai da neurose à loucura, passando pelas drogas,
intoxicações, auto-absorção, êxtase, fantasia,
etc., mas é pelo humor que o conseguimos sem ultrapassar os limites da
saúde mental. Através dele, a pessoa afasta-se da dor, reconhecendo,
no entanto, a fragilidade humana, sem negá-la.
Freud o considera
“um dom raro e precioso”. Ele mesmo foi descrito, pelos seus biógrafos,
como sendo um homem espirituoso. Algumas passagens de sua vida confirmam este
dom, por exemplo, quando as autoridades nazistas exigiram que ele assinasse
um documento declarando não ter sofrido maus-tratos. Ele assinou, mas
acrescentou de próprio punho: “Posso recomendar altamente a Gestapo
a todos”3. Para sua sorte,
seu fino humor passou despercebido pelos oficiais. Peter Gay chamou este ato
de “um gesto curioso”, mas, em que pesem as especulações,
Freud mostrou com esse gesto sua vitalidade e desafio ao sofrimento, ainda presentes,
já com mais de 80 anos.
Também
disse a Ernest Jones, ao saber da queima de seus livros: “Que progressos
estamos fazendo! Na Idade Média, teriam queimado a mim; hoje em dia,
eles se contentam em queimar meus livros”4.
E ainda em seus
últimos dias, estando ao lado do seu médico, Max Schur, escutaram
o anúncio no rádio de que aquela seria a última guerra.
Max Schur então lhe perguntou se ele acreditava nisto, ele lhe respondeu:
“Minha última guerra”5.
A atitude de reagir
pelo humor às desgraças da vida mostra ser o homem um incansável
buscador de prazer. Dá primazia ao princípio de prazer-desprazer.
Goza com inteligência dos infortúnios e da morte. Atesta pela alegria,
conquistada por uma ironia fina, mas não destrutiva, a recuperação
do humor da nossa infância, quando não precisávamos recorrer
ao cômico para nos sentirmos felizes na vida.
O humor é
rebelde ao se contrapor a uma realidade deserotizada, à resignação
de uma inércia psíquica, à cisão entre os princípios
de prazer e de realidade, à melancolia do desinvestimento libidinal,
à resignação masoquista, ao real implacável. Consegue-se
esta proeza quando a carga libidinal do eu afligido é transferida para
o superego, inflando-o, de modo que este último, assim fortalecido, se
torna afável e complacente, como teriam sido os pais da infância
ante a criança desamparada. Esta é uma alternativa possível
para o masoquismo, que, segundo D. Kupermann, parece ser “o destino inexorável
para as subjetividades”6.
No masoquismo, o sujeito erotiza o sofrimento, coloca em primeiro plano suas
queixas intermináveis de tudo e de todos. São lamentos impregnados
pela ação da pulsão de morte e, sem dúvida, mal-humorados.
Freud sempre enfatizou
a questão econômica: a carga energética investida no processo
de afastamento de uma representação para evitar o desprazer e
como sua liberação pode ser seguida pelo riso. D. Kupermann fala
também de efeitos semelhantes do ato analítico. “Há,
nesse sentido, a indicação de uma dimensão eminentemente
econômica embutida nos efeitos esperados do ato analítico, intensidades
que não necessitam, e talvez mesmo não possam, ser representadas”7,
então, convocam o corpo, que se expressa pelo riso.
Seria o humor
um estado de felicidade? Desde 1895, no texto A psicoterapia da histeria,
Freud já afirmava que a psicanálise não prometia a felicidade
e que seus propósitos se concentravam em transformar “a miséria
histérica” em “infelicidade banal”, o sofrimento neurótico,
o drama pessoal, em infelicidade comum, pensando que, com a restauração
do equilíbrio das forças psíquicas, com a elaboração
dos traumas e uma nova distribuição do investimento libidinal,
os pacientes estariam mais preparados para lidar com a infelicidade.
Em 1929, Freud
escreve: “A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como
possível, constitui um problema da economia da libido do indivíduo.
Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de
descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”8.
Da mesma forma, Lacan pergunta: “Agiste conforme o desejo que te habita?”9,
no Seminário, Livro 7, A Ética da Psicanálise.
A única coisa da qual se possa ser culpado é ceder de seu desejo,
colocando-o a serviço dos bens. Isto é, conformando-os à
ética tradicional: da depreciação do desejo, da modéstia
e da temperança. A ética da psicanálise implica a dimensão
da experiência trágica da vida, assim como sua dimensão
cômica, daí a existência do tragicômico. Fazer as coisas
em nome do bem e, ainda mais, em nome do bem do outro não nos protege
da culpa, das catástrofes interiores, da neurose e suas conseqüências.
