Círculo
Psicanalítico da Bahia
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal do Rio de Janeiro Endereço
para correspondência
RESUMO
Além de
ser tema relativamente pouco abordado pelas instituições psicanalíticas,
apesar de se tratar de importante forma de expressão do inconsciente,
parece haver certa resistência em muitos psicanalistas a seu próprio
estudo. Este trabalho propõe-se a uma investigação inicial
sobre esta censura.
Palavras-chave:
Humor, Chistes, Censura.
ABSTRACT
Besides being
a theme relatively less studied in psychoanalytical institutions, in spite of
being an important expression of the unconscious, there seems to be some resistance
in quite a few psychoanalysts to its very investigation. This paper proposes
to begin a closer look at this censorship.
Keywords:
Humour, Jokes, Censorship.
Quem tem inconsciente não precisa de inimigo.
Gilvan Ottoni
Com certa freqüência
nos últimos tempos, venho-me interessando por questões que parecem
despertar censura em psicanalistas. Enquanto profissionais, estamos em geral
alerta para aquilo que nossos analisandos rejeitam, o que chamam bobagens e
sabemos ser fundamental para a descoberta do inconsciente. Acredito que aquilo
que os próprios psicanalistas consideram bobagem ou censurável
pode muito bem ter importância equivalente e, portanto, merece ser investigado.
Como o tema da Jornada deste ano do Círculo Psicanalítico da Bahia
será o Humor, de imediato me impressionou o comentário, por Carlos
Pinto Correa, de que esta seria a primeira vez que ele conseguia convencer uma
instituição psicanalítica a abordar tal tema, e que muitos
convidados a participar do evento, apesar de fascinados, parecem ter tido que
superar alguma resistência interna inicial. Proponho-me, portanto, a tentar
lançar alguma luz sobre este fenômeno particular.
O humor e, mais
especificamente, a categoria dos chistes faz parte dos quatro grandes grupos
de formações do inconsciente. Sonhos, atos falhos e sintomas têm
sido extensa e longamente estudados. Não se dá o mesmo com os
chistes e o livro de Freud que lhes corresponde, com honrosas exceções.
Em Laughing:
a psychology of humor, Holland afirma sobre o riso que nós não
o compreendemos e não confiamos nele. Desconfiança esta presente
desde a Antiguidade, já que os filósofos pré-socráticos
afirmavam que gracejar é inconsistente com a piedade, preferindo esta
última.
Mas o humor se
constitui, em seu campo próprio, fenômeno tão rico e irrepresentável
como o da arte. E não é por acaso que não confiamos no
humor. Nosso riso é certamente subversivo. Ao rirmos, desafiamos as leis
de homens e deuses.
Apesar de haver
muito menos literatura sobre o riso do que sobre a estética, por exemplo,
ainda assim as referências podem ser bastante extensas. Farei apenas um
rápido apanhado das principais tendências de pensamento.
Aristóteles
se refere à comédia muito brevemente em sua Poética, mas
sua definição é bastante precisa:
A comédia
é, como já dissemos, imitação de maus costumes,
mas não de todos os vícios; ela só imita aquela parte do
ignominioso que é o ridículo. O ridículo reside num defeito
ou numa tara que não apresenta caráter doloroso ou corruptor.
Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme,
que não é causa de sofrimento. (ARISTÓTELES, Poética,
cap. V)
Assim, a principal
diferença entre a tragédia e a comédia não era,
para os gregos, o riso, mas a ausência de sofrimento.
A maioria das
teorias do riso detém-se nas questões relativas à incongruência,
porém não consegue determinar o que, na incongruência,
deveria causar o riso. Schopenhauer, por exemplo, fala da incongruência
entre um conceito e o objeto real ao qual aquele se relaciona.
Outros pensadores
chamam a atenção para algumas outras características do
humor, como sua vinculação a rituais, ao jogo (combina a disciplina
da arte com a falta de disciplina do jogo), a especificidade exigida da situação
para que o efeito cômico surja, o ser necessariamente um fenômeno
social, e os problemas relacionados ao timing e à surpresa.
Sugeriu-se inclusive que uma tragédia seria apenas uma comédia
lentificada. Mas nenhum deles apresentou uma teoria bem-sucedida e satisfatória
do humor (mesmo hoje só podemos nos gabar de explicações
parciais, levando em conta a vastidão do campo).
De maior interesse
me foram Pirandello e Baudelaire.
