Círculo
Psicanalítico da Bahia
Universidade Federal da Bahia
Academia Brasileira de Médicos Escritores Endereço
para correspondência
RESUMO
Tomando por base
o filme de Michael Radford “O carteiro e o poeta” propõe-se
uma leitura psicanalítica. Poetas e carteiros são simbólicos
condutores de palavras – eles as transferem. Entre Pablo Neruda e o carteiro
italiano, instala-se uma transferência. Pablo quer um filho, assim como
Mario Ruopollo procura um pai. De metáfora em metáfora, ocorre
o encontro dos dois.
Based on the film
directed by Michael Radford “The postman and the poet”, a psychoanalitic
reading is proposed. Poets and postmen are words conductors in a symbolic sense
– they do transfer. In a way, we may say a transference is stablished
between Pablo Neruda (the poet) and Mario Ruopollo (the postman). Pablo looks
for a son, as well as, Mario seeks for a father. Metaphor by meytaphor they
come to a lively encounter.
“O carteiro
e o poeta” é uma co-produção ítalo-francesa
dirigida por Michael Radford com roteiro de Anna Pavignano, Michael Radford
e Massimo Troisi, tendo como atores principais Phillipe Noiret e Masimo Troisi,
baseado no livro de Antonio Skarmeta Il postino di Neruda que, literalmente,
seria traduzido por “O carteiro de Neruda”. O papel feminino principal
coube a Maria Grazia Cucinotta. Radford nasceu na Inglaterra e seus primeiros
trabalhos cinematográficos foram para a tevê. Fez vários
documentários para a BBC de Londres e, em 1984, seu primeiro longa metragem
foi premiado no festival de Cannes. Depois de anos no ostracismo, foi convidado
por Massimo Troisi para co-dirigir “O carteiro e o poeta”.
Troisi era italiano
e nasceu em 1953. Sua carreira no cinema foi sempre de comediante. O livro de
Skarmeta o encantou e decidiu dirigir, juntamente com Michael Radford, o filme
no qual se incumbiu do papel principal, seu primeiro papel sério. Portador
de cardiopatia, Massimo Troisi desmaiou algumas vezes durante as filmagens e
Radford lhe propôs abandonar o filme, mas Massimo não concordou.
Lutou com toda a garra pelo filme ao qual deu a própria vida. O coração
de Troisi, que aguardava um transplante, falhou 12h após a conclusão
das filmagens. O Oscar de melhor ator foi a maior homenagem póstuma,
e a belíssima trilha sonora de Luis Bacalov também ganhou a estatueta
de ouro de Hollywood.
É um filme
para todos os sentidos e em todos os sentidos. A fotografia é linda,
a música, maravilhosa e os textos, magníficos. Um libelo à
amizade, à fraternidade e à lealdade. Uma ode ao amor e à
poesia. Uma prova incontestável de que a poesia pode estar em toda parte,
basta que alguém seja capaz de resgatá-la para fazer-se poeta.
Para Munsterberg, “um filme deve ser feito para despertar emoções”
– é este o filme.
O cenário
do filme é uma ilha isolada na costa italiana onde o poeta Pablo Neruda
curte exílio político.
Mario Ruopollo,
tímido e introspectivo filho de pescador, não consegue ajustar-se
ao ofício da pesca, sua sensibilidade o chama para algo que não
pode ainda perceber o que seja. Em certa medida, Mario é também
um exilado. É político o exílio de Neruda, psicossocial,
o de Mario. O pai de Mario quase não fala e, quando o faz, é para
cobrar do filho que procure uma ocupação. De repente, Mario se
depara com um cartaz na porta dos Correios, procurando um carteiro que possua
bicicleta, para um emprego temporário. Mal poderia imaginar que este
trabalho mudaria o seu destino. Mario é contratado para entregar, diariamente,
a correspondência do poeta Pablo Neruda, numa casa singela, em Cala di
Sotto.
Da dimensão
do poeta, Mario tomara conhecimento através dos jornais de um cinema,
na Itália, quando da chegada do poeta. As notícias confirmam sua
popularidade, no tumulto gerado na estação Termini, em Roma, e
no assédio das mulheres italianas. Mario intriga-se com a quantidade
de cartas de mulheres, recebidas por Neruda e passa a fantasiar um poder extraordinário
desse homem, para conquistar tantos corações femininos. As explicações
do comunista dos correios de que a correspondência era política
não o convence. Ele precisa descobrir o dom especial de Pablo Neruda.
Todos os dias, Mario olha inquiridor para dentro da casa, tentando descobrir
o mistério, tenta uma conversa com Neruda, mas no começo não
logra êxito. Passa então a ler os versos do poeta e pede-lhe que
os explique. O pedido surpreende e desconcerta o poeta.”Como explicar
com as suas palavras o que eu escrevi com as minhas?” Além disso,
“a poesia explicada se torna banal”. Mas o carteiro não desiste,
volta aos versos de Neruda e declara identificar-se com ele quando diz “estou
cansado de ser homem”. A injunção angustia Mario. Mario,
porém, precisava saber que poder estranho e misterioso era esse que o
poeta possuía com as palavras. Para ele, Dom Pablo é um poço
sem fim de palavras e é capaz de dizer tudo, possui um saber infinito.
Ele o admira e inveja. Para Mario, filho de um homem que quase não usa
palavras, é muito importante o reconhecimento de um que as usa o tempo
todo com sucesso.
Poderíamos
dizer que, a partir dessa nova relação, Mario descobre a falta.
A Mario falta a referência, o pai ou a metáfora paterna. A Pablo
falta o filho – a confirmação da continuidade, da herança
da perpetuação da espécie. Como um menino em busca de um
modelo que o respalde na sua masculinidade, Mario busca Neruda e é por
ele acolhido. Deste modo, Mario também se dá conta do desejo que
o impulsiona e instiga a prosseguir em busca do seu objeto.
– Eu também
queria ser poeta. Como fazer para tornar-se poeta?
São as
palavras que ligam estes dois homens, tão diferentes quanto às
suas histórias, sua classe social, sua profissão, seus mundos,
suas crenças.
Na praia, Mario
e Pablo conversam. Pablo recita para Mario um poema que acabara de fazer e fica
pasmo com a observação do jovem de que sentira algo estranho ao
ouvir os versos, mas logo depois, encantado com a sensibilidade do rapaz, quando
este observa o ritmo das palavras semelhante ao vaivém das ondas que
o fez sentir-se como “um barco batendo entre as palavras”. Mario
faz metáforas sem se dar conta e não consegue entender como é
possível criá-las sem ter tido a intenção. A ele
escapa que as imagens chegam espontaneamente e é a intenção
o que menos importa ao poeta.
A partir desse
momento, carteiro e poeta são dois homens definitivamente envolvidos
com palavras – um que as conduz e outro que as produz. Na realidade, o
que torna uma palavra metáfora é o que o poeta é capaz
de fazer dela.
Para Mario é
tudo muito novo e instigante e o resume na pergunta: – “O mundo
inteiro é então metáfora de qualquer coisa? A pergunta
cala o poeta que promete pensar, para respondê-la no dia seguinte. Nesse
diálogo, Neruda sintetiza a essência do poético enquanto
Mario o desafia a não abandonar a dialética da questão.
Apaixonado pela
bela Beatrice e sentindo-se confuso ante os sentimentos inesperados, Mario não
tem dúvidas, recorre a Dom Pablo. O que dizer à amada. “Perto
de você me calo, tudo penso e nada falo, tenho medo de chorar”,
diria o nosso poeta Noel. O carteiro pede ao poeta o presente maior –
um poema para a sua musa, mas o poeta reage. Não posso escrever se nem
a conheço, o poeta não inventa, tem que conhecer o objeto ao qual
dedica um poema. Mario não compreende por que o poeta se nega a ajudá-lo
e lhe apresenta o objeto metonímico – a bolinha. A mesma bolinha
que o cineasta utiliza com muita habilidade, pois a confunde, em linda cena,
com a lua. A partir daí, Mario começa a sussurrar metáforas
a uma Beatrice embevecida, “seu sorriso se espalha como uma borboleta”.
Mario rouba um ardoroso poema de Neruda dedicado a sua mulher, Matilde, e o
oferece a Beatrice e, quando Neruda reclama, ele diz, num maravilhoso insight
da função do leitor, que a poesia não pertence ao poeta,
mas aos que dela precisam. Mario investe-se mais e mais da função
de poeta. Indignada, a tia de Beatrice procura Pablo Neruda, responsabilizando-o
pelas investidas do carteiro e ameaçando Mario caso não se afastasse
da sobrinha. Nesse momento, Pablo assume a função paterna e defende
e protege Mario Ruoppolo.
