Do porque da censura ao riso
Of the reasons for censoring laughter


Míriam Gorender*

Círculo Psicanalítico da Bahia
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Endereço para correspondência

RESUMO

Além de ser tema relativamente pouco abordado pelas instituições psicanalíticas, apesar de se tratar de importante forma de expressão do inconsciente, parece haver certa resistência em muitos psicanalistas a seu próprio estudo. Este trabalho propõe-se a uma investigação inicial sobre esta censura.

Palavras-chave: Humor, Chistes, Censura.

ABSTRACT

Besides being a theme relatively less studied in psychoanalytical institutions, in spite of being an important expression of the unconscious, there seems to be some resistance in quite a few psychoanalysts to its very investigation. This paper proposes to begin a closer look at this censorship.

Keywords: Humour, Jokes, Censorship.

 

 

Quem tem inconsciente não precisa de inimigo.
Gilvan Ottoni

 

Com certa freqüência nos últimos tempos, venho-me interessando por questões que parecem despertar censura em psicanalistas. Enquanto profissionais, estamos em geral alerta para aquilo que nossos analisandos rejeitam, o que chamam bobagens e sabemos ser fundamental para a descoberta do inconsciente. Acredito que aquilo que os próprios psicanalistas consideram bobagem ou censurável pode muito bem ter importância equivalente e, portanto, merece ser investigado. Como o tema da Jornada deste ano do Círculo Psicanalítico da Bahia será o Humor, de imediato me impressionou o comentário, por Carlos Pinto Correa, de que esta seria a primeira vez que ele conseguia convencer uma instituição psicanalítica a abordar tal tema, e que muitos convidados a participar do evento, apesar de fascinados, parecem ter tido que superar alguma resistência interna inicial. Proponho-me, portanto, a tentar lançar alguma luz sobre este fenômeno particular.

O humor e, mais especificamente, a categoria dos chistes faz parte dos quatro grandes grupos de formações do inconsciente. Sonhos, atos falhos e sintomas têm sido extensa e longamente estudados. Não se dá o mesmo com os chistes e o livro de Freud que lhes corresponde, com honrosas exceções.

Em Laughing: a psychology of humor, Holland afirma sobre o riso que nós não o compreendemos e não confiamos nele. Desconfiança esta presente desde a Antiguidade, já que os filósofos pré-socráticos afirmavam que gracejar é inconsistente com a piedade, preferindo esta última.

Mas o humor se constitui, em seu campo próprio, fenômeno tão rico e irrepresentável como o da arte. E não é por acaso que não confiamos no humor. Nosso riso é certamente subversivo. Ao rirmos, desafiamos as leis de homens e deuses.

Apesar de haver muito menos literatura sobre o riso do que sobre a estética, por exemplo, ainda assim as referências podem ser bastante extensas. Farei apenas um rápido apanhado das principais tendências de pensamento.

Aristóteles se refere à comédia muito brevemente em sua Poética, mas sua definição é bastante precisa:

A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, mas não de todos os vícios; ela só imita aquela parte do ignominioso que é o ridículo. O ridículo reside num defeito ou numa tara que não apresenta caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica feia e disforme, que não é causa de sofrimento. (ARISTÓTELES, Poética, cap. V)

Assim, a principal diferença entre a tragédia e a comédia não era, para os gregos, o riso, mas a ausência de sofrimento.

A maioria das teorias do riso detém-se nas questões relativas à incongruência, porém não consegue determinar o que, na incongruência, deveria causar o riso. Schopenhauer, por exemplo, fala da incongruência entre um conceito e o objeto real ao qual aquele se relaciona.

Outros pensadores chamam a atenção para algumas outras características do humor, como sua vinculação a rituais, ao jogo (combina a disciplina da arte com a falta de disciplina do jogo), a especificidade exigida da situação para que o efeito cômico surja, o ser necessariamente um fenômeno social, e os problemas relacionados ao timing e à surpresa. Sugeriu-se inclusive que uma tragédia seria apenas uma comédia lentificada. Mas nenhum deles apresentou uma teoria bem-sucedida e satisfatória do humor (mesmo hoje só podemos nos gabar de explicações parciais, levando em conta a vastidão do campo).

De maior interesse me foram Pirandello e Baudelaire.