Pirandello fala
de um sentimento do contrário que “segue as emoções
normais de cada um como a sombra segue o corpo”. O artista se ocuparia
do corpo, o humorista do corpo e da sombra. Já para Baudelaire (2002,
p. 738), “O riso é satânico, logo profundamente humano. Ele
é no homem a conseqüência da idéia de sua própria
superioridade; e, com efeito, como o riso é essencialmente humano, é
essencialmente contraditório, quer dizer, é ao mesmo tempo sinal
de uma grandeza infinita e de uma miséria infinita [...]”.
Interessa nestas
duas afirmações o fato de que nelas se entrevê um homem
que ri enquanto homem dividido.
Porque é
exatamente ao funcionamento das divisões e estruturas da psique que Freud
atribui a produção do humor, chegando a sugerir que o piadista
poderia ser alguém sujeito a sintomas neuróticos (e talvez salvo
destes pela sua predisposição ao humor). Freud propõe duas
teorias complementares sobre o humor. Na primeira, ‘Os chistes e sua relação
com o inconsciente’, escrita cinco anos após ‘A interpretação
dos sonhos’, a base teórica é a do movimento das catexias,
próprio da primeira tópica. O riso se deve aí à
economia de esforço psíquico obtida pela suspensão momentânea
da repressão.
Há duas
vertentes principais envolvidas neste movimento: a primeira implica uma passagem
do discurso coerente, concatenado segundo as leis da lógica e do princípio
de realidade, ao discurso vindo do inconsciente. Ou seja, um pensamento pré-consciente
é ‘dragado’ (segundo a expressão de Freud) ao inconsciente,
de onde emerge modificado pelos mesmos processos psíquicos que fazem
parte das demais formações do inconsciente. Freud compara os chistes
e o humor à elaboração dos sonhos. O que emerge da elaboração
tem a característica infantil, e é precisamente o formato de jogo
infantil de palavras que irá permitir o prazer do chiste, fazendo-se
economia da energia psíquica habitualmente utilizada para manter uma
linguagem lógica, coerente e correta, enfim, ‘adulta’ e adequada
à realidade.
A segunda se refere
ao conteúdo do chiste em si, o qual, a não ser nos casos que envolvem
puramente nonsense e/ou jogos de palavras, está sempre sujeito
a algum grau de censura. Freud classifica estes chistes, de acordo com seu propósito,
em cínicos (a livre vazão ao desejo em detrimento das normas sociais
e da ética), tendenciosos (expressão e descarga de impulsos hostis
e libidinosos dirigidos a outro) e céticos (atacam ‘a própria
certeza de nosso conhecimento’ – a estes últimos é
conferida uma posição especial). O mecanismo fundamental por trás
de todos eles, no entanto, é o mesmo:
Aqui finalmente
compreendemos o que é que os chistes executam a serviço de seu
propósito. Tornam possível a satisfação de um
instinto (seja libidinoso ou hostil) face a um obstáculo. Evitam esse
obstáculo e assim extraem prazer de uma fonte que o obstáculo
tornara inacessível. (FREUD, 1977b, p. 121).
Há ainda
uma condição externa sem a qual o chiste não ocorre: a
presença de um outro. No caso do chiste, são necessárias
três pessoas, sendo a segunda o alvo ou vítima do chiste e a terceira
é aquela para quem o chiste é contado. Ao rir, a terceira pessoa
valida o chiste, e com este o desejo ou propósito por trás deste.
Com o riso, é como se estivesse dizendo ‘penso como você’,
ou ‘desejo o mesmo que você’, e desta forma é dada
uma autorização para a expressão daquilo que permanecia
sob restrição. A terceira pessoa funciona, portanto, como um Outro
que de fato com sua permissão torna mais leve, para si e para o contador
do chiste, o peso da lei.
Já no segundo
texto, escrito vinte e dois anos depois, apesar do enfoque econômico ainda
ser importante, ao abordar não apenas os chistes mas o sentimento de
humor em si, Freud passa a uma visão estrutural. A divisão agora
se dá entre instâncias psíquicas, com o supereu surpreendentemente
em um papel condescendente e protetor. Diz, como se fosse, ao eu assoberbado
pelas dificuldades e sofrimentos trazidos pela realidade: “Olhem! Aqui
está o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo
de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!”
(FREUD, 1977a, p. 194).
Neste trabalho,
o humor é inserido na “série de métodos que a mente
humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer –
uma série que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo
a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase”
(FREUD, 1977a, p. 191). Nesta série, no entanto, o humor tem posição
privilegiada. Afasta ou desvia o sofrimento, “dá ênfase à
invencibilidade do ego pelo mundo real, sustenta vitoriosamente o princípio
do prazer – e tudo isso em contraste com outros métodos que têm
os mesmos intuitos, sem ultrapassar os limites da saúde mental”
(FREUD, 1977a, p. 191).
Aqui está
um ponto de interesse. O que há de especial no humor que lhe permite
tal privilégio, e terá isto relação com a pergunta
inicial? Nos textos freudianos há uma observação que pode
ajudar a esclarecer a questão: “Pois, diferentemente dos sonhos,
os chistes não criam compromissos; eles não evitam a inibição
mas insistem em manter inalterado o jogo com as palavras ou com o nonsense.
Restringem-se, entretanto, a uma escolha das ocasiões em que esse jogo
ou esse nonsense possam ao mesmo tempo parecer permissíveis (nos gracejos)
ou sensatos (nos chistes), graças à ambigüidade das palavras
ou à multiplicidade das relações conceptuais. Nada distingue
os chistes mais nitidamente de todas as outras estruturas psíquicas que
essa bilateralidade e essa duplicidade verbal” (FREUD, 1977b, p. 197).
Não é
de admirar que desconfiemos do humor e tentemos diminuí-lo de todas as
formas. Certamente é o mais eficaz dos métodos de expressão
do inconsciente, mas também talvez o mais perigoso, socialmente falando.
Diferente dos sintomas, sonhos ou atos falhos, o humor não é
uma solução de compromisso. Permite, com pouco ou nenhum
custo, não a atuação mas a expressão do inconsciente
e a suspensão psíquica das leis humanas, da linguagem, da realidade
e da morte. Mais ainda, como isto é conseguido através da autorização
de um outro, o riso é altamente contagioso.
E aí está
seu perigo. Como seria possível dar curso irrestrito ou reconhecimento
adequado a um fenômeno que libera aqueles que envolve das amarras convencionais
da sociedade e os remete a um funcionamento infantil, ao mesmo tempo em que
os une num mesmo movimento interno? A questão central do jogo é
que ele não tem centro, e o humor certamente des-centra o sujeito, elidindo
os nós da linguagem que o ancoram sem com isto deixá-lo à
deriva. O jogo em si tem suas regras, que não são as da realidade,
e é contra esta que o humor se rebela.
Outro motivo para,
digamos assim, não se querer brincar com o humor, é que, diferente
de uma faca, não se pode segurá-lo pelo cabo. Não há
segurança no seu uso, que tão facilmente corta uma autoridade
ou instituição como aquele mesmo que o produz, pela própria
natureza dividida e infantil de seu nascimento. O escritor Anton Tchekov ensinou
que o trágico e o cômico são apenas duas janelas diferentes,
que dão para a mesma paisagem atormentada. Nem sempre desejamos ver o
que nos rodeia, e menos ainda o que nos compõe, mas é nossa própria
perda se mantivermos tão clara e ampla janela fechada ao nosso conhecimento.
Referências
SLAVUTZKY, Abrão.
A piada e sua relação com o inconsciente ou a psicanálise
é muito séria. Disponível em: www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/Slavutzky.htm
Acessado em ab. 2008.
ARISTÓTELES.
Poética. Metafísica, Ética a Nicômaco. Seleção
de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução,
comentário e índices analítico e onomástico de Eudoro
de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 237-321, p. 329 (Coleção
Os Pensadores).
BAUDELAIRE, Charles.
Da essência do riso (e de modo geral do cômico nas artes plásticas).
In:___. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 733-746.
FREUD, Sigmund.
O Humor. In: ___. Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977a.
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FREUD, Sigmund.
Os chistes e sua relação com o inconsciente. In:___. Edição
standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977b. v. VIII, p. 290.
HOLLAND, Norman
N. Laughing: A psychology of humor. London: Cornell University Press,
1982. p.232.
LIMA, Denise Maria
de Oliveira. O consumo banal do humor: aonde encaixar Freud e Pirandello? Cógito,
Salvador, v. 6, 2004. p. 89-93.
Endereço
para correspondência:
R. Humberto
de Campos, 144 - 3o andar
Graça - Salvador - Bahia
40450-130
Tel: (71)3247-5435
*
Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora
adjunta do departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBa,
doutora em psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.