Numa belíssima
cena de identificação, descem os dois de bicicleta para que Neruda
conheça Beatrice, nome de musa inspiradora de Dante Alighieri e Gabriele
D’Annunzio. Na presença de Beatrice, Neruda realiza uma verdadeira
iniciação de Mario, ao assinar o livro que lhe deu de presente.
Inscreve-o assim na comunidade como amigo fraterno, companheiro, filho.
Carteiro e poeta
se confundem aqui como homens de palavra. Palavras de honra, de dívida,
de compromisso. Chama a atenção o título do filme em inglês
e em italiano que é apenas “O carteiro” (“The postman”)
e (“Il postino”) Curioso é observar que o poeta é
uma metáfora de carteiro ou vice-versa. Ambos conduzem palavras. Ambos
caminham muito para chegar ao seu destino. Ambos desconhecem as mensagens que
levam, seus destinatários e suas repercussões. O poeta, como o
carteiro, é portador de sonhos, mas muitas vezes um destruidor de ilusões.
Ambos são sempre esperados com ansiedade e festejados se trazem boas
novas, ou malditos se escancaram as verdades e semeiam desilusões. Ambos
vivem de provocar emoções de toda espécie nos outros.
Mas, por falar
em metáforas, a situação também atualiza a própria
relação analítica quando um indivíduo procura um
outro a quem atribui um saber absoluto e constrói uma relação
cheia de idealizações. No entanto, encontra no outro alguém
ciente de si e sabedor que não possui tal saber, não lhe responde
como era o desejado pelo solicitante, não lhe dá uma resposta
fechada, pronta, objetiva, mas o convida e incita a pensar para produzir ele
mesmo suas respostas. O conselho de Neruda para que Mario vá caminhar
na praia que as metáforas lhe chegarão, sugere a proposta da livre
associação. Instituído neste lugar de poder grandioso,
Pablo se dispõe a uma escuta atenta e, saindo do foco principal, acompanha
a caminhada de Mario. A metáfora da relação transferencial
é perfeita.
A amizade que
se estabeleceu entre esses dois homens engrandece a ambos – o primeiro,
o carteiro, um homem simples, acaba tornando-se poeta e inscreve-se no Partido
Comunista, identificando-se com o pai poeta ao qual dedica um poema e, por fim,
morre como herói. O segundo, Pablo Neruda, poeta consagrado internacionalmente,
vencedor do Premio Nobel, senador do Chile e candidato à presidência
da República, presentifica a sua prática de poeta do povo na relação
com um jovem puro e humano que o procura como modelo e paradigma de pai. Mario
lhe ensina a buscar metáforas no quotidiano, sem esforço, como
quando grava para ele a fita com os sons das ondas do mar de Cala di Sotto,
as mais leves e as mais agitadas, o murmúrio do vento no alto da montanha
ou acariciando os arbustos, o repicar dos sinos ou as batidas do coração
do seu filho.
Neruda foi padrinho
de casamento de Mario e recebeu como a maior homenagem de seu amigo, o nome
do filho deste, Pablito. Após o casamento, Neruda volta para o Chile.
A volta de Dom
Pablo à ilha é uma lição de amor e lealdade, além
da comprovação do reconhecimento duvidado por todos, principalmente
pela tia de Beatrice que repetia sempre “Ucello che ha mangiato vola via”
que numa tradução livre poderia ter como equivalente, a expressão
“Pirão comido, pirão esquecido”.
Neruda não
se esqueceu. Mario jamais duvidou do amigo e soube compreendê-lo. O que
lhe foi dado foi muito mais que um poema, um caderno para registrar seus próprios
versos, ou as gorjetas, quando entregava a correspondência. Neruda deu
a Mario o que não tinha, mas que este supunha que ele tivesse e que almejava
tanto – o dom, a maestria de domar as palavras, construir metáforas
e libertar-se, tornar-se sujeito do seu próprio destino.
O CARTEIRO E O
POETA – Direção: Michael Radford. Co-produção
ítalo-francesa Cecchi Gori Group Tiger Cinematográfica. DVD 109
minutos.
LACAN, Jacques.
O Seminário livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica
da Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.
LACAN, Jacques.
O Seminário livro 7 : a ética da Psicanálise.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
SKARMETA, Antonio.
O carteiro e o poeta. Trad. Beatriz Sidon. 19. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2002.