Pirandello fala de um sentimento do contrário que “segue as emoções normais de cada um como a sombra segue o corpo”. O artista se ocuparia do corpo, o humorista do corpo e da sombra. Já para Baudelaire (2002, p. 738), “O riso é satânico, logo profundamente humano. Ele é no homem a conseqüência da idéia de sua própria superioridade; e, com efeito, como o riso é essencialmente humano, é essencialmente contraditório, quer dizer, é ao mesmo tempo sinal de uma grandeza infinita e de uma miséria infinita [...]”.

Interessa nestas duas afirmações o fato de que nelas se entrevê um homem que ri enquanto homem dividido.

Porque é exatamente ao funcionamento das divisões e estruturas da psique que Freud atribui a produção do humor, chegando a sugerir que o piadista poderia ser alguém sujeito a sintomas neuróticos (e talvez salvo destes pela sua predisposição ao humor). Freud propõe duas teorias complementares sobre o humor. Na primeira, ‘Os chistes e sua relação com o inconsciente’, escrita cinco anos após ‘A interpretação dos sonhos’, a base teórica é a do movimento das catexias, próprio da primeira tópica. O riso se deve aí à economia de esforço psíquico obtida pela suspensão momentânea da repressão.

Há duas vertentes principais envolvidas neste movimento: a primeira implica uma passagem do discurso coerente, concatenado segundo as leis da lógica e do princípio de realidade, ao discurso vindo do inconsciente. Ou seja, um pensamento pré-consciente é ‘dragado’ (segundo a expressão de Freud) ao inconsciente, de onde emerge modificado pelos mesmos processos psíquicos que fazem parte das demais formações do inconsciente. Freud compara os chistes e o humor à elaboração dos sonhos. O que emerge da elaboração tem a característica infantil, e é precisamente o formato de jogo infantil de palavras que irá permitir o prazer do chiste, fazendo-se economia da energia psíquica habitualmente utilizada para manter uma linguagem lógica, coerente e correta, enfim, ‘adulta’ e adequada à realidade.

A segunda se refere ao conteúdo do chiste em si, o qual, a não ser nos casos que envolvem puramente nonsense e/ou jogos de palavras, está sempre sujeito a algum grau de censura. Freud classifica estes chistes, de acordo com seu propósito, em cínicos (a livre vazão ao desejo em detrimento das normas sociais e da ética), tendenciosos (expressão e descarga de impulsos hostis e libidinosos dirigidos a outro) e céticos (atacam ‘a própria certeza de nosso conhecimento’ – a estes últimos é conferida uma posição especial). O mecanismo fundamental por trás de todos eles, no entanto, é o mesmo:

Aqui finalmente compreendemos o que é que os chistes executam a serviço de seu propósito. Tornam possível a satisfação de um instinto (seja libidinoso ou hostil) face a um obstáculo. Evitam esse obstáculo e assim extraem prazer de uma fonte que o obstáculo tornara inacessível. (FREUD, 1977b, p. 121).

Há ainda uma condição externa sem a qual o chiste não ocorre: a presença de um outro. No caso do chiste, são necessárias três pessoas, sendo a segunda o alvo ou vítima do chiste e a terceira é aquela para quem o chiste é contado. Ao rir, a terceira pessoa valida o chiste, e com este o desejo ou propósito por trás deste. Com o riso, é como se estivesse dizendo ‘penso como você’, ou ‘desejo o mesmo que você’, e desta forma é dada uma autorização para a expressão daquilo que permanecia sob restrição. A terceira pessoa funciona, portanto, como um Outro que de fato com sua permissão torna mais leve, para si e para o contador do chiste, o peso da lei.

Já no segundo texto, escrito vinte e dois anos depois, apesar do enfoque econômico ainda ser importante, ao abordar não apenas os chistes mas o sentimento de humor em si, Freud passa a uma visão estrutural. A divisão agora se dá entre instâncias psíquicas, com o supereu surpreendentemente em um papel condescendente e protetor. Diz, como se fosse, ao eu assoberbado pelas dificuldades e sofrimentos trazidos pela realidade: “Olhem! Aqui está o mundo que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!” (FREUD, 1977a, p. 194).