Já os poetas apontaram bem antes: “Nada é mais difícil
de suportar que uma sucessão de dias belos”10,
nos adverte Goethe. Então, se não pode ser um estado eternizado,
se é uma questão de economia/investimento, se busca o reconhecimento
do próprio desejo, podemos dizer que a felicidade é pontual, marcada
pelo afeto da alegria, prazerosa e fugaz. O humor está no caminho certo!
A satisfação
sentida pelo humor se iguala à satisfação da experiência
da criação sublimatória. É também o que sentimos
na contemplação do belo na obra de arte. Lacan ressalta que, na
sublimação, este estado afetivo ocorre pelo movimento da troca
do objeto, e não só pelo fato de a pulsão atingir seu alvo:
a satisfação. O enfoque passa a ser a mudança, o dinâmico
impresso no movimento desejante e não o objeto em si. Este é mutável.
“Insisto – essa relação propriamente metonímica
de um significante ao outro que chamamos de desejo, não é o novo
objeto, nem o objeto anterior, é a própria mudança de objeto
em si”11.
A felicidade,
por ser da ordem do imaginário, não pode ser prometida por ninguém
a ninguém, mas pode-se conquistar, por uma análise bem conduzida
e bem-sucedida, um “gaio saber”, que mesmo sendo um saber de conteúdo
desagradável, revela uma alegria pela sua conquista. O prazer é
fruto do reencontro com o conhecimento. Gaio saber, termo usado por Lacan, ou
gaia ciência vem do Romantismo, “saber alegre”, que concerne
à arte dos poetas de combinar rimas e estrofes.
Este gaio saber
é “um saber que pode promover uma modificação no
sentido do resgate para o sujeito, da potência de pensar e agir criativamente”12.
É um saber que não se aniquila com o saber sobre a falta; que
suporta nossa condição sexuada e mortal; que reconhece a falta
do ser e a impossibilidade de um gozo absoluto. Nele a alegria se impõe,
não desconhecendo o trágico da experiência de viver. O superego
diria ao eu: “O mundo parece perigoso, mas não passa de um jogo
infantil, digno apenas de uma anedota sobre ele”13.
O humor seduz!
Na análise, feito pelo analista ou pelo paciente, ele seria uma sedução,
uma ironia, um deboche, uma desconsideração pela dor do outro,
uma agressividade? Seria um descaminho à ética? Há aí
um engano. Não é uma proposta de que o analista ou o analisando
sejam engraçados ou divertidos e, sim, que se outorgue ao humor ou ao
chiste o status de interpretação. Esse dom, “raro
e precioso”, é a habilidade que o homem, potencialmente, tem, mas
só alguns conseguem transformar o drama individual no simples trágico
existencial, salvando-se pelo humor; uma constatação de que nada
foi sério fora dos nossos campos imaginário e simbólico.
No livro sobre
os chistes, Freud fala do riso do paciente quando a interpretação
do analista vai ao encontro do material inconsciente. Como se, pego em flagrante,
não tivesse palavras para recobrir esta descoberta. Seu consentimento
é expresso pelo riso, mesmo que seu conteúdo não o justifique.
Os analisandos
que, durante o percurso analítico, conseguem ter atitudes mais amenas,
ternas e afetuosas consigo mesmos, que conseguem rir dos próprios tropeços,
sem dúvida, caminharão no sentido de se afastarem da fatalidade
na qual se encontram. François Roustang também refere ser este
dom igualmente desejável no analista. Os analistas sisudos conduzem ao
pior, à “incapacidade de análise – por não
serem susceptíveis de estarem, também eles, em outro nível
além do que se encontram”14.
O humor abre a possibilidade de as defesas se deslocarem e mudarem de posição
e de lugar. Há um esvaziamento do estilo dramático da narrativa
do paciente que neste momento se depara com a inutilidade do gozo que, até
então, manteve o sujeito preso ao seu drama.
A respeito do
humor macabro, o humor negro, François Roustang diz ser esta a única
maneira de que dispõe o homem para provar seu respeito em relação
à morte. É um anteparo saudável para a insistência
da pulsão de morte. É uma tentativa de driblar a morte, reconhecendo-a.
Sendo “liberador e enobrecedor”, o humor brinca com a morte numa
transgressão autorizada pelo superego, num esmaecimento do princípio
de realidade a favor do princípio de prazer. Como expressa Abrão
Slavutzky, “é uma colônia do princípio do prazer no
território do princípio de realidade”15.
É comum surgirem piadas de humor negro após grandes catástrofes.
Isto parece, a princípio, um desrespeito à dor, à perda,
ao sofrimento, mas é justamente o contrário. Esta é uma
forma de reverenciar a morte e reconhecer nosso limite diante dela, mas, mesmo
assim, podemos driblar o sofrimento!
A aproximação
que se faz do conceito do Unheimlich, o estranho, com o riso diz respeito
mais ao chiste e ao cômico do que ao humor, pois mostra o que deveria
ter permanecido secreto e veio à luz sem pedir licença, que é
mais próprio às duas primeiras formas de comicidade.
Sonia Alberti,
no ensaio Fragmentos de um discurso humorístico, retoma as idéias
freudianas dizendo: “o humor é ponto de partida para o conhecimento
de um superego que fala de forma consoladora e amorosa ao ego”16,
permitindo o gozo pelo imperativo: Goze!, não proibitivo, mas vital.
Já o mau humor é uma vivência, também ilusória,
de uma proibição de gozo pelos pais da infância, proibição
que neste caso se mostra como uma incapacidade de suplantá-los. O indivíduo
não se sente autorizado a suplantar os pais do Édipo.
Dizer bom humor
é uma redundância! Deveríamos dizer humor e mau humor, porque
humor é este estado de bem-estar e escorrega-se dele para o mau humor.
Este último é, para Lacan, a “emoção própria
de um corpo que não encontra lugar na linguagem, pelo menos não
de seu agrado”17.
Octave Mannoni,
num ensaio também sobre O riso (1984), impediu que este tema
continuasse no limbo em que “analistas carrancudos e suas análises
melancólicas o mantiveram encerrado”. São ainda suas palavras:
“no decorrer de uma sessão, no momento em que se revela o sentido
de uma falta que libera alguma coisa do inconsciente, o riso do paciente ou
do analista pode ter muito sentido. É o sinal da eliminação
de um obstáculo inconsciente. A angústia, o medo, a cólera,
as lágrimas não fornecem, evidentemente, nada tão valioso,
embora também possuam seu sentido. E o sério, que coloca o analista
numa posição de controle, e o analisando, pode-se dizer, numa
posição de expectativa ansiosa, não tem as mesmas virtudes
[...]”18.
De uma paciente,
escutei o seguinte relato: “Meu marido (que tem limitações
físicas) perdeu o emprego, justamente quando nos preparávamos
para mobiliar a casa”. Então ela lhe disse: “Resolvido! Nossos
móveis serão comprados na Imaginarium!”, referindo-se a
uma conhecida loja dos nossos shoppings.
Certa vez, ouvi
de meu pai: “Há que se ter sentimentos mais delicados para com
a vida, quando o infortúnio nos surpreende!”
“O sujeito
bem-humorado reconhece com mais facilidade a presença em si de suas vulnerabilidades
e falhas”19. Não
se outorga a posição de estar acima do Bem e do Mal; com isto
pode, inclusive, rir e brincar com um dito humor a respeito das exigências
implacáveis do seu ego ideal e do superego. Já o sujeito que se
leva extremamente a sério, tem para com a vida uma atitude de “imponente
impotência”, fachada para um narcisismo exacerbado, mas frágil.
Ter humor é
diferente de ser chistoso e de ser um piadista. Este último, com suas
piadas, nos convida ao gozo e ao prazer pelo riso que provoca. Ele exerce uma
sedução quase de graça, mas não o é, inteiramente,
porque tem como retorno seu eu inflado. Sendo um catalisador do gozo do outro,
isto lhe confere prestígio, equilibrando suas forças psíquicas
quanto ao narcisismo e à necessidade de reconhecimento. Geralmente, não
aceita ter falhas e muito menos ser confrontado. O uso excessivo da piada e
do chiste, socialmente, pode ser uma máscara para uma personalidade instável,
porque se quer acreditar onipotente. Podemos também mudar de posição:
ora somos sedutores, ora seduzidos!
Enquanto no humor
certa quantidade de energia é retirada do eu e transferida para o superego,
formando o dito humorístico, no chiste é o eu que é superinvestido
pela pressão de conteúdos vindos do inconsciente, produzindo o
dito chistoso, numa formação do inconsciente. Em ambos, há
a primazia do princípio do prazer, mas têm objetivos diferentes.
No primeiro, a intenção é evitar o sentimento doloroso
nascente; no segundo, é a busca do prazer na liberação
da pressão causada pelo recalque.
O chiste, o cômico
e o humor, e o conseqüente riso, são formas construídas pelo
sujeito para lidar, de modo mais eficiente, com a constatação
inequívoca do mal-estar na cultura, do desamparo estrutural, da pulsão
de morte que o habita, das desgraças da vida, da infelicidade que o assola,
inscrevendo a dimensão trágica da existência. Wittgenstein
definiu o humor como uma maneira de olhar o mundo.
A condução
de uma análise não deve fixar-se no registro do drama, e, sim,
investir em transformá-lo no registro apenas do trágico. Segundo
Joel Birman, foi Lacan quem relançou essa dimensão do trágico
na psicanálise, ao enunciar a existência da relação
paradoxal do sujeito com a dor, o prazer e a morte que se descortinam na experiência
psicanalítica. O humor já faz parte das possibilidades clínicas,
tirando o analista de uma posição rígida, sem cair, no
entanto, no piadista irreverente.
Este tema vem
mostrar quanto ele permeia nossa experiência clínica e institucional.
Se a psicanálise visa à subversão do sujeito, o humor a
evidencia. Elisabeth Roudinesco disse, certa vez, que vivemos em uma sociedade
depressiva. Um mau humor crônico se apossou das pessoas, que mostram uma
amargura na vida, às quais faltam humor e prazer em viver. A cultura
pós-moderna exige do homem uma adaptação a novas exigências
e um culto ao sucesso pessoal, a qualquer custo, gerando baixa resistência
à frustração e à castração.
A presença
do humor na clínica traz indicações sobre as características
do superego do analisando e sua capacidade de não se fixar numa posição
masoquista, sendo uma vítima acorrentada à pulsão de morte,
de não se petrificar numa mortificação melancólica,
mas saber deslocar-se da impotência do dramático para, de modo
triunfante, dar a volta por cima, principalmente pelo sublime do humor. Aqui
ficamos com os versos do poeta Paulo Vanzolini em Volta por cima.
Chorei,
não procurei esconder, todos viram!
Fingiram pena de mim, não precisava!
Ali, onde eu chorei, qualquer um chorava.
Dar a volta por cima que eu dei,
Quero ver quem dava!
Um homem
de moral, não fica no chão,
Nem quer que mulher, lhe venha dar a mão!
Reconhece a queda e não desanima!
Levanta, sacode a poeira e
dá a volta por cima!
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completas. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p.190. 2 GOLDIN, A. De amores e humores.
Cadernos de Psicanálise, Sociedade de Psicologia Clínica
do Rio de Janeiro, Instituto de Psicanálise, ano 3, n.5, 1984. p.36. 3 GAY, P. Freud, uma vida para
o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 567. 4 Id., ibid., p536. 5 Id., ibid., p 586. 6 KUPERMANN, D. Ousar rir:
humor, criação e psicanálise. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 27. 7 Id., ibid., p. 223. 8 FREUD, S. O mal-estar na civilização.
[1929], op. cit. v. XXI. p.103. 9 LACAN, J. O Seminário,
livro 7: a ética da psicanálise [1959/60]. Rio de
Janeiro: JZE, 1988. p.376. 10 FREUD, S. O mal-estar na civilização
[1929], op. cit. v. XXI. p.95. 11 LACAN, J. O Seminário,
livro 7: a ética da psicanálise [1959/60] op. cit.
p.352. 12 KUPERMANN, D. Ousar rir:
humor, criação e psicanálise, op.cit., p. 230. 13 FREUD, S. O humor, [1927],
op. cit., v. XXI, p.194. 14 ROUSTANG, F. Meu caro amigo.
Cadernos de Psicanálise, Sociedade de Psicologia Clínica
do Rio de Janeiro, Instituto de Psicanálise, ano 3, n.5, 1984. p. 31. 15 SLAVUTZKY, A. O precioso dom
do humor. In: Kupermann, Daniel (Org.). Seria trágico... se não
fosse cômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p.21. 16 ALBERTI, S. Fragmentos de um
discurso humorístico. Cadernos de Psicanálise, Sociedade
de Psicologia Clínica do Rio de Janeiro, Instituto de Psicanálise,
ano 3, n.5, 1984. p. 8. 17 PEREDA, L. C. Humor e Psicanálise.
In: Kupermann, Daniel(Org.). Seria trágico... se não fosse
cômico, op. cit., p.115. 18 Apud AGUIAR, Fernando. O humor
analítico: o modelo Witzig de interpretação. Percurso:
Revista de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, ano 17, n.33,
2004. 19 BIRMAN, J. Frente e verso:
o trágico e o cômico na desconstrução do poder. In:
Kupermann, Daniel. (Org.). Seria trágico... se não fosse cômico,
op. cit., p. 90.