Neste trabalho, o humor é inserido na “série de métodos que a mente humana construiu a fim de fugir à compulsão para sofrer – uma série que começa com a neurose e culmina na loucura, incluindo a intoxicação, a auto-absorção e o êxtase” (FREUD, 1977a, p. 191). Nesta série, no entanto, o humor tem posição privilegiada. Afasta ou desvia o sofrimento, “dá ênfase à invencibilidade do ego pelo mundo real, sustenta vitoriosamente o princípio do prazer – e tudo isso em contraste com outros métodos que têm os mesmos intuitos, sem ultrapassar os limites da saúde mental” (FREUD, 1977a, p. 191).

Aqui está um ponto de interesse. O que há de especial no humor que lhe permite tal privilégio, e terá isto relação com a pergunta inicial? Nos textos freudianos há uma observação que pode ajudar a esclarecer a questão: “Pois, diferentemente dos sonhos, os chistes não criam compromissos; eles não evitam a inibição mas insistem em manter inalterado o jogo com as palavras ou com o nonsense. Restringem-se, entretanto, a uma escolha das ocasiões em que esse jogo ou esse nonsense possam ao mesmo tempo parecer permissíveis (nos gracejos) ou sensatos (nos chistes), graças à ambigüidade das palavras ou à multiplicidade das relações conceptuais. Nada distingue os chistes mais nitidamente de todas as outras estruturas psíquicas que essa bilateralidade e essa duplicidade verbal” (FREUD, 1977b, p. 197).

Não é de admirar que desconfiemos do humor e tentemos diminuí-lo de todas as formas. Certamente é o mais eficaz dos métodos de expressão do inconsciente, mas também talvez o mais perigoso, socialmente falando. Diferente dos sintomas, sonhos ou atos falhos, o humor não é uma solução de compromisso. Permite, com pouco ou nenhum custo, não a atuação mas a expressão do inconsciente e a suspensão psíquica das leis humanas, da linguagem, da realidade e da morte. Mais ainda, como isto é conseguido através da autorização de um outro, o riso é altamente contagioso.

E aí está seu perigo. Como seria possível dar curso irrestrito ou reconhecimento adequado a um fenômeno que libera aqueles que envolve das amarras convencionais da sociedade e os remete a um funcionamento infantil, ao mesmo tempo em que os une num mesmo movimento interno? A questão central do jogo é que ele não tem centro, e o humor certamente des-centra o sujeito, elidindo os nós da linguagem que o ancoram sem com isto deixá-lo à deriva. O jogo em si tem suas regras, que não são as da realidade, e é contra esta que o humor se rebela.

Outro motivo para, digamos assim, não se querer brincar com o humor, é que, diferente de uma faca, não se pode segurá-lo pelo cabo. Não há segurança no seu uso, que tão facilmente corta uma autoridade ou instituição como aquele mesmo que o produz, pela própria natureza dividida e infantil de seu nascimento. O escritor Anton Tchekov ensinou que o trágico e o cômico são apenas duas janelas diferentes, que dão para a mesma paisagem atormentada. Nem sempre desejamos ver o que nos rodeia, e menos ainda o que nos compõe, mas é nossa própria perda se mantivermos tão clara e ampla janela fechada ao nosso conhecimento.

 

Referências

SLAVUTZKY, Abrão. A piada e sua relação com o inconsciente ou a psicanálise é muito séria. Disponível em: www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/Slavutzky.htm Acessado em ab. 2008.

ARISTÓTELES. Poética. Metafísica, Ética a Nicômaco. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Tradução, comentário e índices analítico e onomástico de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 237-321, p. 329 (Coleção Os Pensadores).

BAUDELAIRE, Charles. Da essência do riso (e de modo geral do cômico nas artes plásticas). In:___. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 733-746.

FREUD, Sigmund. O Humor. In: ___. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977a. v. XXI, p. 188-194.

FREUD, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. In:___. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1977b. v. VIII, p. 290.

HOLLAND, Norman N. Laughing: A psychology of humor. London: Cornell University Press, 1982. p.232.

LIMA, Denise Maria de Oliveira. O consumo banal do humor: aonde encaixar Freud e Pirandello? Cógito, Salvador, v. 6, 2004. p. 89-93.

 

 

Endereço para correspondência:
R. Humberto de Campos, 144 - 3o andar
Graça - Salvador - Bahia
40450-130
Tel: (71)3247-5435

 

 

* Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico da Bahia, professora adjunta do departamento de Neurociências e Saúde Mental da UFBa, doutora em psicanálise pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ.